A idéia é antiga, mas pode resolver um problema eternamente atual: o Grande ABC deveria resgatar no governo Lula a discussão e execução dos centros de reciclagem vinculados a um amplo programa de renovação da frota nacional de veículos. A tarefa caberia a ninguém menos que o Grupo Automotivo da Câmara Regional do ABC, grupo de trabalho, entre duas dezenas, que mais decepcionou nesse fórum institucional.
O duplo desafio é lançado por Mario dos Santos Barbosa, vice-presidente do Comitê Mundial dos Trabalhadores da Volkswagen, desejoso de produzir uma reviravolta em duas instâncias que marcam passo na região: a indústria automobilística e a Câmara Regional. Nos dois casos, Mario Barbosa põe fé no que define de cultura automotiva — que habilitaria o Grande ABC a disputar uma sede desses centros — e cultura da negociação, uma virtude a seu ver conquistada pelo movimento sindical.
É sobre a arte de negociar que esse sindicalista se debruça nos últimos 30 anos, desde que começou a trabalhar, em 1972, como eletricista de manutenção na Volks Anchieta e ocupou a vice-presidência e a secretaria-geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC na década de 1980. O tema lhe é tão caro que transformou em dissertação de mestrado sob o título Sindicalismo em Tempos de Crise: A Experiência na Volkswagen do Brasil. No eixo da investigação acadêmica ele sublinha a experiência das comissões de fábrica. Estaria nessas instâncias, segundo Barbosa, a essência da cultura da negociação que permitiu ao Grande ABC projetar-se nas conquistas trabalhistas. Mais particularmente, ele atribui à comissão de fábrica a operação-salvamento da Volks Anchieta.
Mestre em Economia Social do Trabalho pela Unicamp, o metalúrgico tira o abrasivo sindicalismo dos anos 1980 da lista de dificuldades das empresas da região, diz que salários regionais acima dos de mercado não engessam empregos (do contrário, sobrariam vagas automotivas em Betim, Resende e Paraná, argumenta) e dispara contra o neoliberalismo no Brasil. Entende que Collor e FHC praticaram uma modernidade fajuta, com o alto custo humano do desemprego e a regressão da atividade nacional a partir da abertura indiscriminada às importações.
Pelo menos 54% da força de trabalho metropolitana já está na informalidade no Brasil, segundo dados de tribunais trabalhistas. Sua tese sobre a evolução do sindicalismo nacional a partir das lutas dos últimos 20 anos, sobretudo no Grande ABC, toma como base a mobilização no chão-de-fábrica e foca as grandes empresas. O senhor acha que se o ponto-zero fosse hoje — com uso crescente de tecnologias, novas formas de organização do trabalho, terceirização e explosão do trabalho autônomo — o sindicalismo do ABC forjaria o mesmo caráter combativo de anos passados?
Mario Barbosa — Quando dizemos que a ação do sindicalismo na região adquiriu caráter mais propositivo nos anos 1990, não significa que a combatividade tenha diminuído. Quando analisamos as respostas sindicais às políticas econômicas adotadas nos anos 1980 verificamos que as ações das principais categorias — metalúrgicos, petroleiros, bancários e químicos, entre outras — eram impulsionadas por forte motivação de conteúdo econômico. Entretanto, as resistências patronais em atender às reivindicações dos trabalhadores, assim como as restrições impostas pela política salarial e a repressão à atividade sindical contribuíram para que as manifestações dessas categorias ganhassem desde o primeiro instante forte conotação política, apesar do aparente grau de espontaneidade das primeiras greves. Diante da ausência de tradição no campo da negociação coletiva e do predomínio de um sistema autoritário de relações do trabalho, as greves, nesse período, terminavam funcionando como instrumento para forçar a abertura das negociações. Esse processo marcou, portanto, uma forma particular de expressão da combatividade nos primeiros anos da ação do sindicalismo.
Já nos tempos de crise e reestruturação produtiva dos anos 1990, a experiência mostra que, na luta contra as tentativas de precarização do trabalho, a ação sindical no Grande ABC tornou-se mais propositiva. Buscou transformar os desafios em oportunidades para avançar em relação a algumas bandeiras históricas do movimento sindical.
Que exemplos concretos o senhor apontaria como sinais dessa mudança?
Mario Barbosa — São vários os exemplos: a negociação de metas de melhoria de performance das empresas com a correspondente participação dos trabalhadores nos lucros e resultados, a negociação da garantia de treinamento e de reciclagem profissional e o reaproveitamento dos trabalhadores nos processos de terceirização de atividades são alguns. Houve também a introdução negociada de métodos organizacionais modernos como as células de produção e o trabalho em equipe com características de grupos semi-autônomos.
Outro avanço foi a flexibilização do tempo de trabalho com as contrapartidas da redução da jornada e da garantia de emprego. No plano das políticas governamentais, o sindicato teve participação ativa na constituição e nos acordos da Câmara Setorial Automotiva e da Câmara Regional do ABC, assim como na elaboração de propostas para o plano de renovação da frota nacional de veículos.
É verdade que a realidade objetiva estabelece restrições e limitações à luta econômica. No entanto, ao longo dessa trajetória, o sindicalismo na região sempre buscou combinar soluções criativas para superar as dificuldades da categoria com ações mais amplas que extrapolaram o âmbito corporativo. Por isso, tendo em vista que o contexto atual é muito diverso daquele do final dos anos 1970, início dos 1980, parece-me natural imaginar que a ação do sindicalismo hoje não se manifestaria nos mesmos moldes do passado.
De qualquer modo, a pesquisa mostra que ao longo desse período a disposição de luta e a combatividade sempre estiveram presentes nos momentos decisivos. Foram fatores determinantes do avanço das conquistas trabalhistas na categoria metalúrgica da região. Lula, hoje presidente da República, como o grande arquiteto que foi dessa trajetória, é também a expressão maior desse salto de qualidade na prática do movimento sindical.
Uma forte corrente diz que a sociedade pós-industrial e de serviços para a qual o Grande ABC caminha, seguindo tendência mundial, limita as possibilidades da ação sindical. Que força política o senhor vislumbra para os sindicatos num cenário de funda reestruturação das indústrias e de alto desemprego como ainda vivemos? Em lugar da redução de jornada e de participação nos lucros, o que os Metalúrgicos do ABC teriam como mote de mobilização?
Mario Barbosa — É inegável que nos últimos anos o setor de serviços tem apresentado grande expansão no ABC. Contudo, não me parece que o conjunto das transformações recentes, mesmo considerando a redução da atividade industrial, tenha provocado transformação no perfil da atividade econômica a ponto de configurar uma mudança na vocação industrial da região. Segundo dados de pesquisa recente do Inpes/Imes, a indústria já chegou a participar com 51% dos empregos no ABC. Hoje esse número foi reduzido para cerca de 30%. Mas isso não significa que a dinâmica regional não seja mais determinada pelo setor industrial. Afinal, o consumo dos trabalhadores da indústria ainda tem peso importante no movimento dos shoppings, Carrefours e Wal Marts na região, assim como na arrecadação dos impostos municipais.
É importante observar que a abertura comercial estimulou a entrada de novas marcas produtoras de automóveis no Brasil a partir de meados da década de 1990. Tendo se desenvolvido num ambiente de concorrência acirrada entre as empresas, alimentada pelo clima de guerra fiscal, esse processo contribuiu também para acentuar as desigualdades em termos de salários, de jornada de trabalho e de benefícios no setor. Hoje, por exemplo, os salários na Fiat em Minas Gerais são cerca da metade dos níveis salariais no ABC. Quando examinamos a situação nas localidades mais recentes, como Resende, São Carlos, São José dos Pinhais e Camaçari, as disparidades são ainda maiores. Disso resulta que os níveis salariais e de benefícios praticados nas novas regiões passaram a funcionar como âncora, dificultando a negociação de novas conquistas sindicais no Grande ABC.
De qualquer modo, é preciso levar em conta que o Brasil mudou e não seria correto analisar o papel do sindicalismo hoje com os mesmos olhos do passado. Os sindicatos parecem ter compreendido que a batalha econômica é importante, mas também insuficiente para produzir as grandes mudanças pelas quais luta a sociedade brasileira. Disso resulta o forte engajamento sindical também nas lutas mais gerais relacionadas à política e à cidadania. E como não acreditamos no fim da história, é evidente que ainda há muito que fazer. O próximo período constitui, em realidade, um novo ponto de partida onde, do ponto de vista da ação sindical, uma das tendências será buscar melhor articulação nas regiões com a perspectiva de um projeto nacional.
Toda referência da sua pesquisa sobre as conquistas trabalhistas a partir do ABC é feita sobre experiências na indústria automotiva, uma das mais competitivas do mundo e com fôlego financeiro para ceder aos trabalhadores. O senhor mesmo diz que ao longo dos 20 anos pesquisados houve sérias resistências das pequenas empresas para acompanhar a pauta de benefícios dos metalúrgicos. Não foi injusto o movimento sindical tratar desiguais como iguais?
Mario Barbosa — Considero lamentável a ação frequente de formadores de opinião que tentam, por meio da mistificação, responsabilizar o sindicalismo pelas dificuldades que vivem as empresas no Grande ABC, distorcendo às vezes a realidade da região. Quando examinada de uma perspectiva mais ampla, observamos que, embora a desconcentração industrial na região tenha se tornado mais visível a partir de meados dos anos 1980 e sobretudo na década de 1990, em realidade teve início antes mesmo da emergência do chamado novo sindicalismo. Uma das principais motivações desse processo está relacionada aos novos pólos automotivos criados no País já a partir de meados da década de 70, como foram os casos de Betim, Taubaté e Paraná. O processo foi acentuado com a entrada de novas marcas em meados dos anos 1990. Como disse, as novas fábricas constituíram-se em importante fator de atração de empresas de autopeças, o que contribuiu sobremaneira para a desconcentração geográfica do complexo automotivo.
Que peso o senhor atribuiria à ação sindical no quadro de desindustrialização da região, seja na forma de fuga de empresas, de fechamento ou de desconcentração de plantas?
Mario Barbosa — Não resta dúvida de que as montadoras têm maior fôlego financeiro do que pequenas e médias empresas. Por essa razão, mesmo quando eram firmados acordos gerais para a categoria nas campanhas salariais, o sindicato sempre buscou abrir espaço para acordos especiais nas montadoras. De qualquer modo, não considero injustiça o fato de o movimento sindical lutar pela melhoria da qualidade de vida para todos os trabalhadores, sem distinção de gênero, raça, credo religioso, preferência político-partidária ou setor de atividade profissional.
Mas o senhor não admite que o fato de dezenas de autopeças terem se deslocado do Grande ABC para outras localidades tenha a ver também com o sindicalismo combativo da região?
Mario Barbosa — Admito que, nesse processo, alguns empresários que saíram e mesmo parcela dos que permanecem e acreditam na região imaginam que a vida no ABC poderia ser melhor sem o Sindicato dos Metalúrgicos. Contudo, mesmo respeitando a visão de mundo de cada um, percebo que existe às vezes muito exagero — para não dizer má fé — na ação de algumas pessoas que parecem querer transformar as mudanças no perfil industrial do ABC em instrumento de luta ideológica visando, com isso, desqualificar a ação do sindicalismo na região.
A pesquisa mostra que, além dos aspectos já mencionados, o problema está associado também a inúmeros fatores macroeconômicos e conjunturais que devem ser levados em consideração numa análise bem fundamentada. Entre esses fatores destacamos o quadro de estagnação econômica com altos índices de inflação ao longo dos anos 1980, a incapacidade de reação do Estado brasileiro diante do esgotamento do modelo econômico e o fracasso do novo modelo inaugurado por Collor de Mello e aprofundado durante os dois mandatos do governo FHC.
Também pesaram a guerra fiscal e o regime automotivo que escancarou o mercado brasileiro de autopeças às importações a partir da segunda metade dos 1990. A propósito, os temas sobre a reestruturação das autopeças da região e sobre a discussão de conceitos questionáveis como Custo ABC estão analisados em profundidade no trabalho As Fábricas do ABC no Olho do Furacão, tese de mestrado de Jefferson da Conceição defendida recentemente no Centro Universitário Imes de São Caetano.
Ainda sobre evasão, o ex-presidente da Volkswagen Herbert Demel sempre foi ácido em relação ao custo-Anchieta, a ponto de fazer emergir uma planta totalmente nova. Dizia que as dificuldades estruturais, incluindo salários e falta de flexibilidade do sindicato, colocavam a empresa em condições desfavoráveis de competição, sobretudo em relação à Fiat, em Minais Gerais. Demel era só mal humorado ou foi também profético, já que a Volks perdeu pelo segundo ano a histórica liderança brasileira para a Fiat e briga com a GM para não ficar em terceiro lugar?
Mario Barbosa — É possível que o temperamento azedo de Demel tenha também influenciado sua performance como presidente da Volkswagen do Brasil. Contudo, não creio que o problema esteja relacionado ao seu humor ou mesmo a suas declarações, temperadas às vezes com doses um pouco exageradas de terrorismo. O Polo é o símbolo da Nova Volkswagen e é inegável o empenho de Demel no esforço para consolidar a vinda dessa plataforma mundial de veículo para o Brasil, como parte do compromisso assumido entre Volkswagen e Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no final de 1997.
Contudo, é importante ressaltar que as condições que tornaram possível reverter a tendência acentuada de perda de competitividade e de redução das atividades da planta no ABC começaram a ser construídas ainda em meados dos anos 1990 a partir de iniciativa do sindicato. Na época, cedendo à pressão do sindicato e da comissão de fábrica, a direção da Volkswagen aceitou abrir discussão com os trabalhadores em relação ao futuro da unidade Anchieta. As discussões tiveram início por meio de um processo de negociação denominado Construindo o Futuro. No workshop realizado em março de 1995 em Atibaia, que inaugurou a abertura dessas negociações, o presidente do sindicato, Luiz Marinho, fez um pronunciamento no qual já buscava chamar a atenção para o acirramento da concorrência entre as montadoras no Brasil. Na época, a Ford apresentava os melhores índices de produtividade, superiores até mesmo aos da Fiat. Portanto, seria equivocado fazer essa discussão sem levar em conta também que a perda de liderança da Volkswagen para a Fiat e a briga com a GM coincide com o auge de um processo de profunda reestruturação do complexo industrial da Anchieta.
Por que razão, ao analisar a experiência das comissões de fábrica nas montadoras, o senhor destaca como emblemática a experiência na Volkswagen do Brasil?
Mario Barbosa — Em primeiro lugar é importante ressaltar que cada comissão de fábrica no ABC, e não apenas nas montadoras, tem uma história muito rica e algumas têm sido também objeto de pesquisas. Meu trabalho não comportava tratamento em profundidade nesse campo. Por isso limitou-se a registrar as condições de surgimento das comissões de fábrica nas montadoras. O destaque para a Volkswagen deve-se, primeiro, ao fato de ser a empresa na qual tive, ao longo de três décadas, contato direto com essa realidade na condição de trabalhador e, posteriormente, como sindicalista. Segundo, a escolha se justifica por ter sido a Volkswagen a empresa na qual o passado de cultura autoritária predominante até meados dos anos 1980 apresenta também o contraste mais marcante quando examinamos o novo padrão de relacionamento construído a partir da ação da comissão de fábrica na empresa. Há aspectos comuns a outras empresas, como a conquista de maior respeito por parte das chefias na relação com os trabalhadores, o combate às injustiças contra os trabalhadores no cotidiano da fábrica, o fortalecimento do poder sindical e o avanço em relação aos direitos trabalhistas. No caso da Volkswagen, no entanto, a experiência se diferencia pelo fato de que ali os trabalhadores avançaram também na conquista de um padrão de relacionamento interno que em muitos aspectos se aproxima do modelo de co-determinação vigente nas unidades da empresa na Alemanha.
Considerando essa participação do sindicato e da comissão de fábrica na reestruturação da planta Anchieta, que peso o senhor atribui à ação sindical na Volkswagen como fator de atração de novos investimentos para a região?
Mario Barbosa — Acredito que as negociações na Volkswagen do Brasil a partir da segunda metade dos anos 1990 tiveram significado especial na definição do futuro da planta no ABC. O ano de 1997 marcou o momento na Volkswagen em que começaram a se traduzir em ações concretas os acúmulos construídos a partir da Câmara Setorial Automotiva e no programa Construindo o Futuro. O conteúdo dos acordos firmados na empresa a partir de 1997 expressa, de forma crescente, a preocupação em construir uma perspectiva de fortalecimento da planta associado à garantia dos empregos no ABC. Da mesma forma que em 1997 a direção da Volks assumiu o compromisso de instalar a plataforma do novo Polo na Anchieta, as negociações da semana de quatro dias em 1998 e em especial o acordo de 2001, concluído na Alemanha, referente ao compromisso de a matriz direcionar novos investimentos à planta, tudo isso representa, sem dúvida, um peso considerável na atração de investimentos adicionais para a fábrica no ABC. Tanto que a grande expectativa se volta, neste momento, para a decisão sobre a produção do novo modelo Tupi.
Embora guardando as especificidades da cultura sindical brasileira, em especial no aspecto do envolvimento do chão-de-fábrica no processo de mobilização e de tomada de decisões, o planejamento da ação sindical na negociação com a empresa é semelhante em muitos aspectos à forma como é feito na Alemanha. Isso, no entanto, não nos permite prever até que ponto as relações de trabalho na Volkswagen do Brasil poderão ser organizadas, no futuro, com base no modelo da co-determinação.
Por que as comissões de fábrica não vingaram em larga escala nas pequenas empresas? Por que organizações de menor porte resistem à participação dos trabalhadores nas questões centrais de seus negócios, ao contrário das montadoras que, como o senhor citou, hoje até discutem com funcionários custos e tipo de veículo que o Brasil pode fazer?
Mario Barbosa — Esse aspecto merece melhor tratamento em pesquisas futuras. Meu trabalho apenas sugere que o problema estaria relacionado a uma cultura empresarial autoritária associada à ausência de aparato legal favorável à organização nos locais de trabalho, e também a uma cultura conservadora predominante em boa parte do movimento sindical brasileiro. Na visão dessas correntes sindicais, as comissões de fábrica representariam um freio para o avanço das lutas dos trabalhadores. Essas correntes argumentam, por exemplo, que o estatuto da comissão de fábrica negociado entre sindicato e empresa constituiria um desvio do movimento operário. O discurso, portanto, é de que as formas de organização dos trabalhadores não são matéria de discussão com o patrão. Com base nessa concepção, consideram que o papel das comissões de fábrica, no caso do ABC, estaria limitado à promoção da conciliação e da parceria com as empresas, em prejuízo dos trabalhadores.
Além desses aspectos, a pesquisa chama a atenção para algumas especificidades que também diferenciam a experiência do ABC quando comparada às lutas da classe trabalhadora brasileira anteriores à década de 1980, sobretudo o fato de estar localizada no setor moderno da economia brasileira e de ter buscado inspiração na experiência internacional. No entanto, assim como vimos no exemplo da Volkswagen, a princípio, mesmo nas montadoras nas quais já existia uma cultura de relacionamento mais democrático com os sindicatos nos países de origem, a prática adotada no Brasil também era do tipo “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
O senhor distingue os momentos de luta sindical por década. Nos anos 1980 o caldo de cultura da ditadura militar, a crise da dívida brasileira e os sucessivos planos econômicos para conter a escalada inflacionária teriam restringido as conquistas trabalhistas. Na década de 1990 a abertura comercial indiscriminada teria jogado contra os trabalhadores devido ao alto desemprego que provocou. De qualquer modo, nos dois períodos o senhor entende que o modelo governamental foi equivocado porque foi incapaz de dinamizar a economia. Isso significa que sem crescimento econômico não há luta sindical que dê jeito na questão do emprego e renda?
Mario Barbosa — Isso mesmo. A pesquisa mostra que, nos anos 1980, o quadro de crise da dívida — agravado por fatores como a crise inflacionária, a atitude passiva do País em relação à questão mundial e a incapacidade do Estado na definição de um novo modelo de desenvolvimento — levou a uma queda abrupta da atividade econômica a partir do início dos anos 1980 com importantes reflexos sobre o mercado de trabalho industrial. No entanto, em que pese o quadro geral de estagnação econômica, a persistência nas políticas de proteção do mercado interno ao longo da década impediu a regressão das bases do aparelho industrial do Brasil e possibilitou uma significativa recuperação do nível de emprego nos períodos de recuperação econômica, como na segunda metade da década de 1980.
No quadro de crise e de reestruturação produtiva com regressão da atividade econômica na década de 1990, o estudo mostra que não restou ao sindicalismo alternativa senão buscar, por meio de uma ação propositiva, transformar as dificuldades em oportunidades para avançar em relação à conquista de bandeiras históricas dos trabalhadores, como a redução da jornada de trabalho, além de reforçar a luta em defesa do emprego.
Por isso, não seria razoável considerar que apenas a ação sindical pudesse constituir obstáculo suficiente para barrar, indefinidamente, os efeitos devastadores da política econômica sobre o setor produtivo e o mercado de trabalho industrial nos anos 1990. E mesmo diante da conjuntura adversa, prevaleceu no sindicato e nas comissões de fábrica a disposição para enfrentar o desafio da reestruturação por meio de uma ação propositiva — ainda que no embate direto com as empresas — visando barrar a escalada do desemprego na região. Essa parece ser, portanto, a questão de fundo para explicar o caráter defensivo dos acordos realizados pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC durante a década de 1990.
O senhor mostra sérias restrições ao modelo neoliberal. Não há um contra-senso aí, na medida em que foi por causa da menor intervenção do Estado nas economias e da globalização que os investimentos correram o mundo e o Brasil pôde se tornar plataforma de carros mundiais e grande base exportadora das maiores marcas?
Mario Barbosa — A crítica em relação ao modelo neoliberal introduzido no Brasil por Collor de Mello e aprofundado posteriormente durante os dois mandatos do governo FHC está relacionada ao fato de que, em lugar da prometida modernidade com crescimento, a mudança radical nos rumos da política econômica aprofundou ainda mais a desorganização econômica do País. Houve fortes impactos sobre o setor produtivo, o mercado de trabalho e o emprego. O setor automotivo, que chegou a ter superávit anual superior a US$ 1,5 bilhão nos anos 80, a partir de 1994 passou a ter déficits que persistiram mesmo depois da desvalorização da moeda em 1999.
O discurso do governo FHC de que a entrada de novas marcas no País iria contribuir para geração de empregos e modernização da base produtiva do setor não correspondeu à realidade. O que assistimos foi a instalação de plantas tipo “caixa de fósforos”, com número reduzido de empregos e em boa parte terceirizados. Ao mesmo tempo, o número de trabalhadores na indústria de autopeças caiu de 309 mil em 1989 para cerca de metade disso na atualidade. Com o aprofundamento do modelo neoliberal, o Brasil tornou-se importador de peças, carros e componentes, caracterizando uma abertura para dentro. Essa situação levou a que o crescimento econômico do País ao longo dos anos 1990 acabasse ficando muito próximo ao dos anos 1980, a chamada década perdida.
Na sua tese o senhor lamenta que o governo FHC tenha visto a Câmara Setorial Automotiva, criada em 1992, como um reduto corporativista e cujo interesse específico destoaria da abertura econômica ampla e irrestrita preconizada pela globalização. Ao mesmo tempo, o senhor acha que a Câmara Regional do ABC poderia ocupar esse papel de ímã, com agentes sociais e governamentais tratando de interesses locais. Como o senhor vê o fato de o Grupo Automotivo ter sido justamente o primeiro a não vingar na Câmara Regional?
Mario Barbosa — A Câmara Setorial Automotiva foi uma das experiências mais ricas em termos de formulação e execução de políticas públicas no Brasil. Até o início da década de 1990 o País produzia cerca de um milhão de veículos por ano. A partir dos primeiros acordos da Câmara Setorial esse número atingiu quase 2,7 milhões. Além da revisão de impostos, as discussões contemplavam pauta mais ampla que envolvia questões relativas a financiamento, consórcios, novos investimentos, comércio exterior e contratação coletiva. Isso caracterizava um complexo sistema de estabelecimento de regras negociadas para o mercado, o que contrariava a lógica neoliberal predominante na visão da nova equipe econômica.
Em relação à Câmara Regional, a impressão é que o segmento patronal, acostumado a tratar diretamente em Brasília, sem discutir com os trabalhadores, não apostou nesse fórum local. E se um interlocutor não está disposto a discutir, não tem discussão. Mas acho que o grupo automotivo ainda pode ser resgatado na Câmara Regional do ABC e que esse fórum pode representar espaço importante de discussão dos temas de desenvolvimento local. É possível buscar algumas saídas para a revitalização regional por meio de políticas que visem a modernização das plantas locais sem que isso signifique perda de conquistas e de direitos dos trabalhadores. Para isso é preciso, assim como ocorreu na Câmara Setorial Automotiva, desenvolver mecanismos que estimulem o jogo do ganha-ganha.
O fato de o grupo automotivo ainda não ter andado como se esperava é de fato preocupante. Mas, como vimos, a segunda metade dos anos 1990 foi marcada pela guerra fiscal e, nesse processo, as empresas preferiram os gigantescos benefícios fiscais em lugar da negociação envolvendo contrapartidas com a comunidade e os sindicatos. Nesse aspecto, uma pauta interessante para a região no novo governo poderia ser o envolvimento da Câmara Regional e do Grupo Automotivo na discussão e execução dos centros de reciclagem vinculados a um programa de renovação da frota nacional de veículos. Nossa cultura automotiva nos dá legitimidade para disputar com folga a constituição no ABC de um desses centros de reciclagem de veículos.
Como membro de um instrumento inovador como foi a comissão de fábrica da Volkswagen do Brasil, o que o senhor proporia ao Fórum Nacional do Trabalho que o governo Lula quer transformar em laboratório para repensar a CLT? É possível sair da encruzilhada em que flexibilizar direitos pode levar à precarização do trabalho — de um lado — e aliviar o custo-trabalho de até 100% é questão sine-qua-non para as empresas elevarem os empregos e ganharem mais competitividade?
Mario Barbosa — A reforma trabalhista não passa pela precarização das normas contratuais. Estudos do Dieese e de outras instituições mostram que os salários em países como o Brasil, onde a jornada de trabalho ainda é elevada, não constitui grande peso no custo final do produto. O que existe é uma confusão que parece proposital envolvendo a discussão de encargos trabalhistas versus salários indiretos. FGTS pode ser considerado como salário? Se salário baixo fosse sinônimo de contratações, o emprego em Betim, São Carlos, Resende, São José dos Pinhais e Camaçari seria com certeza maior.
Nesse sentido, considero que tão importante quanto a reforma trabalhista para desonerar a folha de pagamento coloca-se também a necessidade da reforma sindical. A ratificação da convenção 87 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que estabelece a liberdade e a autonomia sindical, é condição indispensável para o estímulo à contratação coletiva em nível nacional. Um choque de produção, associado a mecanismos de negociação setorial, também é condição indispensável à perspectiva de redução das desigualdades regionais. Assim como as reformas tributária e fiscal, a reforma trabalhista envolve uma pauta complexa. Por essa razão, o melhor caminho talvez seria estabelecer um conceito sobre os temas, de modo a garantir que o resultado final possa satisfazer os interesses da maior parte dos atores envolvidos.
Reduzir a multa de 40% do FGTS ou o abono de férias pode ser muito interessante para empresários. Mas e o outro lado? Entre os temas de interesse dos trabalhadores eu destacaria a contratação coletiva de trabalho em nível nacional com desdobramentos setoriais e por empresas, mecanismos para desonerar a folha de salários por meio da cobrança da Previdência e do sistema “s” sobre o faturamento e não sobre a folha de pagamentos, políticas de geração do primeiro emprego para jovens e uma estrutura sindical com mecanismos que assegurem o direito à sindicalização.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira