Sérgio Gomes da Silva é o alvo que integrantes do Ministério Público de Santo André escolheram para cristalizar a morte do prefeito Celso Daniel como assunto político. Diferentemente, portanto, da apuração de forças policiais estaduais e federais que consideraram o primeiro amigo do então prefeito de Santo André também vítima do sequestro seguido de morte daquele que seria um dos principais homens de Lula da Silva na presidência da República. Onze anos depois, a PEC 33, Proposta de Emenda Constitucional, escancara os limites de atuação do Ministério Público em investigações criminais. Nada melhor para a ressurreição social de Sérgio Gomes, apesar das sequelas da execração pública consumada ao longo dos tempos.
Sérgio Gomes da Silva só não está preso porque recorreu ao Supremo Tribunal Federal. Vive dependurado numa liminar que o retirou de presídio depois de sete meses, entre o final de 2003 e meados de 2004. Tudo indica que seu dia de alforria está chegando. A PEC, por mais que eventualmente possa ser flexível nas atribuições legais do Ministério Público, jamais terá prerrogativas constitucionais que se assemelhariam à ação dos promotores criminais de Santo André durante as investigações da morte do prefeito Celso Daniel. A PEC jamais será absolutista como as apurações dos promotores criminais. Daí, nada mais lógico que o resgate da vida de Sérgio Gomes, proscrito social massacrado por avalanche de acusações que se contrapuseram às minuciosas investigações de forças-tarefas policiais estaduais e federais.
A debilidade legal da atuação do Gaerco (Grupo de Atuação Especial Regional para Prevenção e Repreensão ao Crime Organizado), divisão do Ministério Público Estadual instalada em Santo André pós-assassinato para atribuir a morte do prefeito a um ramal de suposta rede de propinas, é esmiuçada na defesa de Sérgio Gomes da Silva no Supremo Tribunal Federal. O reforço da PEC era inesperado. Os poderes investigatórios na área criminal pelo Ministério Público até recentemente foram tradados com reservas excessivas. Até que virou prioridade no Congresso Nacional. O criminalista Roberto Podval produziu ao Supremo Tribunal Federal argumentos e provas que colocam a atuação dos promotores criminais em situação desconfortável mesmo sem a visibilidade da PEC 33.
Violência urbana
Roberto Podval lembrou que a investigação levada a cabo pelo Polícia Civil Paulista e pela Polícia Federal foi ampla “e não descartou, sem antes apurar, qualquer linha investigatória”. Escreveu Podval que o delegado do DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), Armando de Oliveira, questionado sobre o possível envolvimento de Sérgio Gomes no sequestro e morte do prefeito, esclareceu que antes de alcançar o fio da investigação, devastou-se a vida do prefeito e das pessoas que o orbitavam,” e nada foi comprovado nesse sentido”. Por isso, explicou Podval, chegou-se à conclusão segura de que não houve motivação política e que o prefeito Celso Daniel foi vítima da violência que aterrorizava a população dos grandes centros urbanos. “Bem por isso, o inquérito da Polícia Federal foi arquivado e o inquérito da Policia Civil, que contava com 10 volumes, sem considerar apensos e anexos, resultou em denúncia criminal, pelo delito de extorsão mediante sequestro com resultado de morte, a seis integrantes da quadrilha da Favela Pantanal, em Diadema, responsável pela autoria dos fatos” – explica Podval.
Arbitrariedades e parcialidades dos promotores criminais que conduziram o assassinato de Celso Daniel ao campo administrativo da Prefeitura de Santo André são apontadas pelo criminalista Roberto Podval como elementos que colidem frontalmente com questões que agora começam a ser mais detalhadamente avaliadas e dimensionadas no âmbito da PEC 33. “A acusação foi fruto de investigação ministerial que se iniciou posteriormente às investigações policiais, isto porque, em que pese as investigações da força-tarefa policial, os membros do Ministério Público lotados no Gaerco de Santo André instauraram investigação ministerial com o mesmo fim da investigação policial. A portaria é clara e indica que os promotores do Gaerco instauraram uma investigação autônoma para apurar, em suas palavras, definitivamente, os fatos que vitimaram Celso Daniel, pois não acreditavam que o inquérito policial tivesse chegado a uma conclusão que fosse a verdade real. Por isso, os promotores do Gaerco de Santo André iniciaram uma investigação completamente nova, desgarrada da investigação policial, inclusive repetindo oitivas de pessoas que já haviam sido ouvidas pela Polícia Civil” – afirma Podval.
A expectativa de que a PEC 33 antagonizará o absolutismo investigatório registrado no caso Celso Daniel está fundamentada na peça de defesa de Roberto Podval também quanto aos procedimentos do Gaerco em relação ao regramento legal. Podval afirma que para o MP Sérgio Gomes fazia parte de um esquema de corrupção na Prefeitura de Santo André que recebia propina de empresas de transporte e o prefeito Celso Daniel teria tomado providências para acabar com a fraude ao descobri-la. Por isso, para a permanência do esquema de corrupção, Sérgio Gomes teria friamente arquitetado a morte de seu amigo Celso Daniel, contratando os membros da quadrilha e encenado o sequestro. “Essa conclusão sobre o envolvimento de Sérgio Gomes nos fatos é particular dos promotores de Santo André e é obtida somente com a realização das investigações ministeriais conduzidas em gabinete. Em nenhum momento no inquérito policial essa conclusão é atingida, como se viu. Para tanto, basta refletir que, em termos históricos, temporária, não haveria denúncia envolvendo Sérgio Gomes, ou aditamento àquela denúncia, se não fosse a realização da investigação ministerial. Para tanto, basta ver que, excluída a atuação do Gaerco de Santo André, o que se terá em termos reais será um procedimento de extorsão mediante sequestro com resultado morte no qual não há formulação de denúncia contra Sérgio Gomes” – explica.
Investigação isolada
O criminalista também afirma que a análise de cada um dos elementos que sustentaram a denúncia do Ministério Público contra Sérgio Gomes demonstra que todos são oriundos de investigações ministeriais. “Ou seja, muito embora algumas pessoas ouvidas na investigação policial tenham sido também ouvidas na investigação ministerial, os depoimentos que embasaram a denúncia contra Sérgio Gomes são todos aqueles produzidos na investigação ministerial, até porque, na ótica do Ministério Público denunciante, somente esse material que produziram, ou seja, a investigação de gabinete, reproduz o que definiram como verdade real. O que se quer dizer é que muito embora os promotores do Gaerco tenham tomado o depoimento de pouquíssimas pessoas, caso consideremos o número de oitivas realizadas, que também foram ouvidas na investigação policial, a investigação tratou-se de nova e autônoma diligência investigação. A conclusão de complementariedade da investigação ministerial no que toca à participação de Sérgio Gomes não condiz com o que se viu da própria portaria de instauração da investigação ministerial que, textualmente, afirmou promover investigação em caráter definitivo para elucidar os fatos, seus verdadeiros autores, e assim promover uma acusação formal em juízo baseada na “verdade real”. Como se disse, a investigação ministerial, declaradamente, pretendeu ser exclusiva, definitiva e autônoma, o que não condiz com a oportuna e nada despretensiosa alegação de complementaridade” – explica o criminalista.
Limites esmiuçados
Os limites de atuação do Ministério Público estão sendo analisados pela Secretaria Nacional de Reforma do Judiciário, juntamente com membros do MP e da Policia. Está em jogo a importância da construção de consenso sob premissas da cooperação e integração entre policias e Ministério Público. Não faltam controvérsias sobre até que ponto o Ministério Público pode atuar na área criminal. Há um grande número de especialistas que não encontram respaldo constitucional à atividade, mesmo que complementar ás investigações das policiais civis.
O juiz federal em São Paulo e professor de Direito Constitucional Ali Mazloum afirmou num texto à revista eletrônica Consultor Jurídico que a PEC 37 é um debate desnecessário. “Cabe exclusivamente à polícia a investigação criminal e, privativamente, ao MP a promoção da ação penal. Funções distintas exercidas por órgãos diferentes, sem relação de meio e fim entre elas. Há incompatibilidade argumentativa do MP, espécie de autofagia, pois não se pode tirar aquilo que não tem. E ninguém acredita que, outorgando-se o poder investigatório ao órgão, possa ele reduzir a cifra negra da impunidade alusiva aos 50 mil assassinatos anuais, dos quais apenas 8% são desbaratados, para espanto nosso e das Nações Unidas, salvo se o contribuinte jorrar pesados investimentos destinados à reformulação do MP, com a criação de uma gigantesca estrutura a ser sustentada paralelamente aos diversos organismos policiais existentes” – afirmou o magistrado.
Já Luiz Flávio Borges D`Urso, advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, e ex-presidente da OAB-SP por três mandatos, é mais contundente sobre os poderes investigatórios do Ministério Público. Também em artigo publicado no Consultor Jurídico sob o provocativo título “Ministério Público quer escolher o que e quem investigar”, D`Urso afirmou: “Basta ler para saber o que o legislador quis. Compete às policias civis a apuração das infrações penais. Então, quando nós lemos a Constituição Federal, nós não temos qualquer dúvida sobre o que pretendeu o legislador. Para o Ministério Público ele também foi claro e deu a atribuição da titularidade da ação penal e também a fiscalização da atividade realizada pela polícia judiciária.” Isso está muito claro na Constituição. Nunca, em momento algum o constituinte autorizou o Ministério Público investigar diretamente infrações penais, o que se realizado consideramos flagrantemente ilegal”.
O ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo foi contundente numa nova sequência de frases: “Então, a premissa é essa. O MP não tem poder para investigar crimes. Tudo o que vem depois é distorção, é falácia, é equívoco. Há quem diga que a PEC 37 vai retirar poderes do MP. Ora, ninguém retira o que o outro não tem. Isto está errado. O MP não tem poderes, portanto não se pode retirar dele o que ele não tem. A PEC vai limitar os poderes de investigação do MP. Não se pode limitar o que alguém não tem”.
Fiscalização constitucional
O criminalista também reservou espaço para opor-se às tentativas de desclassificação da polícia, muito comum entre os defensores de investigações criminais do Ministério Público: “E quando se tenta dizer que há uma banda podre na polícia, que há corrupção, eu quero lembrar que isso não é privilégio de nenhuma instituição, porque todas elas formadas por homens, têm as mazelas e as vicissitudes das fraquezas e desvios de comportamento do ser humano. O que precisamos é reagir a isso. Se tivermos uma situação de corrupção, de desvio de comportamento dentro da instituição, há a possibilidade de reagir e extirpar aquilo que trouxe o desvio de comportamento. Assim a função fiscalizatória do MP sobre a polícia precisa ser realizada a contento e não o MP realizar tarefa para a qual não é incumbido pela lei” – afirmou D`Urso.
O artigo do ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo, publicado no Consultor Jurídico, é tão extenso quanto cortante: “Toda essa discussão que se construiu nessa base falsa de que o MP tem poderes para investigar é uma construção de uma colcha de retalhos de uma tese absolutamente frágil e falaciosa. Construiu-se essa tese que não se sustenta no plano legal. Dessa forma, no plano da conveniência social, pode o MP investigar diante dessa divisão que o sistema estabeleceu? Não pode. Não se deve admitir nem a possibilidade de mudanças da lei para lhe conferir tal atribuição investigativa criminal pois essa subverteria o próprio sistema. Ainda se questiona: se o MP pudesse investigar crimes, por que a defesa também não poderia? Vejo argumentos sustentados por autoridades que defendem esses supostos poderes do MP para dizer que quem pode mais pode menos. Se o promotor pode promover ação penal, não poderia ele investigar? Claro que não, e respondo ainda com outra pergunta: se o juiz pode decidir e até condenar, não poderia ele investigar e promover a ação penal? Não, porque as atribuições de cada um são muito claras, precisas e as leis as estabelece de maneira a haver a complementação das atividades, além do controla da própria atividade estatal”.
Leiam também:
Entenda como se construiu a história de crime político
Entenda como se construiu a história de crime comum
Entenda porque a mistura de crime comum e propina não se sustenta
Como entender depoimentos conflitantes dos irmãos?
Entenda como crime comum virou crime de encomenda
Total de 193 matérias | Página 1
11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP