Há mais de seis anos espero por uma resposta individual ou coletiva de promotores criminais que atuaram no caso Celso Daniel. Agora que o crime voltou a frequentar o noticiário, por conta da prisão do empresário Ronan Maria Pinto, volto a sugerir a produção de um livro escrito a 10 mãos sobre o assassinato do então prefeito de Santo André. Enfrentarei, se eles toparem, os três promotores criminais que formaram a força-tarefa do Ministério Público Estadual que atuou diretamente no caso, e também o celebradíssimo Francisco Cembranelli, responsável pela condenação dos sequestradores do petista – tudo com base nos procedimentos investigatórios da Polícia Civil. A mesma Polícia Civil que não encontrou qualquer prova, porque não há provas que neguem a realidade dos fatos, contra Sérgio Gomes da Silva, acusado pelo MP de ser o mandante do crime.
O primeiro artigo em que propus compartilhar a produção de um instigante livro que escarafuncharia todos os ângulos da morte de Celso Daniel foi publicado nesta revista digital em junho de 2010. Escrevi que a operação seria espécie de prévia do júri popular a que a Justiça de Itapecerica da Serra supostamente levaria Sergio Gomes da Silva.
Disse então que estava disposto a deslocar a segundo plano a ideia de escrever um livro isoladamente sobre tudo o que apurei. Trocaria a iniciativa individual por um livro escrito a oito mãos – duas minhas e outras seis dos promotores públicos que integravam o Gaeco, grupo especial que o governo do Estado instalou em Santo André para melar a bateria de críticas do PT contra a caótica situação da Segurança Pública no Estado de São Paulo naquele janeiro de 2002, correlacionando-a à morte de Celso Daniel.
Mais tarde, em novembro daquele mesmo 2011, reiterei o convite aos promotores criminais, acrescentado à lista Francisco Cembranelli: “Disponho de bala suficiente, no sentido figurado, é claro, para provar o quanto se precipitaram nas investigações e também na relatoria estridente da imprensa” – escrevi naquele novembro de quase seis anos atrás.
Entrechoques democráticos
Lembro também que no texto de junho de 2010 expliquei que a proposta não poderia ser vista como abusiva ou desrespeitosa, ou mesmo provocativa. O que se pretendia e o que se pretende mesmo é democratizar as investigações. “No máximo, no máximo, permitindo-se certa liberdade de interpretação, o que teremos é um providencial entrechoque do qual esperamos que saiam sãos e salvos os mariscos da verdade que acabarão por se chocar com as rochas de eventuais manipulações” – escrevi.
E mais: “O que quero é que a sociedade tenha a possibilidade de encontrar um norte na avaliação do caso, sem interferências de uma parte da imprensa partidária e ideológica que atuou descaradamente na degeneração de informações. Tratarei cuidadosamente de tudo isso na obra, porque provas não me faltam” – escrevi.
Todo o mundo sabe que o caso Celso Daniel me fascina. Durante anos e anos escrevi sobre o que se deu principalmente a partir do sequestro em 18 de janeiro de 2002. Sou o maior especialista no assunto. O que tem de jornalista apressado e mal informado a escrever sobre o caso é um espanto. Como a quase totalidade, ou a totalidade, jamais acompanhou a morte do prefeito de Santo André no nascedouro do sequestro, ou, mais que isso, com informações antecessoras, no âmbito administrativo, o que temos na praça é gente chutando bola fora de forma bisonha. Parte desse traçado sinuoso de tratar o assassinato com vieses insustentáveis se deve à atuação dos promotores criminais, com os quais mantive embates transparentes em várias ocasiões. Daí, inclusive, surgir a proposta do livro-júri.
Santificação retificada
Como foram os grandes veículos de comunicação que mantiveram o caso na bitola da versão do Ministério Público, enquanto a Polícia Civil de São Paulo era obrigada a se calar sobre as explicações técnicas do assassinato, o senso comum no País é de que o PT assassinou o prefeito de Santo André porque o prefeito de Santo André era um homem santo que jamais botou a mão em dinheiro que não fosse seu.
Muito dessa montanha de romantismo ruiu com o Mensalão e com o Petrolão, que sacramentaram um modelo de financiamento eleitoral com raízes profundas e sistêmicas a partir da gestão de Celso Daniel. Palavras de Lula da Silva, segundo depoimento em meados dos anos 2000 de um petista – Ovando Júnior -- ao Ministério Público Estadual em São Paulo. Um depoimento esquecido nestes tempos de esclarecimentos. Por onde anda Ovando Júnior que não e requisitado pela Lava Jato?
Volto ao assunto Celso Daniel com a renovação da proposta de escrever um livro-júri a 10 mãos – ou com mais de duas mãos que são minhas – porque li no final de semana uma entrevista do promotor criminal José Roberto Wider Filho ao jornal Repórter Diário. O representante do MP paulista era um dos integrantes da força-tarefa que atuou no caso Celso Daniel e construiu a versão de morte de encomenda, de fundo administrativo, embora nos primeiros tempos ele e os demais insistissem na expressão “crime político” e na sacralização da vítima.
Roberto Wider foi entrevistado a respeito da prisão do empresário Ronan Maria Pinto, dono do Diário do Grande ABC, na Operação Lava Jato. O título do Repórter Diário (“MP aposta em delação de Ronan para esclarecer caso Celso Daniel”) resume o conjunto de perguntas e respostas da entrevista.
Confundindo as bolas
O maior problema do promotor criminal Roberto Wider, como dos demais que atuaram no caso, é que sempre confundiram as bolas ao transformar um crime de ocasião em crime administrativo. Fizeram de tudo para encaminhar um enredo fantasmagórico, municiados, como se descobriu muito tempo depois, por um delegado ressentido com o PT e industrializador de informações que não resistem a qualquer contraditório sensato.
É claro que estou falando do delegado Tuminha e de seu livro mais que patético no capítulo da morte do prefeito de Santo André. A Roberto Wider e demais promotores criminais do caso faltou combinar o enredo imaginado com os sequestradores e com as seguidas investigações da Polícia Civil do Estado e também da Polícia Federal.
A insistência com que Roberto Wider fala do crime e o direcionamento sistemático no sentido de que as investigações policiais foram uma arrematada fraude teriam ampla credibilidade deste jornalista se houvesse um mínimo de coerência com os fatos apurados. As reiteradas afirmações de Roberto Wider são pás a cavoucar a própria sepultura de factualidades.
Torço imensamente para que Ronan Maria Pinto avance em direção à delação premiada e, com isso, desanuvie de vez a interpretação caolha de que a morte do prefeito e as irregularidades do petista à frente da Prefeitura de Santo André, recentemente julgadas em primeira instância em Santo André, são irmãos siameses.
Nomeação sintomática
Não existe parentesco entre os dois casos, para desapontamento de quem procurou cristalizar a versão de que o então prefeito de Santo André se sentiu traído por causa de um esquema de corrupção do qual, na primeira versão do MP, não tinha conhecimento e, em seguida, em nova versão do MP, tolerava em nome do partido mas se revoltara porque teria havido apropriações particulares, até que, numa terceira versão, Celso Daniel sabia, participava mas foi abatido porque pretendia acabar com o processo – justamente na fita de largada da campanha presidencial de Lula da Silva, quando mais dinheiro seria preciso para suportar investimentos em votos.
Nada que não pareça absurdo. Até porque, como prêmio às contribuições elogiadas pelo próprio Lula da Silva – além de um talento administrativo que o colocava muito acima da maioria dos gestores públicos do País – Celso Daniel foi nomeado coordenador da campanha do petista um pouco antes de ser assassinado.
O leitor que encontrou dificuldades para entender a narrativa não deve culpar este jornalista. Foi mesmo esse emaranhado de argumentação que lastreou a crença de que Celso Daniel foi morto por parceiros de jornadas administrativas que abusaram do direito de meter a mão em dinheiros alheios.
Numa das declarações de Roberto Wider ao Repórter Diário está a casca de banana da imprecisão que lhe custa caro. “O Sérgio praticou atos com a mão própria. No momento do arrebatamento do Celso Daniel, ele entregou o Celso Daniel para os sequestradores. E isso eu consegui provar” – disse Roberto Wider.
Pois estou pronto a começar por esse ponto eventual livro-júri, porque a prova de que diz dispor sobre o arrebatamento de Celso Daniel, se tiver, é algo que não combina com todos os documentos de que disponho, relativos às investigações policiais e às declarações dos próprios sequestradores uma semana após o arrebatamento no chamado Três Tombos.
Documentação irrebatível
Houvesse investigado com meticulosidade o caso – e confiasse menos no delegado Romeu Tuma Júnior -- Roberto Wider estaria de posse do depoimento de um dos sequestradores que fala exatamente sobre o momento em que Celso Daniel foi transferido de veículo. O relato desqualifica qualquer versão incriminatória a Sérgio Gomes da Silva.
Juro aos leitores que torço imensamente pela concordância dos promotores criminais, embora não acredite que se disponham ao incômodo enfrentamento. Enfrentá-los seria um prazer imenso. O caso Celso Daniel merece esclarecimentos que seriam massificados além desta revista digital.
Vamos partir para a exposição inicial, para réplicas e para tréplicas. Como num Tribunal do Júri. Aos leitores caberá o juízo de valor das intervenções deste jornalista e dos promotores do MP. Sei que começo em desvantagem profunda, porque a quase totalidade dos consumidores de informações lançam Sérgio Gomes da Silva no buraco negro do inferno. Nada que seja surpreendente, dadas as características noticiosas do caso. Talvez seja por isso que os promotores criminais não tenham topado e jamais venham a topar uma disputa basicamente esclarecedora. É mais fácil sentar confortavelmente no senso comum de crime cometido pelos petistas.
Medo de escândalo
Sérgio Gomes da Silva é inocente. Celso Daniel foi o maior prefeito regional da Província do Grande ABC tanto quanto estava atreladíssimo ao esquema de arrecadação de dinheiro da Prefeitura de Santo André para abastecer o Partido dos Trabalhadores numa ação preliminar, em menor escala, do que se revelou, bem mais tarde, na Petrobras. É isso, aliás, que a força-tarefa da Operação Lava Jato quer ouvir de Ronan Maria Pinto em detalhes.
Talvez o promotor criminal Roberto Wider não fique satisfeito com eventual delação premiada de Ronan Maria Pinto. Assassinato do prefeito e irregularidades administrativas jamais se encontraram ao longo das investigações policiais.
O que o PT tanto temia à época – e isso ficou evidenciado naquelas famosas gravações – era ser desmascarado como gerenciador público acima de qualquer suspeita naquele período pré-presidencial. A virgindade ética e moral estava em jogo e precisava ser protegida a todo custo como embalo à grande jornada que começaria naquele mesmo ano de 2002: o início de anos seguidos de gestão dos cofres federais com a vitória de Lula da Silva sobre o candidato escolhido pelos tucanos, o senador José Serra.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP