Ouvi senão de forma atenta, mas suficientemente conclusiva, uma entrevista do candidato à Prefeitura de Santo André, Raimundo Salles, à Radio ABC. Salles acaba de voltar de viagem de turismo pela Ásia. Agora soma 62 países no portfólio de viajante, segundo sua própria conta. Tem milha para dar e vender. Fiquei curioso e acabei levado à entrevista em áudio convocada pelo sistema de alerta de meu programa de computador. De manhã, lera no Diário do Grande ABC matéria sobre o retorno de Salles do mundo oriental. Ouvir Raimundo Salles é uma coisa. Ler a respeito de Raimundo Salles em jornal diário é outra. A entrevista no rádio é impagável. No jornal, insossa.
Raimundo Salles é uma figuraça do mundo político regional. Fosse prefeito de qualquer uma de nossas cidades chamaria a atenção e quebraria a monotonia de mediocridades que infestam a Província.
O dicionário da língua portuguesa colocado nas mãos de alguém desastrado ou mesmo metido a besta que pretenda construir o perfil de Raimundo Salles terá o mesmo sentido de alguém acreditar que possa agarrar oito gatos rebeldes ao mesmo tempo. Vai se dar mal pra cachorro. Sobrarão arranhões e quem sabe até dentadas. Salles é explicito aos simples e complexo aos que usam o cérebro muito além da recepção passiva de informações.
Salles é uma porção de coisas ao mesmo tempo, mas possivelmente o melhor verbete que se associe a ele seja mesmo “enigmático”. Ou seria “maquiavélico”?
Guerreando com classe
Raimundo Salles está mais maduro ao falar, mas sugere que vive em convulsão política. Transmite a sensação de que não quer inimigos ou adversários raivosos, mas ao mesmo tempo não lhes poupa críticas bem esgrimidas. Salles flerta com a paz, mas gosta mesmo é de guerrear. A diferença entre o Salles guerreador destes tempos e o Salles guerreador do passado é que se tornou menos explícito e raivoso. Provavelmente fira menos os alvos e ilumine mais a mente dos interlocutores.
Mais interessante do que discorrer sobre o que disse Raimundo Salles na entrevista a Anderson Afonso, na Rádio ABC, é capturar o sentido das coisas. Quem acreditar que determinadas sentenças de Salles são um elogio pode se dar mal. Ele aprendeu a bater depois de assoprar. A diferença é que assopra com leveza e bate com precisão cirúrgica. Como quem não quer nada. Quando se bate depois de elogiar – recomendaria Maquiavel – a credibilidade das palavras ganha impacto muito maior.
Duro mesmo é não encontrar nos adversários motivos para elogios. Fabricá-los em nome de uma causa maior pode se tornar patético. O efeito de solidez da argumentação pode sofrer fissuras.
Poupando o pessoal
Quando diz que o prefeito Carlos Grana é pessoalmente agradabilíssimo e que a decisão de deixar a Secretaria de Cultura depois de dois anos de mandato, se deu por conta de conjuntura nacional, Raimundo Salles preserva a imagem pessoal de um personagem da vida política que lembra o carisma de Lula da Silva, mas embute restrições ao gestor público.
Raimundo Salles sabe que desclassificar Carlos Grana em todos os campos seria burrice e o antipatizaria junto ao eleitorado conservador que detesta o PT, mas reconhece no titular do Paço Municipal alguém afável, agradável, embora comandante de uma Administração incompetente. Aliás, é o que, em seguida, com outras palavras, sem mencionar o nome do prefeito, Raimundo Salles passa aos ouvintes ao comentar o que chamou de abandono do Município.
A mediocridade analítica de Fabio Picarelli, candidato a candidato a alguma coisa nas próximas eleições, possivelmente leve o ex-presidente da OAB a imaginar que Raimundo Salles o encheu de reverências quando disse à Rádio ABC que ele, Picarelli, é o legítimo representante da direita de Santo André. Salles fez menção à atuação de Picarelli nos movimentos contra o governo de Dilma Rousseff. Não deixou escapar o veneno mais que justo de que Picarelli apoiou tanto o PT de Carlos Grana como Dilma Rousseff em tempos anteriores.
Direitista sacramentado
Salles lembra o eleitorado sobre o recente passado de Picarelli como quem faz apenas um comentário sem maldade. Só faltou dizer, mas não disse porque não é bobo, que atribui a Picarelli a legitimidade de representação da direita de Santo André porque lhe despeja subliminarmente uma mancha de reacionarismo político. Uma situação que o impediria de buscar votos em setores menos radicais da sociedade.
Na correria de um dia a dia complicado não pude ouvir integralmente a entrevista de Raimundo Salles à Radio ABC. Pretendo voltar à curiosidade jornalística. Certo mesmo é que o advogado fez um discurso veemente por transparência de informações no setor público. Algo sobre o qual tenho me empenhado há muito tempo nesse espaço.
Salles dá a entender que pretende deixar o bate boca convencional de campanhas eleitorais lançando-se a nova agenda. A ideia é ótima. Transparência tem estreita relação com um temário que os institutos de pesquisa colocam no topo de preocupações da sociedade – a corrupção endêmica do poder público.
Dono da agenda?
Talvez Salles, ebulitivo como é, enigmático como poucos políticos, se deixe levar por pautas estranhas que o retirariam da trilha que deveria, mais que declarações, ganhar a forma de compromisso assinado e passado em cartório por todos os concorrentes a cargos públicos – a disposição de abrir tudo o que é informação para a sociedade. As vísceras precisam ser expostas.
Estou de olhos postos em Raimundo Salles. Por mais que pareça uma estupidez de conclusão, já que ele está na atividade pública há mais de uma década, o ex-secretário municipal de William Dib na Prefeitura de São Bernardo mostra-se como única novidade na política regional. Salles enxerga além da Província. Por isso mesmo não pode se deixar arrastar pelos provincianos. Ninguém mais do que ele para ditar o ritmo pré-eleitoral em Santo André. Os adversários que se cuidem, porque a cada frase de elogio a eventuais acertos, Salles dispara uma montanha de golpes corrosivos que embaralham o senso de observação de terceiros.
Outro marketing embutido desde já na campanha que Raimundo Salles pretende fortalecer na busca pela Prefeitura de Santo André está na imagem de turista louco por ganhos culturais para eventuais adaptações de iniciativas que fazem sucesso lá fora.
Salles sabe que os cromossomos de provincianismo da região dobram-se a políticos que constroem algo à parte do que se pratica nesse território. Celso Daniel viajou para a Europa logo após conquistar a Prefeitura de Santo André em 1996.
Talvez o que falte a Raimundo Salles seja um roteiro bem definido de políticas públicas que encontrou lá fora e que possam, de alguma fora, ganhar corpo em Santo André. Mesmo que tudo não passe de intenção, de projeção. Estamos tão necessitados de novidades que até aceitamos flertar com o improvável importado, porque do impossível local já estamos fartos.
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19/11/2024 PESQUISAS ELEITORAIS ALÉM DOS NÚMEROS (24)