Li praticamente tudo sobre a influência do mensalão nas eleições municipais, porque os jornais exploraram o assunto com alguma frequência, embora sem a profundidade exigida pelos mais inquietos. Os chamados cientistas políticos foram alçados ao pedestal de sapiência, como sempre ocorre. Eles são ardilosos, falam e escrevem com refinamento, reúnem argumentos que parecem irrebatíveis, mas pecam sempre e sempre por conta de uma realidade que os condenam à síntese do academicismo: não entendem de povo porque parecem fugir do povo.
O Instituto Datafolha destruiu os argumentos utilizados por eles e os políticos em geral interessados em tapar o sol dos vereditos do STF com a peneira da embromação para tentar fazer crer que o mensalão não representou nada ou quase nos resultados na Capital paulista. Fosse a pesquisa feita na Província do Grande ABC, os resultados seriam similares. No Estado de São Paulo, excluída a Grande São Paulo, os números seriam provavelmente ainda mais fortes.
O que revelou o Datafolha nas páginas da Folha de S. Paulo? Leiam um trecho da matéria publicada na edição de ontem:
Os paulistanos relacionam os temas locais a sua opção eleitoral. A metade do eleitorado cita as condições da cidade entre os fatores que tiveram muita influência em seu voto, e 47% mencionam as propostas dos candidatos – entre os eleitores de Haddad, são 55%. Mas não foi desprezível o impacto do tema nacional mais abordado na campanha: o julgamento do mensalão pesou na decisão de quase a metade dos eleitores de Serra e de um terço dos que não votaram em ninguém. No total, 46% (dos entrevistados) disseram que o caso mais grave de corrupção no governo Lula teve muita ou alguma influência no voto. Outros motivos de disputa e controvérsia no pleito paulista – a influência da Igreja, das pesquisas eleitorais, das alianças partidárias, do horário gratuito e da idade do candidato – foram descartados pela ampla maioria.
Entrevistas ao Valor Econômico
Pinço uma matéria especial do jornal Valor Econômica, publicada no dia seguinte às eleições em São Paulo, como prova provada de que nem tudo que reluz é ouro no mundo das análises político-eleitorais. Sob o título “Problemas locais determinaram voto”, aquela que é uma das melhores publicações do País ouviu os cientistas políticos Renato Lessa, professor da Universidade Federal Fluminense, e Jairo Nicolau, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Primeiro, as declarações de Jairo Nicolau sobre o impacto do mensalão nas eleições:
O estrago que o mensalão fez no PT foi em 2006, quando Lula foi para o segundo turno e a bancada do partido foi afetada. Na eleição local, o que está em jogo é a melhor gestão da cidade. O tema do mensalão apareceu pouco no horário eleitoral em São Paulo. Se tivesse grande impacto, Haddad não teria o desempenho que teve no primeiro turno, que também foi excepcional, quase 30% dos votos.
Agora, as declarações de Renato Lessa:
Esta eleição é forçosamente local. Tanto que a expectativa de que o julgamento do mensalão afetasse os resultados do PT em centros importantes não se deu. Eleições locais têm sua gravitação particular. Há uma dinâmica política local que ainda que mantenha ligações com o resto do sistema tem sua lógica própria, suas próprias idiossincrasias. Por outro lado, em cidades importantes como São Paulo, as eleições nunca são só locais. Não dá para imaginar que uma disputa entre José Serra e Fernando Haddad, PSDB e PT, é só uma disputa para prefeito. Em eleições locais de grandes centros, vemos envolvidas todas as dimensões do sistema político.
O mais interessante, quando não intrigante, nas duas entrevistas da matéria especial do Valor Econômico, é que os níveis estratosféricos de rejeição ao candidato tucano não foram sequer mencionados, embora aparecessem duramente nas intenções de voto.
Massacre no debate
Provavelmente os danos causados ao PT na reta de chegada das campanhas eleitorais na Capital e na Província do Grande ABC, áreas mais suscetíveis à clivagem com o PSDB, teriam sido ainda maiores não fosse a competência de Fernando Haddad no debate da TV Globo, quando questionado por José Serra sobre o escândalo denunciado pelo petebista Roberto Jefferson. Haddad, que deu um show de bola no adversário durante todo o debate, jogou a bomba no colo do tucano ao referir-se à incubadora do mensalão petista, gestada no governo de Eduardo Azeredo, em Minas Gerais.
José Serra cometeu um pecado mortal para quem, naquele bloco do debate, contava com a iniciativa do questionamento e da réplica: não soube preparar a armadilha para o adversário e, pior ainda, não se organizou para uma previsível resposta que remetia à origem menos tentacular e tampouco tão profundamente volumosa dos tucanos. Quem esperava um ataque mortal ao petista (e a audiência de 20% foi bastante expressiva para aquele horário) se sentiu de calças curtas.
Voltando aos chamados cientistas políticos, confesso que acompanhei a todos com a insatisfação de quem não se presta apenas a passar os olhos sobre as linhas impressas de jornais, revistas e sites. Cada frase recebe uma carga crítica da qual não me livro porque me acostumei a ler como jornalista, não apenas como leitor. Leio tendo sempre à mão uma caneta esferográfica de tinta preta. Sublinho todas as frases mais interessantes, às quais retomo a leitura ao final do texto para fixar aquelas informações seletivas na memória. O mensalão visto como um acontecimento corriqueiro, sem influência alguma na disputa paulistana e também na região, jamais me convenceu. E não foram poucos os articulistas que deram essa conotação tangencial ao julgamento com direito a edições contundentes do Jornal Nacional.
Consenso danoso
Não foi, aliás, por outra razão, entre outros casos, que produzi um texto disponível nesta revista digital sobre os números finais das eleições em São Bernardo. Lá, Luiz Marinho ficou 10 pontos percentuais abaixo da vitória do tucano William Dib oito anos antes. Marinho fez uma primeira gestão muito acima da média em termos municipais (a regionalidade é algo mais que estranho na cartilha da principal estrela petista da região), mas nem assim se aproximou dos números históricos de William Dib. Tinha tudo para tanto, porque seu adversário, Alex Manente, assim como o petista Vicentinho Paulo da Silva, de Dib, apenas marcou território como coadjuvante, sem grandes recursos financeiros.
Estou cada vez mais convencido, como leitor voraz que sou de todos os assuntos, de que há um consenso danoso a imperar na mídia em geral, da área esportiva à política, da economia às questões urbanas, entre tantos temários: faz-se um esforço sobre-humano de autopoliciamento opinativo. O que isso significa? Significa que a maioria, a quase totalidade, se expressa de olho, ouvidos e coração conectados às possíveis reações de ouvintes, leitores e telespectadores. Temem, por isso, exporem-se a intempéries, a chuvas e trovoadas de uma audiência majoritariamente acomodatícia, politicamente correta. Uma audiência, digamos, hipócrita, porque, no fundo, no fundo, e os números eleitorais mostram isso com contingentes cada vez maiores de abstenções, gostaria de ouvir, ler ou assistir gente com opiniões embasadamente mais abrasivas, por assim dizer. À abundância de uma maioria que se utiliza da mídia para passar conhecimento sem a coragem a eventuais enfrentamos, temos outra parcela que, em várias áreas, principalmente no esporte, opta pelo deboche, pelo sensacionalismo, por um tipo de atuação que despreza, quando não sufoca, a importância social das questões abordadas.
Tomara que os números do Datafolha estimulem mea-culpa em todos aqueles que usam veículos como ferramenta de relações públicas. Jornalismo é outra coisa.
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19/11/2024 PESQUISAS ELEITORAIS ALÉM DOS NÚMEROS (24)