Política

Uma jornada para lá
de complicadíssima

DANIEL LIMA - 25/11/2003

Os sindicalistas da CUT estão decididos a recarregar baterias pela redução da carga de trabalho de 44 para 40 horas semanais.  Nada mais esquisito e fora de moda num contexto em que o Brasil corre da raia da Alca, o grande acordo comercial que tem nos Estados Unidos, Canadá e México as principais forças, entre outros motivos porque o custo do Estado inibe a competitividade.


 


A rediscussão das 40 horas talvez seja pretexto para desviar a atenção sobre temários mais relevantes. Uma tática de dispersão, válida por sinal como estratégia para proteger a imagem do governo Lula da Silva de eventuais novas crises pontuais que surgem com o raiar do sol nos ministérios do Distrito Federal. 


 


Não tem outro sentido o retorno dessa discussão porque se esboroaram os alicerces sobre os quais os sindicalistas sempre exercitaram a defesa de redução com correspondente abertura de milhões de postos de trabalho. Esquecem-se os alquimistas sindicais que não existe fórmula mágica que resulte no aumento da massa salarial num País que há duas décadas combina desprezo ao crescimento econômico com sobrecarga tributária. Miram-se os propagandistas do céu das 40 horas na efetivação das 35 horas semanais de trabalho dos franceses. Esquecem-se dos desdobramentos.


 


José Pastore, professor da FEA-USP especializado em mercado de trabalho, lembra que a lei francesa entrou em vigor em janeiro de 2001 mas foi introduzida tendo em conta dois pontos cruciais. No período anterior à vigência da Lei, 1997-2000, o governo deu fortes incentivos às empresas para que aderissem às 35 horas o mais rápido possível. O segundo é que a Suprema Corte da França mandou respeitar o prazo de vigência dos contratos coletivos de trabalho. A lei se tornou realidade depois de expirados os contratos. O negociado prevaleceu sobre o legislado.


 


Queixas francesas


 


Numa reportagem assinada por Robert Graham, do Financial Times de setembro de 2001, apontavam-se várias queixas dos trabalhadores franceses. Primeiro, as empresas compensavam o corte nas horas trabalhadas com redução de intervalos, aumento da flexibilidade de trabalho e exigências de maior produtividade. Uma pesquisa do Ministério do Trabalho detectou que 63% dos entrevistados se sentiam mais desgastados no trabalho, enquanto 67% alegavam ter muito a fazer em tempo curto demais.


 


Como não há almoço de graça, a federação dos empregadores detectou que as grandes empresas transformaram o que ameaçava se tornar custo adicional da mão-de-obra em um meio de elevar a produtividade e conter os salários. Além disso as empresas arrancaram subsídios adicionais do governo para compensar custos mais elevados de seguro social. Em quase um terço dos casos, os salários foram congelados para compensar o efeito de pagar por uma semana de trabalho de 39 horas a empregados que estão trabalhando de fato 35 horas semanais. Cerca de 8% dos empregados envolvidos tiveram os salários reduzidos.


 


É evidente que nenhum desses efeitos das 35 horas foi integralmente considerado em outubro de 1997, quando a proposta foi lançada na França. No Brasil, para variar, esconde-se também o aprendizado alheio como sinal de alerta a bobagens tupiniquins.


 


O mais inquietante na equação tropicalizada de redução da jornada de trabalho no Brasil para 40 horas semanais é o estado de penúria da União que, apesar de esfolar a sociedade em 40% do PIB com o recolhimento voraz de impostos, taxas e contribuições, não consegue nem mesmo fazer chegar ao destino social pelo menos metade dos recursos orçamentários, perdendo-se a maior parte nos escaninhos da burocracia. Ora, falido como está, como o Estado conseguirá absorver os custos de adaptação da semana de 40 horas?


 


Experiência exótica


 


O governo francês despende por ano só para sustentar essa experiência exótica para os tempos de globalização nada menos que US$ 15 bilhões -- três vezes mais que os recursos contingenciados pelo governo Lula da Silva neste ano para suportar as obrigações contratuais com o Fundo Monetário Internacional, xerife de nossos passos macroeconômicos.


 


Talvez seja elucidativa uma avaliação do The Times, assinada por Charles Bremner, sobre o desempenho econômico francês. "A França é uma nação em declínio, cega para os seus erros e vivendo além de suas possibilidades, ao mesmo tempo em que irrompe com uma arrogância vazia no palco mundial. Isso pode parecer a velha ladainha francofóbica que vem do outro lado do Canal da Mancha ou do Oceano Atlântico, mas é, surpreendentemente, uma idéia que ganha força na França" -- escreveu em setembro último.


 


E segue o texto: "A França foi ultrapassada pela Grã-Bretanha e outros porque ficou atrofiada como Estado-do-Bem-Estar-Social centralizado nos anos 1970". (...) "Três livros argumentam que não há nada de temporário com relação aos problemas da França. Com seu desemprego crônico e um gigantesco Estado centralizado, a França não pode mais se colocar como modelo universal de progresso e civilização, argumentam eles.”


 


Em LArrongance Française (A Arrogância Francesa), Romai Buert e Emmanuel Saint-Martin, ambos jornalistas, dizem que a França enfurece o resto do mundo com sua desacreditada diplomacia. Em Adieu a la France Qui Sén Va (Adeus à França que Está Partindo), Jean-Marie, romancista e membro da augusta Academia Francesa, diz que a França está perdendo sua alma para a mediocridade e precisa de um grande líder para restaurar sua grandeza.


 


Perdendo o rumo


 


O maior barulho está sendo feito por La France Qui Tombe (A França Que Cai), do historiador e economista Nicola Bavarez. Bavarez diz que, depois de três décadas de progresso no pós-guerra, a França perdeu o rumo sob o reinado esquerdista de 14 anos do falecido François Mitterrand e dos oito anos até agora de seu sucessor neogaullista. Reféns de tirânicos sindicatos do setor estatal, agricultores, cineastas subsidiados e outros grupos de interesse, os sucessivos governos desperdiçaram riqueza e herança nacional em benefício da manutenção de um protecionismo ao modo do Estado soviético, diz ele" -- escreveu o jornalista do The Times.


 


Ainda a reportagem: "Bavarez faz repetidas comparações desfavoráveis com a Grã-Bretanha, destino favorito dos emigrantes da França na última década. A renda per capita da Grã-Bretanha superou a da França, onde os impostos estão muito mais altos hoje. Em uma reclamação muito ouvida na França, Bavarez diz que a Grã-Bretanha superou a União Européia, monopolizando seus melhores postos de trabalho. A França enfrenta uma escolha, conclui Bavarez: terapia de choque que vai modernizar o país por meio de marcha forçada ou a busca do declínio que vai produzir um levante social e alimentar a extrema direita de Jean-Maria Le Pen" -- escreveu Charles Bremner.


 


O jornal conservador francês Le Figaro afirmou em resposta ao livro: "Esse clima de franco-pessimismo está criando uma atmosfera pouco saudável que carrega o estigma dos anos 30. As raízes do mal estão em nossa cultura estatista, algo de que os britânicos se livraram décadas atrás".


 


Inspiração externa


 


Explicamos para alguns eventuais emeiados que não compreendem o sentido dos contrapontos desse texto, correlacionando a ressurreição da jornada de 40 horas proposta pela CUT e o que se passa na Europa, especialmente na França: nossos sindicalistas, especialmente os egressos das grandes jornadas reivindicatórias no Grande ABC, foram forjados sob a inspiração do modelo de capitalismo europeu, particularmente dos franceses. Trata-se do farol que os ilumina nas reivindicações trabalhistas. As alemãs Volkswagen e Mercedes Benz se transformaram em cabeça de ponte na definição das ações práticas duramente exercitadas em mesas de negociações e, quando preciso, nos movimentos grevistas.


 


Ou seja: miramo-nos nos exemplos do Primeiro Mundo e transformamos o território regional em extraordinário e invejável espaço de um trabalhismo automotivo de fazer inveja aos demais setores produtivos da livre iniciativa. Tudo absolutamente maravilhoso e festivo, cenário em que constituímos a prosperidade assegurada por um mercado fechado que transformava os consumidores de veículos em vítimas preferenciais de nossos desperdícios e improdutividades. Até que, de supetão, primeiro com Collor de Mello, depois com Itamar e, principalmente, com Fernando Henrique Cardoso, nos deram um banho de água geladíssima com a abertura comercial destrambelhada e a descentralização automotiva suicida. Dançamos bonito e ainda não nos demos conta disso.


 


A proposta de 40 horas semanais para um Brasil tão terceiromundista agravará ainda mais a baixa produtividade para competir no mercado internacional. Mas privilegiará cada vez um número mais restrito de trabalhadores com carteira assinada, hoje em empate técnico com os informais, espécie de fratura exposta de um capitalismo sobrecarregado pelo fervor estatista que os franceses ainda mantêm e os britânicos jogaram no lixo. 


 


Temos em várias questões sindicais que não conseguem enquadrar o mundo sob a ótica de interdependência dos acontecimentos, da ação e da reação, a arrogância típica dos franceses e a irresponsabilidade endêmica dos latinos à espera de um Messias. Quando teremos a determinação dos asiáticos e o pragmatismo dos norte-americanos? 


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