Caso Celso Daniel

Podval afirma que MP perverteu o
sistema investigatório e acusatório

DANIEL LIMA - 18/07/2012

O criminalista Roberto Podval, que defende o empresário Sérgio Gomes da Silva da acusação de mandante do sequestro seguido de assassinato do prefeito Celso Daniel em janeiro de 2002, afirma nesta Entrevista Exclusiva que os vícios da investigação criminal realizada pelo Ministério Público representaram o que chama de uma verdadeira perversão do sistema investigativo e acusatório adotado pela legislação processual pátria. E que por isso mesmo exigem do Supremo Tribunal Federal o arquivamento da ação penal ou, ao menos, a nulidade de todos os atos ministeriais.
 
CapitalSocial ouviu um dos principais criminalistas do País em entrevista por e-mail e tendo como ponto de inflexão a discussão sobre o poder de o Ministério Público conduzir investigações penais. A questão divide o Supremo Tribunal Federal. A definição do tema foi adiada mais uma vez por pedido de vista do ministro Luiz Fux, com seis votos e três diferentes correntes formadas a respeito do tema.
 
CapitalSocial ouve pela primeira vez o criminalista e segue com as portas da informação abertas aos representantes do Ministério Público de Santo André que atuaram no caso Celso Daniel. Não é de hoje que apresentamos aos promotores criminais uma proposta inédita: a produção de um livro em formato de tribunal do júri, com direito a réplicas e tréplicas. Este jornalista jamais teve dúvidas quanto ao enredo do caso Celso Daniel, que passa muito longe da versão do Ministério Público, de crime de encomenda.
 
Para Roberto Podval, Sérgio Gomes da Silva está sendo vítima de perversão de meios instaurados por uma ação penal "edificada sobre os alicerces corroídos de uma investigação criminal levada a cabo por autoridade constitucionalmente incompetente, mas, principalmente, realizada às escuras, em total afronta aos princípios mais comezinhos do Direito Penal e Processual Penal".
 
A defesa de Sérgio Gomes da Silva, que conta também com a assinatura de outros expoentes da banca paulistana, casos de Antonio Cláudio Marins de Oliveira, Odel Antun, Adriano Salles Vanni e Carmen da Costa Barros, reitera que a questão da legitimidade ou ilegitimidade constitucional dos poderes investigatórios do Ministério Público deve sim ser perquirida, visto que o aditamento da denúncia, que incluiu Sérgio Gomes no chamado polo passivo de demanda penal, é exclusivamente pautado em investigação criminal realizada no gabinete ministerial do Gaerco (Grupo de Repressão ao Crime Organizado) de Santo André.
 
Mas esse não é o único ponto que os defensores de Sérgio Gomes da Silva pretendem ver discutido no julgamento do habeas corpus impetrado em 2004 e que mantém o acusado pelo Ministério Público em liberdade. Mesmo considerando a possibilidade de atribuição de poderes investigatórios criminais ao Ministério Público, Roberto Podval afirma que é certo que a "investigação ministerial" não pode ser realizada em desrespeito às disposições estabelecidas na legislação, tanto no Código de Processo Penal como nos Atos Normativos da própria instituição Ministerial, no caso, segundo afirma, especificamente, o Ato Normativo 168/98 da Procuradoria Geral de Justiça e da Corregedoria Geral do Ministério Público do Estado de São Paulo.


 


Quais foram os pecados capitais da investigação do Ministério Público que possibilitam à defesa de Sérgio Gomes da Silva elementos substantivos à manutenção do habeas corpus?


 


Roberto Podval – Foram vários. O primeiro é que, ao contrário do que o ministro Cézar Peluzo afirmou, a denúncia que incluiu Sérgio Gomes no chamado polo passivo de ação penal que apura as circunstâncias do arrebatamento e morte do prefeito Celso Daniel advém sim de investigação ministerial conduzida à margem de todas as garantias legais exigidas. Essa é a única conclusão a que se pode chegar seja por uma abordagem histórica, seja documental, isto é, com base probatória da acusação. Sob o prisma histórico, a investigação iniciou-se no dia dos fatos, quando Sérgio Gomes da Silva, acompanhado dos policiais militares que prestaram socorro no trágico evento, registrou a ocorrência de sequestro na delegacia mais próxima aos fatos, o 26º Distrito Policial da Capital. Com a localização do corpo da vítima em Juquitiba, na Grande São Paulo, foi lavrado outro boletim de ocorrência na Delegacia daquela cidade. Foi por determinação do Delegado Geral de Polícia, considerando a repercussão e a complexidade do caso, que as investigações foram centralizadas na delegacia especializada, o DHPP. Na verdade, diante da complexidade dos fatos, para dar seguimento às investigações, houve uma espécie de conjunção de esforços entre a Polícia Federal, que apurava suposta motivação política do crime, e os órgãos mais especializados da Polícia Civil do Estado de São Paulo, o DEIC e o DHPP. Nenhuma hipótese foi descartada. Nenhuma precipitada foi tomada. Bem por isso, o próprio Sérgio Gomes, que estava com a vítima quando do arrebatamento, teve sua conduta apurada já no desenrolar da investigação da Polícia Civil do Estado de São Paulo.


 


Que tipo de conduta?


 


Roberto Podval – A investigação levada a cabo pela Polícia Civil Paulista e pela Polícia Federal foi ampla e não descartou, sem antes apurar, qualquer linha investigativa. Nesse sentido, aliás, o delegado do DHPP, Armando de Oliveira, questionado sobre o possível envolvimento de Sérgio Gomes no sequestro e morte do prefeito, esclareceu com as seguintes palavras: “Antes de alcançar o fio da investigação, devastamos a vida, quer do prefeito, quer das pessoas que o orbitavam, e nada restou comprovado nesse sentido”. Por isso, chegou à conclusão segura de que não houve motivação política e que o prefeito Celso Daniel foi vítima da violência que aterroriza  a população de nossos grandes centros urbanos. Bem por isso, o inquérito da Polícia Federal foi arquivado e o inquérito da Polícia Civil, que contava com 10 volumes, sem considerar apensos e anexos, resultou em denúncia criminal, pelo delito de extorsão mediante sequestro com resultado morte, ofertada em face de seis integrantes da quadrilha da Favela Pantanal, em Diadema, responsável pela autoria dos fatos.


 


Tudo isso explica as razões de Sérgio Gomes não ter sido denunciado?


 


Roberto Podval – Exatamente. De todo o apurado pela Polícia Civil e Polícia Federal, Sérgio Gomes não foi denunciado, uma vez que das investigações não constataram qualquer indício da suposta participação nos fatos.


 


Então, cai por terra a intervenção do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal de que a denúncia ao Judiciário teria sido com base, também, nas investigações policiais?


 


Roberto Podval – É claro que sim, porque a acusação foi fruto de investigação ministerial que se iniciou posteriormente às investigações policiais. Isto porque, em que pese as investigações da força-tarefa policial, os membros do Ministério Público lotados no Gaerco de Santo André instauraram investigação ministerial com o mesmo fim da investigação policial. Lê-se da portaria da investigação ministerial: “determinamos a instauração de procedimento administrativo criminal com a finalidade de colher esclarecimentos definitivos acerca daqueles fatos criminosos, suas circunstâncias, autores e co-autores, tudo a viabilizar em momento posterior a instauração da instância penal baseada na persecução da verdade real que norteia o processo-penal”. Ora, a portaria é clara e indica que os promotores do Gaerco de Santo André instauraram uma investigação autônoma para apurar, em suas palavras, “definitivamente, os fatos que vitimaram Celso Daniel, pois não acreditavam que o inquérito policial tivesse chegado a uma conclusão que fosse a verdade real”. Por isso os promotores do Gaerco de Santo André iniciaram uma investigação completamente nova, desgarrada da investigação policial, inclusive repetindo oitivas de pessoas que já haviam sido ouvidas pela Polícia Civil.


 


Dai o Gaerco de Santo André ter chegado à verdade dos fatos, segundo se deu a interpretação final daquelas investigações?


 


Roberto Podval – Sem dúvida. As diligências ministeriais, conduzidas em gabinete e ao arrepio de todo regramento legal, chegaram à particular e distorcida verdade real. Para eles, promotores do Gaerco, Sérgio Gomes “fazia parte de um esquema de corrupção na Prefeitura de Santo André que recebia propina de empresas de transporte e o prefeito Celso Daniel teria tomado providências para acabar com a fraude ao descobri-la”. Por isso, para a permanência desse esquema de corrupção, Sérgio Gomes teria friamente arquitetado a morte de seu amigo Celso Daniel, contratando os membros da quadrilha e encenado o sequestro. Essa conclusão sobre o envolvimento de Sérgio Gomes nos fatos é particular dos promotores de Santo André e é obtida somente com a realização das investigações ministeriais conduzidas em gabinete. Em nenhum momento do inquérito policial essa conclusão é atingida, como se viu. Para tanto, basta refletir que, em termos históricos, temporária, não haveria denúncia envolvendo Sérgio Gomes, ou aditamento àquela denúncia, se não fosse a realização da investigação ministerial. Para tanto basta ver que, excluída a atuação do Gaerco de Santo André, o que se terá em termos reais será um procedimento de extorsão mediante sequestro com resultado morte no qual não há formulação de denúncia contra Sérgio Gomes.


 


E sobre o aspecto documental, qual é a situação?


 


Roberto Podval – O que se verifica é a estreita e umbilical relação probatória entre a imputação a Sérgio Gomes e a investigação ministerial questionada. Tanto que em inusitada e não prevista em lei manifestação-parecer ofertada nos autos do habeas corpus, o Ministério Público do Estado de São Paulo enumera pontualmente os elementos que, em sua ótica, sustentariam a denúncia contra Sérgio Gomes. A análise de cada um desses elementos, entretanto, demonstra que todos são oriundos da investigação ministerial. Nessa manifestação-parecer são citados como elementos que garantiriam a denúncia contra Sérgio Gomes os depoimentos de Adão Nery, José Cicote, Maria Amaro Leite, Ailton Alves Feitosa, Sandra dos Anjos, Testemunha Protegida Zorro, Tânia Tanaka e Testemunha Protegida Luciana Lentos. Desses, apenas foram também ouvidos pela polícia as pessoas de Maria Amaro Leite, Adão Nery e a Testemunha Protegida Zorro. Entretanto, o que foi utilizado de cada um desses depoimentos para embasar a denúncia contra Sérgio Gomes, sem exceção, foi extraído da investigação conduzida pelo Ministério Público. Essa conclusão é simples e pode ser extraída da realidade óbvia consistente no fato de terem os promotores do Gaerco realizado nova oitiva dessas poucas testemunhas. Assim, caso fosse utilizada a base probatória da investigação policial, por certo, não haveria a necessidade de novas oitivas na investigação ministerial. Ou seja, muito embora algumas pessoas ouvidas na investigação policial tenham sido também ouvidas na investigação ministerial, os depoimentos que embasaram a denúncia contra Sérgio Gomes são todos aqueles produzidos na investigação ministerial, até porque, na ótica do Ministério Público denunciante, somente esse material que produziram, ou seja, a investigação de gabinete, reproduz o que definiram como verdade real. O que se quer dizer é que muito embora os promotores do Gaerco tenham tomado o depoimento de pouquíssimas pessoas, caso consideremos o número de oitivas realizadas, que também foram ouvidas na investigação policial, a investigação ministerial tratou-se de nova e autônoma diligência investigativa.


 


Sob essa argumentação, o que, então, pretende o Ministério Público no Supremo Tribunal Federal?


 


Roberto Podval – Esse documento ilegalmente atravessado na impetração significa que o Ministério Público do Estado de São Paulo pretende encobrir sua verdadeira atuação no caso, autônoma e distinta, dando ares de que a investigação ministerial teria sido “complementar à atuação policial”. Tanto que consta daquele documento o seguinte parágrafo: “Desta forma, a atuação da Promotoria de Justiça incidiu de modo complementar à atividade investigatória policial, situação em que não se questiona a admissibilidade da intervenção ministerial”. Na verdade, essa conclusão de “complementaridade” da investigação ministerial no que toca à participação de Sérgio Gomes da Silva não condiz com o que se viu da própria portaria de instauração da investigação ministerial que, textualmente, afirmou promover investigação em caráter definitivo para elucidar os fatos, seus verdadeiros autores, e assim promover uma acusação formal em juízo baseada na “verdade real”. Como se disse, a investigação ministerial, declaradamente, pretendeu ser exclusiva, definitiva e autônoma, o que não condiz com a oportuna e nada despretensiosa alegação de “complementaridade”.


 


Diante de tudo isso não dá para dissociar a investigação ministerial e a denúncia contra Sérgio Gomes?


 


Roberto Podval – Exatamente. Muito embora o Ministério Público pretenda na “manifestação-parecer” separar a denúncia de Sérgio Gomes de sua investigação de gabinete, na vã tentativa de salvar-se das evidentes ilegalidades e abusos cometidos, o fato é que a relação de causa e efeito entre a investigação ministerial e a acusação a Sérgio Gomes é notória em termos históricos e documentais.


 


Além disso, há farto material jornalístico que comprova a autônoma do Ministério Público...


 


Roberto Podval – Tanto que em entrevista concedida ao site UOL, em março deste ano, o então promotor do caso, doutor Wider Filho, reconheceu que da investigação policial não se extraiu elementos que sustentassem a denúncia contra Sérgio Gomes, resultando a apuração da participação dele da investigação ministerial. Ele disse textualmente o seguinte: “O que nós apuramos foi a participação do Sérgio Gomes da Silva (o Sombra, amigo de Celso Daniel), que já era apontado em Santo André como o encarregado por um esquema de corrupção e concussão na Prefeitura. Identificamos um elo entre esse esquema e a morte do Celso Daniel. O Sérgio foi um dos mandantes da morte em decorrência de um desarranjo no esquema de corrupção. A morte do ex-prefeito foi a mando, não foi um homicídio aleatório como diz a Polícia Civil. Para a polícia, o sequestro foi aleatório: escolheram qualquer um na rua e por azar pegaram o prefeito. Isso ficou completamente descaracterizado na investigação e na Ação Penal que se seguiu. Verificamos que o Sérgio participou e que o crime foi premeditado” – disse o promotor. Disse mais o representante do Gaerco de Santo André ao site UOL: “A apuração policial foi muito útil porque identificou a quadrilha responsável pela morte, que é a da favela Pantanal. São os que vão ser julgados agora. Mas a investigação se encerrou prematuramente. Eles não avançaram na investigação até para verificar se a versão dos integrantes da quadrilha era correta – e não era.


 


A conclusão a que se chega, então, é que os inquéritos policiais foram descartados pelo Ministério Público?


 


Roberto Podval – A investigação de gabinete foi o que fundamentou a acusação contra Sérgio Gomes. Deste fato não há dúvida. Assim como também não há dúvida de que esse procedimento ministerial é eivado de ilegalidades. A investigação específica realizada no caso pelos promotores de Santo André contradisse todo o regramento que é traçado pelo Supremo Tribunal Federal para a matéria. Como já se afirmou inúmeras vezes nos julgamentos daquela Corte Suprema, ainda que se admita a investigação ministerial, esta deve estar pautada nos parâmetros de legalidade já estabelecidos pelo Código de Processo  Penal e atos normativos, o que, no caso, não ocorreu.


 


Quais são essas irregularidades?


 


Roberto Podval – Os promotores de Justiça contrariaram os artigos 105 e 108 do Ato Normativo 168/98 da Procuradoria Geral de Justiça e da Corregedoria Geral do Ministério Público ao promoverem as diligências que embasaram  a denúncia muito antes de instaurarem qualquer procedimento formal dentro do próprio âmbito de sua Promotoria Criminal. A portaria ministerial que registrou a instauração da investigação ministerial é datada de 7 de março de 2003. No entanto, as diligências realizadas sobre esses fatos, juntadas ao próprio procedimento administrativo citado, tiveram início em 2 de setembro de 2002. Portanto, oito meses antes da instauração formal do procedimento.


 


Também contrariando frontalmente o disposto no artigo 10, parágrafo primeiro do Código de Processo Penal, que prevê a necessidade de aforamento das investigações criminais, não há no Procedimento Administrativo Criminal  01/03 uma única certidão relatando o envio dos autos ao juízo competente para apreciação dos fatos, enquanto perduravam as investigações. Somente quando encerradas as investigações, em 5 de dezembro de 2003, portanto, decorrido um ano e quatro meses desde a primeira diligência, o procedimento ministerial foi levado ao conhecimento do Poder Judiciário.


 


Mais ainda: não há como se afirmar ter sido a defesa tratada com respeito, porque apenas tomou conhecimento da investigação pela Imprensa, e, ao comparecer ao gabinete ministerial, pela primeira vez, os promotores de Justiça negaram a instauração de qualquer procedimento para se apurar os fatos. A investigação ministerial não respeitou os prazos processuais e o dever de motivação de suas prorrogações, previstos no artigo 113 do Ato Normativo 168/98 da Procuradoria Geral da República e do Conselho Geral do Ministério Público.


 


Para completar, não foi respeitado no procedimento criminal presidido pela acusação qualquer dos direitos e garantias individuais do acusado, previstos nos artigos 185 e seguintes do Código de Processo Penal, uma vez que todas as pessoas já denunciadas pelos fatos envolvendo a morte do prefeito Celso Daniel foram reinquiridas por diversas vezes pelos promotores-inquisidores sobre esses mesmos fatos, sempre sem a presença de seus advogados e sem a advertência de seus direitos constitucionais. O que se vê, portanto, é que a condução do procedimento administrativo que culminou na denúncia de Sérgio Gomes da Silva representou uma verdadeira perversão do sistema investigativo e acusatório adotado pela legislação processual pátria, exigindo, portanto, a intervenção da Corte Suprema para determinar o trancamento da ação penal ou, ao menos, para declarar a nulidade de todos esses atos ministeriais, a fim de que sejam desentranhados do feito.


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