Utilizando-se de frases elegantes mas contundentes, o arquiteto Fábio Vital, ex-coordenador-geral do Fórum da Cidadania e integrante do Conselhão Regional, instância de consulta desta revista digital, afirma nesta Entrevista Especial que a regionalidade da Província do Grande ABC virou pó. "A sociedade civil, destroçada em meio a um processo antropofágico de cooptação e fadiga cívica, desistiu do projeto regional literalmente rifado por condução equivocada e descontínua" -- disse Fábio Vital nesta que é a primeira de uma série de ações jornalísticas que tem como foco principal a exposição de problemas, virtudes e soluções para a Província do Grande ABC formulada principalmente por agentes sociais que praticamente não constam da agenda da mídia regional. Trata-se, como se sabe, de um projeto de exclusão com cartas marcadas porque invariavelmente o noticiário é dominado pelas figurinhas carimbadas de sempre que, em conluio permanente, em grande escala, evitam descer às minúcias da realidade regional.
Fábio Vital tem história como um dos mais importantes agentes de uma regionalidade que se esvaiu depois que o Fórum da Cidadania se extinguiu como uma constelação de estrelas e coadjuvantes em busca de alternativas para o desenvolvimento sustentado da Província do Grande ABC. Criado em meados da última década do século passado, o Fórum da Cidadania conseguiu mobilizar boa parte da sociedade, mas se perdeu na falta de objetividade e no excesso de objetivos sem contar com dispositivos estruturais, metodológicos e estratégicos para dar suporte à alta demanda de decisões a que se impôs.
Leiam na íntegra a entrevista com Fábio Vital, realizada pela Internet:
Qual é a sensação que você tem hoje, decorridos tantos anos pós-lançamento do Fórum da Cidadania? Entendemos que vivemos uma situação regional bem pior do que a que nos motivou a participar daquela empreitada. Estaríamos exagerando?
Fábio Vital – Após duas décadas, tenho um sentimento que mistura orgulho com frustrações. Orgulho por ter compartilhado com tanta gente interessante um momento regional vibrante, intenso, idealista, suprapartidário e diria até visionário do futuro desejado da região do ABC. O Fórum da Cidadania colocava-se como espaço privilegiado da sociedade em meio à “vanguarda” da época. Frustrações, pelo fato de o Fórum ter ignorado a própria capacidade de implementar e resistir aos desafios da política provinciana, dos interesses pessoais e corporativos, imaginando que os compromissos selados em prol do ABC seriam duradouros e preservados acima de outros interesses.
Não vejo como exagero despido de eventual romantismo, que estamos numa situação regional bem pior. Perdemos sim e muito nos diversos setores da sociedade. Apos o assassinato do maestro político regional, o que se colocava como “vanguarda” resultou em tímidos avanços. Até os discursos de regionalidade saíram da pauta, pois, pelos resultados alcançados, já não motivam ninguém. A sociedade civil, destroçada em meio a um processo antropofágico de cooptação e fadiga cívica, desistiu do projeto regional literalmente rifado por condução equivocada e descontínua.
Como ex-coordenador do Fórum da Cidadania, você entende que tenha faltado planejamento estratégico diretivo para que todo aquele trabalho não se perdesse? À parte os erros de estratégia aplicada à agenda de tarefas por demais múltiplas, você não acha que o grande erro foi o vácuo de planejar os passos da própria instituição, de forma a evitar, entre outros equívocos, exatamente a tentativa de abraçar o mundo regional?
Fábio Vital – Hoje se torna fácil e claro entender que abraçar o mundo é sempre uma empreitada inglória, bem como construir um castelo de areia à beira- mar. Mas creio que o Fórum foi vitima principalmente do chamado fogo amigo e da fragilidade institucional, calcadas numa autoimagem superestimada e em compromissos que jamais seriam cumpridos. Afinal, exigiam-se desprendimento, interesse público acima dos (repetidamente e unanimemente) interesses corporativos, partidários e pessoais, cujos desdobramentos históricos auto explicam-se.
Se fosse escolher o momento crucial da derrocada do Fórum da Cidadania, que momento escolheria?
Fábio Vital – O momento de criação da Câmara Regional do ABC, pois o Fórum se colocava num papel realmente estratégico, porém de alto risco.
A condução do Fórum da Cidadania, subordinada ao Diário do Grande ABC, não influenciou na derrocada do movimento, entre outros motivos porque os participantes entregaram àquela publicação a responsabilidade de animar o processo?
Fábio Vital – Creio que existem varias vertentes de análise. Diário, sem duvida nenhuma, teve papel estratégico na repercussão das discussões e na visibilidade da entidade, inclusive em divulgar discussões e desdobramentos pioneiros para a época, como as ambientais, comuns nos dias de hoje. Claro que o outro lado da moeda eram noticias novas que ali se produziam, polêmicas e outras tantas de interesse do jornal e que também o legitimavam.
Vale lembrar também que a sociedade do evento, movida por vaidades e por sucessos momentâneos, também estava lá representada. Mas à medida que o conteúdo foi esvaindo junto com a saída de lideranças em busca de projetos pessoais, o cenário ficou ainda mais critico, apesar do empenho e esforço de algumas entidades.
Em outra vertente, podemos ainda considerar que os diversos apoiadores entenderam que o Fórum da Cidadania já havia cumprido sua missão, a despeito da nobreza de propostas e benefícios regionais porventura desenhados, e que estrategicamente deveriam ser conduzidos de outra forma e por outros atores, considerando que quando o jogo fica profissional, excluem-se os amadores da peleja.
Como você observava a cláusula pétrea que dominou o Fórum da Cidadania, cujas deliberações foram escravizadas pelo consenso, conceito que, mais adiante, ante as dificuldades, acabou ganhando um novo formato que, de fato, negava a própria essência do termo?
Fábio Vital – Quando o avião está em pleno voo, o conserto tem de ser aquele que o impeça fundamentalmente de cair. Nesse caso, as decisões que eram obrigatoriamente por consenso, ou seja, unânimes, em meio a interesses muitas vezes velados e discussões estratégicas, requeriam trabalhos árduos e às vezes insanos de convencimento de pessoas que tinham apenas o discurso do coletivo. Entretanto, uma das bandeiras regimentais da entidade ironicamente foi alterada para dar celeridade a alguns debates e decisões.
Qual sua avaliação histórica sobre o prefeito Celso Daniel?
Fábio Vital – Foi uma pessoa singular que tive o privilégio de conhecer e conviver durante os anos do Fórum e do Comitê de Bacias. Um político que reunia muitas qualidades: densidade teórica, prática política, visão estratégica de futuro e de conjunto, valorizando os diversos atores de cada processo, a despeito de serem politicamente alinhados. Entendia e valorizava a participação da sociedade civil, dos empresários e demais forças sociais. Durante o período eleitoral (95/96-99/-00) o Fórum da Cidadania havia promovido diversos debates e uma pauta de compromissos locais e regionais em que os candidatos ficariam compromissados, e ele sem pestanejar assinou. Nesse período, tirou o Consórcio Intermunicipal da UTI, colaborou na estruturação da Câmara Regional do ABC, Agência de Desenvolvimento Econômico, Subcomitê de Bacias Billings e Tamanduateí.
Trouxe experiências internacionais focando o desenvolvimento econômico na construção de uma agenda comum para um projeto denominado Planejamento Regional Estratégico, composto de 40 programas. No âmbito local, coordenou pessoalmente o projeto Santo André Cidade Futuro 2020, no qual a cidade era tratada como um todo, potencializando suas diversas centralidades e vocações socioeconômicas, entre outras.
Tenho certeza que Celso Daniel seria um excelente ministro do Governo Federal, caso não fosse prematuramente morto. Desde então, penso que muitos se beneficiaram politicamente de seus projetos, às vezes sem dar o devido credito. Em grande medida o que temos de novo é em grande parte quinhão desse legado que perdeu ao longo do tempo o rumo, conceitos e objetivos.
Afirmamos reiteradas vezes que Luiz Marinho, prefeito de São Bernardo, é uma decepção até agora em termos de liderança regional, porque tem-se prendido à agenda municipalista e obreira, enquanto Celso Daniel, maior referência em termos de regionalidade, pautou-se pela extroversão além-Município e fez projeções e planos estratégicos para o ano 2020. Como você analisa esse quadro? Estamos exagerando?
Fábio Vital – Já ouvi diversas vezes de chefes do Executivo que, embora as ações regionais sejam importantes, os votos são locais. É uma pena, pois imaginar que as ações regionais ou metropolitanas não interfiram diretamente em nossa economia e competitividade é um tremendo equivoco.
Vale ressaltar que crescimento é diferente de desenvolvimento, e que planejamento bem feito implica diretamente em economia e potencialização de recursos aplicados. Nesse sentido, tenho visto o definhamento e a acefalia das estruturas regionais que dificilmente decolarão dentro dos propósitos com que foram criadas. O Consórcio Intermunicipal criado há 21 anos, com a demanda de propor soluções integradas dos resíduos sólidos (cá entre nós, custam uma fortuna para as prefeituras), não conseguiu atingir o propósito. Por que será? Outro ponto era a fiscalização integrada dos mananciais que, acredite ou não, completou a maioridade.
O prefeito Luiz Marinho não fugiu aos demais, frustrando as expectativas quanto às ações regionais. Se reeleito, espero que dê ênfase objetiva às políticas regionais, caso almeje alçar outros voos políticos. São imprescindíveis em escalas regionais e metropolitanas.
Que nota você daria de zero a 10 se fosse estabelecer uma perspectiva de mudança do quadro institucional da região nos próximos 10 anos? Você daria uma nota baixa, porque está profundamente preocupado com o que estamos vivendo, escolheria um caminho do meio, que significaria confiança com cautela, ou apontaria uma nota elevada de extrema confiança?
Fábio Vital -- Daria uma nota 3. Claro que estou preocupado com a região à mercê do crescimento urbano equivocado e sem planejamento. Estamos historicamente a copiar os principais problemas da cidade matriz, São Paulo, sem arrecadação e protagonismo político da original. Isso é suicídio!
Esses problemas e suas consequências poderão implodir nossa perspectiva de sustentabilidade e competitividade, situação apontada há muito tempo. Parece que vivemos ainda sob a velha lógica de que tudo pode ser consertado ou adaptado. Claro que não. Isso é alimentar a desgraça social, a deseconomia, quadro que, em contrapartida, engorda as contas polpudas de empreiteiras que adoram o faz e desfaz, a cobrar pela urgência e complexidade ou aparecer com soluções milagrosas e caras.
Não podemos esquecer que, complementarmente, respingarão no ABC as consequências urbanas decorrentes da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas. Quem fez a lição de casa? Continuamos com o sentimento de “gata borralheira”, à parte do processo político decisório e muito aquém de nossas potencialidades. Vivemos ainda na era da personificação e da política de botequim. Ter saído daqui um presidente e alguns ministros, ironicamente, não alterou conceitos e estratégias de ação coletivas. O Grande ABC, nesse quesito, ainda é muito pequeno.
Quais são os três maiores problemas regionais que observa? Onde estamos perdendo fôlego ou já esgotamos todas as reservas para recuperação?
Fábio Vital – O ABC, por incrível que pareça, tem absorvido equívocos históricos, perdendo espaços significativos, mas ainda é viável e estratégico no contexto nacional. Alguns problemas acabam tendo visibilidade maior que outros, porém são sintomas de um doente que clama por tratamento estrutural, profissional e competente. Assim, destacaria as seguintes: transporte coletivo integrado de qualidade; planejamento urbano sustentável com ênfase nas áreas produtivas e segurança pública efetiva.
Há muito escrevemos que o fracasso do Fórum da Cidadania significaria maior desequilíbrio do sistema que determina o avanço de uma comunidade, no caso Governo, Mercado e Sociedade. O senhor também entende que o Governo, na forma de administrações municipais, está deitando e rolando e com isso a pauta de execuções imprescindíveis ao desenvolvimento regional foi subvertida e inviabilizada? A Sociedade sumiu mesmo? E o Mercado está cambaleante, depois da desindustrialização?
Fábio Vital – Cidadania fortalecida significa democracia forte, desenvolvimento compartilhado e economia confiável. No entanto, sociedade civil combativa, questionadora e participativa, pela retrospectiva proposta, parece boa e indispensável para os outros.
Num País onde não se identifica claramente esquerda e direita, não há oposição estruturada e o meio político cria instrumentos de blindagem cada vez mais eficazes, para quê introduzir mais problemas nas equações de governabilidade, além dos conhecidos e previamente mensurados? Os meios de comunicação, com raríssimas exceções, internalizaram o conceito de tal maneira que, não fosse a internet, estaríamos todos imbecilizados. Nesse contexto é inevitável a sociedade ficar para depois, senão a conta não fecha e o lado que paga as contas quanto mais desarticulado e vulnerável, melhor. No entanto, não esquecer do verniz de “parecer” ao invés de “ser” e de ter um participativo bem “participassivo”.
Lamentavelmente a história demonstra a derrocada de países que introduziram tais práticas e fizeram renascer ditadores e regimes totalitários, como partidos de extrema direita em franca ascensão na Europa. Estamos empurrando a sociedade para esse abismo num futuro próximo, jogando no lixo a luta democrática, que parece peça de museu para alguns partidos. Parece prático governar nesse ambiente do “deitando e rolando”; no entanto, é frágil, inconsistente, imoral e insustentável.
Tivemos recentemente o estouro do escândalo do Semasa que, ao contrário do que alguns veículos de comunicação afirmam, não se trata de supostas irregularidades, mas de autênticas e cansativas irregularidades naquela autarquia. Como vê o desenrolar do caso até agora, com evidentes sinais de abafamento?
Fábio Vital – É lamentável se de fato for comprovado. Vejo uma indústria de escândalos especialmente próxima a eventos eleitorais com interesses e interessados diversos. È mais um sinal de que numa democracia forte essas questões teriam desdobramentos mais concretos e definitivos. O Semasa é uma autarquia que tem historia técnica e de prestação de serviços importante à cidade. Muito maior do que as turbulências que enfrenta.
De novo falando do Fórum da Cidadania: é possível recuperar aquele movimento, com nova marca, novos agentes, ou estamos irremediavelmente batidos?
Fábio Vital – Creio que não é uma tarefa muito simples, embora razões não faltem. Se os vícios do passado não fossem repetidos e pudesse estruturar-se num outro patamar de ação e de sustentabilidade político-social, creio que seria muito interessante. A questão em contrapartida é que nesse setor boa parte das ONGs deixaram de lado seus propósitos e a sociedade tem muita razão também de ter o pé atrás.
Qual sua avaliação sobre a questão da mobilidade urbana cada vez mais comprometida na Região Metropolitana de São Paulo?
Fábio Vital – É uma mistura de insanidade com irresponsabilidade de norte a sul do País e em todos os níveis de governo. O governo federal responsável por uma serie de medidas estruturais, até pelos eventos internacionais que sediará, anda timidamente nas intervenções dizendo que tem preocupações sustentáveis e ambientais e em contrapartida diminui o imposto dos automóveis e incentiva o transporte individual e o subsidio do metanol. A Região Metropolitana, apesar de roupagens e cosméticos institucionais, continua sem planejamento, intervenções conjuntas e, portanto, muito longe de soluções estruturais.
No âmbito dos municípios, os planos diretores mostraram-se frágeis frente ao mercado imobiliário voraz e predador, permitindo adensamento populacional sem contrapartida de infraestrutura. O transporte público continua caro e de péssima qualidade. É melhor ficar parado dentro do carro, ouvindo musica. Passando a régua: lucro privatizado e prejuízos socializados.
O que esperar dos mananciais da Província do Grande ABC, uma de suas especialidades como analista?
Fábio Vital – Lamentavelmente olhamos os mananciais como ônus e não como recursos. De um lado, os xiitas ainda acreditam que uma muralha de oito metros e uma guarda armada resolveria. De outro, a ocupação de qualquer forma para todo tipo de usos. O caminho central ainda está longe de ser viabilizado. Se a floresta vale mais deitada do que em pé, há de se analisar que para valer mais em pé deva ter incentivos polpudos, pois o inferno está cheio de boas intenções. Agora, se manancial é para proteger e guardar água, e água é um bem econômico com clientela cativa e vendida cada vez mais cara, já identificamos a fonte de financiamento. Fora isso são delongas e conversas para deixar municípios e populações dessas regiões na exclusão social e econômica. Basta comparar São Caetano com Rio Grande da Serra. A região urbanizada não deu conta dos recursos e potencialidades da outra porção maior e melhor. Nessa terra de cego, não apareceu sequer um olho, mesmo que estrábico.
Você acha que somos Grande ABC ou Província do Grande ABC?
Fábio Vital – No meu intimo e às vezes debatendo com pessoas de outras regiões, tendo a falar com o coração, porque sinto que é grande, têm vocações complementares, potencialidades conhecidas e outras a serem desenvolvidas, além de um povo historicamente trabalhador e responsável, mas na prática conduzida de maneira pequena, com pensamentos e autoestima pequena, politicamente pequena, setorialmente desarticulada, subordinada a decisões externas, incapaz de trabalhar efetivamente em conjunto, avalizar e cumprir metas de médio e longo prazos.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira