Entrevista Especial

Modelo de ICMS
é caso de polícia

VERA GUAZZELLI - 11/01/2005

O professor de Economia e pesquisador do Nesur (Núcleo de Estudos Sociais e Urbanos) da Unicamp, Gustavo Zimmermann descarta meias-palavras. “O repasse de ICMS é caso de polícia” — diz o acadêmico com a tranquilidade de quem se acostumou a tornar inteligível a complicada seara de repasses estaduais e municipais. Gustavo Zimmermann é incisivo ao condenar a guerra fiscal municipal, principalmente nas regiões metropolitanas. Defende propostas pragmáticas para criar sistemas mais eficientes de tributação municipal e repasse de recursos.


 


Uma das sugestões propõe a unificação das alíquotas do ISS (Imposto Sobre Serviços) por setor. Outra trata de estabelecer pesos diferenciados ao Valor Adicionado, de acordo com a atividade econômica. VA é o medidor de riqueza industrial que compõe 76% do repasse do ICMS no Estado de São Paulo. O acadêmico sugere também utilizar o binômio metas/resultados tão próprio da iniciativa privada como parâmetro de repasse principalmente aos municípios mais pobres e altamente dependentes de recursos do governo federal. Sob essa lógica, só terá direito a receber mais quem fizer bom uso do dinheiro público.


 


As propostas chegam às páginas de LivreMercado justamente no momento em que mais de mil prefeitos pressionam o Congresso para aumentar em 1%, ou R$ 1,5 bilhão, o valor do Fundo de Participação dos Municípios, imposto que custeia a maioria das pequenas cidades brasileiras. Também adicionam lenha na fogueira de tema que LivreMercado, sempre consubstanciada pelo aprofundamento estatístico do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), costuma analisar além da conclusão óbvia de que o Estado brasileiro cobra muito, arrecada mal e desperdiça dinheiro público. Gustavo Zimmermann utiliza Paulínia, cidade campeã de gastos com o Legislativo, de acordo com o IEME, como exemplo da disparidade de repasse de recursos provocada pela concentração de indústrias altamente geradoras de tributos — no caso o Pólo Petroquímico i— em cidades com população pequena. O acadêmico presta consultoria sobre produção industrial, desenvolvimento urbano, planos diretores, questões tributárias e fiscais de áreas metropolitanas.


 


O senhor é um dos defensores de mudanças nos critérios de distribuição do ICMS e está prestes a concluir trabalho no qual propõe alternativas para modificar principalmente o peso atribuído ao Valor Adicionado, que em São Paulo representa 76% do imposto estadual. A maneira mais justa seria privilegiar critério que levasse em consideração a concentração populacional?


 


Gustavo Zimmermann — O repasse do ICMS é caso de polícia. Os 24% do imposto não relacionados ao Valor Adicionado mitigam a tremenda concentração de recursos do tributo, já que o critério do VA faz com que algumas cidades recebam 14 ou 15 vezes per capita mais do que outras. Entretanto, o critério populacional puro e simples não beneficiaria os municípios mais populosos da forma como se imagina, porque os recursos não seriam suficientes para dar conta da demanda. As cidades médias talvez ganhassem com a modificação. É preciso pensar que esse critério pode embutir uma armadilha. Quem garante que os administradores públicos não iriam deliberadamente se valer do argumento de que quanto mais populoso o município, mais recursos estariam garantidos?


 


Como chegar a distribuição mais justa e democrática se o repasse não levarem em conta a predominância do fator per capita?


 


Gustavo Zimmermann — Uma das sugestões é atribuir pesos ao Valor Adicionado de acordo com a atividade econômica. Um peso para a indústria, outro para agricultura, outro para comércio e serviços e assim sucessivamente. Dessa forma, cidades como Paulínia, que abrigam empreendimentos de alto valor agregado, não levariam tanta vantagem. Estaríamos contemplando mais a diversidade econômica do que a concentração de determinadas atividades altamente geradoras de impostos. Paulínia se beneficia da capacidade arrecadadora do pólo petroquímico e da baixa população. Mas há outras situações. Casos de municípios-sede de usinas de açúcar. A usina vive da cana plantada nas cidades do entorno e essas localidades não se beneficiam da atividade de transformação, apesar de imprescindíveis na cadeia produtiva. É um círculo no qual a sede da usina enriquece e os outros municípios, quase sempre, empobrecem.


 


O senhor está afirmando que o sistema de repasse do ICMS além de recursos, transfere também produtividade. Já existe projeção do quanto a possível mudança brindaria as cidades penalizadas com o critério vigente de repasses do imposto estadual?


 


Gustavo Zimmermann — Devo concluir agora no começo do ano algumas simulações. Mas, ainda focado no exemplo da usina, posso dizer sem medo de errar que, quando a produtividade do trabalhador do campo é transferida para outro município, leva junto a renda e alimenta círculo de empobrecimento. Normalmente o trabalhador do campo ganha menos que o trabalhador da indústria e como mora numa cidade menor tende a pagar mais caro pelos alimentos e outros bens de consumo, porque nos municípios pequenos geralmente não há escala para abastecimento. Resultado: na tentativa de economizar, vai comprar no vizinho e reforça ainda mais o ICMS da outra cidade. Por isso, essa estrutura do ICMS transfere sim produtividade e renda. É um critério que sanciona e potencializa a desigualdade.


 


Quando saímos especificamente das cidades pequenas que gravitam em torno de pólos mais desenvolvidos e passamos para as áreas metropolitanas, onde essa transferência de renda e produtividade parecem ser menos acentuada, as vantagens de segmentar o Valor Adicionado continuam? Está comprovado que as diferenças mais gritantes surgem exatamente quando se comparam cidades como uma Paulínia de 50 mil habitantes e uma Santo André de 670 mil?


 


Gustavo Zimmermann — As áreas metropolitanas também teriam vantagem porque os recursos estariam conectados à realidade produtiva de cada um desses municípios. Seria justo porque cada um receberia proporcionalmente ao que produz e oferece. Há também outra possibilidade: a Constituição Federal não estabelece que o Valor Adicionado tem de ser necessariamente computado no local da produção. Por quê, então, não computar uma parte nos locais de consumo? Isso ajudaria a acabar com o conceito de municípios-dormitórios, porque seus moradores também consomem. O estimulo ao consumo local aumenta também os empregos, já que comércio e serviços são grandes empregadores.


 


O senhor imagina que existe possibilidade de mudanças serem operacionalizadas diante de complicadores como o baixo grau de compreensão dos parlamentares sobre questões fiscais e a própria dificuldade política do Congresso de emplacar a reforma tributária? Sem contar o fortíssimo lobby das cidades que se beneficiam do sistema atual e não fazem a menor questão de que o tema ganhe a ordem do dia?


 


Gustavo Zimmermann — Seria muito bom se os deputados compreendessem o mecanismo e trabalhassem pela reformulação porque garantiriam recursos efetivos para suas bases e não precisariam brigar a cada ano pelos sempre escassos recursos do orçamento. A sugestão pode ser apresentada também pelos representantes de uma região metropolitana ou de qualquer conglomerado urbano. Basta os deputados desenvolverem projeto para esse grupo de cidades. Num aglomerado urbano, há muitas atividades e problemas comuns e é irracional não tratar as questões conjuntamente também na área tributária.


 


Então a capacidade de articulação regional seria determinante para alcançar critérios mais justos de distribuição de tributos?


 


Gustavo Zimmermann — Infelizmente não temos tradição regional, nem prática política regional, nem prática jurídica regional. Mas o mingau se come pelas bordas e mesmo que seja um processo lento, de no mínimo 10 anos, é necessário dar o start. Acredito que dentro das condições atuais de uma legislação que não prevê governos regionais, o consorciamento seja a saída mais rápida. Não é o ideal, mas o possível dentro das condições brasileiras. Por isso, se houvesse essa consciência, o Grande ABC e a Baixada Santista poderiam sair na frente porque já têm experiências nesse sentido. A região de Campinas ainda não está preparada. Mas quem se beneficiaria com mais rapidez caso as mudanças fossem efetivadas sob a ótica regional seriam os Estados do Sul, mais acostumados às práticas associativas. Rio Grande do Sul e Santa Catarina já alteraram as regras dos 25% do repasse do ICMS e destinam percentual maior para municípios das áreas metropolitanas que desenvolvem ações conjuntas de saúde. A visão municipal e regional é mais desenvolvida no Sul por causa da tradição européia.


 


O senhor acredita que esse tipo de mudança seja capaz também de alterar o entendimento dos governantes sobre guerra fiscal? Quando o senhor afirma que a guerra fiscal é inconcebível principalmente nas regiões metropolitanas, o que mais está levando em conta além de leilões para atrair investimentos?


 


Gustavo Zimmermann — A guerra fiscal reflete, na realidade, a ausência de política regional em todos os níveis de governo. Quando a Fiat veio para o Brasil e se instalou em Betim, Minas Gerais, houve esforço dos governos federal, estadual e municipal para tornar rentável aquele espaço econômico. Como não tivemos política industrial nas últimas décadas é legítimo que os governadores procurem atrair empresas com vantagens que eles conseguem oferecer isoladamente. Sob o ponto de vista macroeconômico, a economia brasileira perde ao oferecer vantagens fiscais porque, quando a empresa vem para o Brasil e não para outro país, já escolheu se instalar aqui, gerar riquezas e, por consequência, pagar impostos.


 


Mas a realidade mostra que a guerra fiscal é um dos componentes de atração de investimentos. São Paulo perdeu empresas para outros Estados e o Grande ABC perdeu muitos investimentos para cidades do Interior de São Paulo.


 


Gustavo Zimmermann — A guerra fiscal é um dos componentes, mas não está em primeiro plano na atração de investimentos. Só que tem apelo popular. Parece que o governo está lutando pelo emprego. De fato, algumas empresas foram atrás de incentivos fiscais em outros Estados e no Interior porque alguns governos ofereciam até três vezes mais que outros. Participei de uma reunião com o ex-governador Mário Covas na qual um empresário solicitava isenção de ICMS maior do que os 10 anos que ele havia conseguido em outro Estado. Sabe o que Covas disse? Se vocês acreditam nisso podem ir. Mas se mudar o governo, o partido do governo e a forma de entender o assunto, a empresa pode correr o risco de perder o acordo estabelecido porque não é uma política industrial, é um acordo político.


 


Essa lógica vale também para os governos municipais?


 


Gustavo Zimmermann — Nem sempre. É claro que muitas empresas pedem isenção de impostos municipais, o que não é tão relevante para a indústria. O poder de barganha do prefeito é muito pequeno e nem mesmo empregos ele consegue garantir quando utiliza guerra fiscal. Nenhum empresário concorda em limitar voluntariamente o seu mercado de trabalho a alguma cidade e esse é o principal custo da empresa.


 


Então essa história de que os investimentos vão trazer tantos empregos para a cidade é espécie de propaganda enganosa?


 


Gustavo Zimmermann — Sim, porque uma empresa que se estabelece em Osasco não vai deixar de empregar trabalhadores das cidades vizinhas. Isso não existe. Veja o caso da Embraer em Gavião Peixoto que emprega trabalhadores de Araraquara e Descalvado. O grande incentivo que o governo do Estado de São Paulo ofereceu à Embraer foi custear a reciclagem de seis mil engenheiros aeronáuticos. O argumento foi imbatível e tirou a Bahia da jogada. Esse é o jogo, mas os prefeitos ainda não têm essa racionalidade e garantem muito pouco. Dar incentivo fiscal municipal não é racional. O prefeito deveria diminuir os custos externos do investimento com boa infra-estrutura viária, qualificação de mão-de-obra e saúde pública. E por que saúde pública é importante? Imagine um foco localizado de dengue e uma cidade na região que tenha erradicado a doença. Isso pressupõe que o absenteísmo naquela cidade saneada será baixo. Um curso permanente de reciclagem qualifica a mão-de-obra, argumento mais importante para as empresas do que o incentivo fiscal. Assim, é preferível que se dêem incentivos de modo a diminuir os custos produtivos no local. Porque se a empresa vai embora, os trabalhadores que porventura ficarem desempregados, serão mais atrativos para um novo empreendimento. São José do Rio Preto e Sorocaba não dão terreno nem incentivos, mas implantaram políticas industriais exitosas. São José do Rio Preto fez uma operação imobiliária casada para disponibilizar terrenos industriais e residenciais em distância que permite ir a pé ao trabalho. Imagine o que isso diminui de custo para a empresa e de estresse para o trabalhador.


 


Mas a maioria dos prefeitos ainda prefere apostar na guerra fiscal localizada?


 


Gustavo Zimmermann — Os prefeitos lançam mão do argumento mais fácil porque é obscuro e mesmo que não resulte em sucesso parece que alguma coisa foi feita. O empresário pode ser atraído pela ajuda, mas tem de utilizar ao máximo os recursos econômicos locais. Porque vai procurar mais longe um trabalhador se ele chega mais cansado e requer mais benefícios.


 


É por isso, então, que o senhor defende a unificação fiscal das alíquotas de ISS de prefeituras de áreas metropolitanas?


 


Gustavo Zimmermann — Quando falo em unificação fiscal me refiro, por exemplo, ao custo dos serviços de energia elétrica que são exatamente os mesmos numa região metropolitana. É possível fazer acordos, por exemplo, para cobrar taxas únicas de ISS sobre o transporte metropolitano ou serviço de conservação de ruas, lixo e afins. O ISS é o imposto mais propício à guerra fiscal municipal, mas são poucas as empresas que efetivamente podem se beneficiar de alíquotas mais baixas. Bancos, hospitais e serviços gráficos costumam ir aonde estão os clientes e são alguns exemplos de atividades que nem sempre se deixam atrair por alíquotas municipais menores. Os grandes contribuintes do ISS dificilmente têm como fugir. Há exceções como as empresas de leasing que transferiram sede fiscal para Barueri por causa do baixo ISS. Os contribuintes que abrem sede fiscal em outra cidade para ganhar fôlego tributário são os prestadores de serviços pequenos, cujo valor de imposto acaba não compensando o custo da fiscalização. Quando o Senado estabeleceu limite mínimo de 2% para o ISS diminuiu um pouco a voracidade fiscal de muitos municípios que cobravam 5% ou até mais. Alíquota muito alta também é um incentivo à sonegação e evasão.


 


Os governantes, então, ainda estão muito distantes de adequar recursos públicos, demanda social e cobrança de tributos?


 


Gustavo Zimmermann — Mais de 90% dos municípios brasileiros têm receitas baseadas no ICMS ou FPM (Fundo de Participação dos Municípios), o que os torna dependentes de repasse e não de fórmulas domésticas mais justas de cobrança de impostos. É mais fácil cobrar mais quando a arrecadação cai. Quando ficam esperando dinheiro de fora para oferecer algum benefício à população os prefeitos cometem um erro público. O dinheiro que vem de fora é de impostos de outros lugares e como esse jogo não tem dinheiro para todo mundo, vira uma loteria recheada de conchavos políticos. Seria muito diferente se houvesse critério de resultados. Quanto menor for a mortalidade infantil, quanto maior for a esperança de vida, mais o município recebe. O Fundef da educação seria um exemplo para caminhar por essa linha. Os recursos são repassados de acordo com a quantidade de alunos. Com isso, os prefeitos têm interesse em matricular crianças. O que deveria ser aprimorado no Fundef é justamente o resultado. Quanto melhor for o rendimento dos alunos, mais recursos as cidades deveriam receber. Esse tem de ser o próximo passo. A transferência de recursos com base em resultados é tendência na União Européia e também uma das fórmulas utilizadas pela iniciativa privada para contemplar entidades filantrópicas.  


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