Caso Celso Daniel

Quixotescos espetáculos do
Grande Circo Celso Daniel

DANIEL LIMA - 05/12/2003

Não deixa de ser uma molecagem do destino o legado intelectual de Celso Daniel ser atrozmente atropelado pelos desdobramentos em muitos casos fantasiosos, em outros casos nebulosos, de seu assassinato. A montagem do Grande Circo Celso Daniel desde que o prefeito foi sequestrado na noite de 18 de janeiro do ano passado colide com o mundo real em que essas casas de espetáculos errantes vão abaixando a lona definitivamente por absoluta falta de bilheteria.


 


No Grande Circo Celso Daniel há espetáculos nos mais variados horários de rádio e televisão, de Internet, de jornais e revistas e os protagonistas são fluviais. As mesmices informativas geralmente pouco elucidativas, porque eivadas de vieses deformativos, são metabolizadas ao sabor dos interesses. Pastas e pastas de arquivo de páginas de jornais e revistas comprovam o vai-e-vem muitas vezes inescrupuloso de insinuações, acusações veladas, acusações explícitas, meias-verdades, mentiras inteiras. É uma farra sob a lona amarela que cobre leitores, ouvintes e telespectadores dispostos a acreditar em tudo o que lhes é apresentado no picadeiro de interesses difusos.


 


Sempre discreto e eficiente na vida administrativa, mesmo com percalços aqui e ali principalmente no primeiro mandato quando ainda inexperiente, o exuberante Celso Daniel consegue ainda ter a memória respeitada porque as circunstâncias de sua morte lhe conferem espécie de canonização pública. Entretanto, nada assegura que, no balanço das arquibancadas de maledicência que se montam e se desmontam ao sabor da imaginação maledicente, o melhor prefeito do Grande ABC não venha a sofrer duros golpes na extraordinária herança em prol de uma regionalidade quase onírica.


 


Reputações rifadas


 


É claro que haverá o risco de os eventuais detratores ou oportunistas quebrarem a cara eleitoral, dada a mitificação de Celso Daniel, mas nem todos conseguem discernir o que é melhor numa disputa eleitoral, até que se esborracham sem deixar, entretanto, de manchar honras e reputações. 


 


Como consumidor de informação e conhecedor dos bastidores da concorrência protagonizada por jornalistas em busca dos chamados furos de reportagem, fico estarrecido em ver como a ética vira peça de picadeiro vadio no Grande Circo Celso Daniel.


 


Nomes são lançados no noticiário com insinuações diversas sem a menor consideração sobre os efeitos pessoais e familiares, quando não públicos. Qualquer nesga de suposto fato que esteja na órbita da ocorrência transforma-se em ato deliberado de sensacionalismo informativo. Dois deputados do PT que supostamente estariam nas proximidades do local na noite anterior em que foi abandonado o corpo de Celso Daniel seriam novos suspeitos. Sim, novos suspeitos porque, na medida em que aparecem no noticiário com a conotação que foi dada, passam a constar da lista de envolvidos no crime.


 


A vulnerabilidade do noticiário da mídia impressa, que pauta as demais mídias, só pode ser comparada ao grau de estraçalhamento econômico-financeiro dos balanços contábeis das empresas de comunicação. Grupos poderosíssimos se vergam no campo econômico sob o jugo de um Estado perverso com a livre iniciativa. Rivalizam-se, assim, com a esqualidez de qualidade editorial e administrativa que já não é possível esconder. Como bobagem pouca não serve, uma campanha institucional da associação nacional do setor transformou os jornais em estrelas de venda de produtos e serviços, quando o bom senso recomenda que o carro-chefe deveria ser o noticiário. Não o padrão de noticiário que temos, invariavelmente sob o controle das fontes de informação.


 


Domínio publicitário


 


Os jornalistas, de maneira geral, merecem mesmo que os departamentos comerciais deitem e rolem inclusive no mote da suposta valorização do produto jornal. A classe está a nocaute por motivos diversos, mas principalmente pela evasão de boa parte dos profissionais mais experientes e críticos. Entregaram-se as redações, em larga escala, a uma associação de inexperiência e incompetência. Sem contar também que de vez em quando aparecem os espertinhos engravatados de ocasião, ovacionados como suprassumos de competência e experiência mas que, de fato, não passam de impostores e marquetólogos do nada com jeito de tudo.


 


O Grande Circo Celso Daniel é prova acabada do quanto retrocedemos no campo da comunicação. Independentemente de juízo de valor sobre aqueles acontecimentos, a realidade está estampada em cada linha dos recortes das publicações que coleciono: os profissionais de jornais, principalmente, transmitem a sensação de que dedilham os computadores com o mesmo senso de direção dos jovens que costumam desaparecer nas matas e nas neblinas de Paranapiacaba.


 


Fossem as bobagens e as imprecisões exclusividades individuais, ainda se suportaria o sentimento de impotência que salta do tiroteio de manipulações explícitas ou implícitas. O problema é que, na ânsia da competição, os jornalistas aperfeiçoam-se na arte de entrecruzar informações de estrutura incorreta e elevam ao desastre coletivo o que até então dividiam com seus leitores exclusivos. A pior bobagem não é a bobagem individual, mas sim a bobagem que se multiplica acriticamente, retroalimentando-se de um misto de inveja, despreparo e açodamento. 


 


Estamos em plena temporada do Grande Circo Celso Daniel. Utilizam-se como argumento de morte encomendada questões tão consistentes quanto inconsistentes. Depende exclusivamente do ângulo de abordagem. Embora a tipologia do sequestro seguido de assassinato do prefeito seja particularizada como especial, a historiografia policial coleciona muitos casos de gente simples vitimada em circunstâncias semelhantes e que só não ganharam a mesma eloquência porque eram anônimos.


 


Casos semelhantes


 


Ainda recentemente, só para dar um exemplo, mataram um jovem comerciante de São Bernardo depois de sequestrá-lo e de, vejam só, receberem o dinheiro do resgate. O descendente oriental foi trucidado e atirado num fosso com requintes de crueldade. Ainda outro dia a jovem de classe média assassinada na Grande São Paulo por um menor não teve o pagamento de resgate solicitado porque os bandidos se assustaram com o noticiário da televisão e com a chuva de panfletos que o pai mandou jogar de helicóptero. Os sequestradores confessos de Celso Daniel afirmaram e reafirmaram que temeram a repercussão inicialmente divulgada pela TV Globo e enveredaram pelo assassinato em vez da liberdade.


 


Experimentem usar esse tipo de argumento com os empedernidos defensores da versão de mandante. Será pura perda de tempo. O Grande Circo Celso Daniel chegou ao paroxismo da irracionalidade e mesmo que supostamente os promotores públicos apresentem versão e provas consolidadas, sobrarão desconfiança e ceticismo. A recíproca da Polícia Civil e da Polícia Federal, como se sabe, é absolutamente verdadeira, ou seja, de que foi um crime de ocasião. Como bem escreveu ainda outro dia um amigo do peito de Celso Daniel, o secretário municipal Maurício Mindrisz, para quem tudo não passou de acidente, ninguém aceita que gente famosa morra de forma banal como Celso Daniel.


 


Há profusão de casos que, confrontados com a morte de Celso Daniel, desclassificam a obsessão pelo apontamento do empresário Sérgio Gomes da Silva como mandante -- como se já não bastasse a apuração da Polícia Civil e da Polícia Federal. Mas, admitindo-se que Sérgio Gomes da Silva tenha relação com o caso, o que o colocaria como candidato insuperável ao título de estupidez do século por razões dispensáveis de explicações, o que se vaza à Imprensa pelo Ministério Público não tem consistência ética -- exceto se se pretender criar um ambiente de condenação sumária, porque, nesse caso, então, o que teríamos seria não a transgressão ética, mas um atentado aos trâmites judiciais do Estado de Direito.


 


Especula-se tanto sobre o Grande Circo Celso Daniel que a mais recente novidade dá conta de que a TV Globo está preparando edição exclusiva do Globo Repórter da próxima sexta-feira, quando Sérgio Gomes da Silva seria apresentado como o grande vilão do sequestro e do assassinato. Pode ser que essa versão não passe mesmo de especulação, como tática de guerra para levar o amigo do prefeito ao descontrole absoluto dos nervos.


 


Por outro lado, não faltam também mexidas no tabuleiro de defesa sugerindo que Sérgio Gomes da Silva saia do córner imposto pelos promotores públicos e reúna a Imprensa para safar-se da condenação pública. Enquanto isso, exceto o Jornal da Tarde que entrevistou o empresário do Ceasa que seria a vítima da quadrilha, ninguém se interessa em conferir as informações repassadas pelos próprios sequestradores. Preferem, alguns, ouvir testemunhas irrelevantes em manobras cuja objetividade tosca é desviar-se da estrada batida de repetições nem sempre disfarçadas.


 


Tanto no caso Celso Daniel quanto em outros que ocuparam descabeladas manchetes, o jornalismo diário explica porque as empresas de comunicação preferem privilegiar o marketing transviado de supermercado de produtos e serviços em vez da engenharia editorial em franca decomposição.   


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