Entrevista Especial

Governo do Estado
sufoca legislativo

VERA GUAZZELLI - 05/01/2004

A histórica relação de submissão que envolve os poderes Legislativo e Executivo incomoda o deputado estadual Mário Reali. Eleito parlamentar pela primeira vez, o ex-presidente da Saned (Serviço de Saneamento de Diadema) e ex-secretário de Obras de Ribeirão Pires esperou sete meses para ver seu primeiro projeto aprovado pela Assembléia Legislativa e não sabe quanto tempo aguardará ainda para que a iniciativa seja sancionada pelo governador. Em compensação, terá pouco mais de 30 dias para concluir a relatoria do PPA (Plano Plurianual 2004/2007) e acatar ou não as 1.338 emendas apresentadas por seus colegas de plenário e que sugerem mudanças nos R$ 307 bilhões que o Estado planeja investir no período.


É um contraste de ações que reflete o mecanismo do parlamento e faz o deputado petista chegar à conclusão de que a Assembléia é lugar onde se pode trabalhar muito e ter nenhum projeto aprovado. Em outras palavras: ainda há grande distância entre quantidade e qualidade, alimentada por interesses político-partidários e pela necessidade de prestar contas a um eleitorado que nem sempre compreende a importância da discussão contextualizada e sobretudo qualificada.


Mário Reali reconhece que o individualismo prevalece. No entanto, acredita na chamada Bancada do ABC e cita como uma das conquistas a mudança da lei de zoneamento na Grande São Paulo que permitiu a ampliação do Pólo Petroquímico e foi assinada pelo companheiro de partido Donisete Braga.


Também atribui a insatisfatória produtividade conjunta dos deputados da região à própria dinâmica das relações entre Executivo e Legislativo, nas quais há preferência explícita por projetos que não interferem na ação do governo. Ele também faz parte do time de otimistas que enxerga êxito no Consórcio de Prefeitos, na Câmara Regional, na Agência de Desenvolvimento e até no praticamente extinto Fórum da Cidadania. Mas é enfático ao reconhecer as dificuldades das iniciativas voluntariosas de articulação regional. Além do recém-aprovado projeto de lei que regulamenta as audiências públicas, Mário Reali é autor do projeto de lei complementar que traça diretrizes para a Política Estadual de Desenvolvimento do Estado de São Paulo, no qual sugere a formalização dos canais de interlocução já existentes.


A atividade parlamentar é frequentemente pautada pelo varejo, como mostra a própria relação de projetos que tramitam na Assembléia Legislativa. O senhor acredita que a dificuldade de os deputados se aprofundarem em temas relevantes estaria relacionada à falta de compreensão sistêmica dos problemas socioeconômicos ou às dificuldades de adaptar-se aos mecanismos burocráticos do parlamento?


Mário Reali -- O trabalho na Assembléia é bastante amplo,  por isso o parlamentar precisa estabelecer um foco para o mandato, eleger algumas áreas de atuação e aprofundar-se nos temas escolhidos para  ter um trabalho mais efetivo. Há situações em que a própria dinâmica da Casa polariza discussões  e releva a posição do deputado, porque a relação do Legislativo com o Executivo é, na maioria das vezes, de submissão. O governo estadual envia projetos com pouquíssimas informações e a bancada governista, que é maioria, pressiona para que as votações sejam feitas sem a discussão necessária. Os três últimos empréstimos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) que chegaram à Assembléia para serem analisados não continham esclarecimentos suficientes sobre o real destino do dinheiro e também informações básicas sobre a capacidade de endividamento do Estado. Na Assembléia é assim: você pode realmente trabalhar muito e ter poucos ou nenhum projeto aprovados. Por outro lado, o trabalho de fiscalização é muito prejudicado. Não pela burocracia, mas pela própria relação do Executivo com o Legislativo.


O senhor teve seu primeiro projeto aprovado sete meses após assumir o mandado. É um projeto que regulamenta as audiências públicas e teoricamente não suscita polêmicas ou discussões mais acaloradas. A demora é um fator que inibe a atuação parlamentar mais efetiva ou, ao contrário, obriga a produzir com ênfase na quantidade em vez da qualidade para não correr o risco de chegar ao final do mandato com pouca coisa para apresentar ao eleitorado?


Mário Reali -- Procuro priorizar projetos qualificados, mas o Executivo interessa-se bem mais por projetos que não interfiram no andamento das ações do governo. Os projetos mais fáceis de aprovar e que não encontram resistência se referem à denominação de escolas, alteração de nomes de pontes, viadutos ou criação de um dia em homenagem a determinada categoria. Já projetos de conteúdo, ou não conquistam espaço para serem discutidos na Casa ou  não são aprovados. Ou, se conseguem ser aprovados pela Assembléia Legislativa, depois são vetados integralmente ou em parte pelo governador. Há em torno de 160 projetos vetados na Assembléia.


O senhor poderia citar um projeto que foi vetado por interferir nas ações programadas pelo governo?


Mário Reali -- O projeto de autoria do agora prefeito de Diadema, José de Filippi Júnior, que concede poderes aos deputados estaduais para realização de diligências em empresas e órgãos estatais para investigações. O projeto tratava de ampliar a capacidade de fiscalização -- uma função básica da atividade parlamentar -- e teve uma série de artigos vetados.


Então seria correto afirmar que o mecanismo de funcionamento do parlamento conduz automaticamente ao individualismo e incentiva bem mais a quantidade do que a qualidade?


Mário Reali -- O atual sistema de apresentação individual de projetos soma-se à necessidade de mostrar serviço ao eleitor, estimulando o individualismo nas ações do parlamentar. A apresentação de projetos coletivos, aprovada recentemente pelos deputados, pode auxiliar na elaboração de projetos mais complexos, fruto de processos mais amplos e compartilhados.


Sob esse ponto de vista, a recente aprovação do projeto de lei que permite aos deputados apresentarem projetos de autoria coletiva pode melhorar o trabalho conjunto dos deputados do Grande ABC, já que agora a autoria será dividida igualmente entre todos os signatários e não haverá mais um nome em destaque como ocorria anteriormente?


Mário Reali -- Essa possibilidade fortalece a idéia de se trabalhar como bancada pluripartidária e com interesses comuns, como a Bancada do ABC faz em temas ligados ao orçamento, às políticas públicas da região e  leis de incentivos ao desenvolvimento regional, entre outras. É sempre mais fácil quando todos os envolvidos se sentem igualmente responsáveis pela autoria porque não há necessidade de chegar a um consenso sobre quem assina e quem subscreve a assinatura principal.


LIVRE MERCADO afirma que, apesar das competências individuais, a Bancada do ABC não existe institucionalmente. O senhor concorda?


Mário Reali -- A articulação regional dos prefeitos, o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, a Câmara Regional, a Agência de Desenvolvimento e o Fórum de Cidadania pautam uma agenda que inclui a bancada de deputados. Hoje, seguramente, a Bancada do ABC existe. O deputado Giba Marson, do PV, foi eleito o representante da bancada e tem assinado emendas, requerimentos e demais documentos que endossamos e são fruto de uma ação coletiva dos deputados.


Mas o senhor avalia como satisfatórios os resultados desse trabalho conjunto dos deputados até agora? Cite um exemplo de uma conquista da Bancada do ABC que o senhor considera relevante.


Mário Reali -- Concordo que os resultados práticos da Bancada do ABC têm sido menores do que desejamos, embora tenhamos conquistado algumas mudanças como a ampliação do Pólo Petroquímico, com a alteração do zoneamento em Mauá. Tem também o projeto de criação da Universidade Pública do Grande ABC, entre outros. A Bancada do ABC tem procurado legitimar a idéia do desenvolvimento regional. Muitas das idéias que defendemos em relação ao tema estão presentes até no texto do PPA, embora isso não se reflita nas ações e objetivos apresentados no plano. Por isso a necessidade de nossas emendas.


Como essas emendas dificilmente são acatadas, chega-se à conclusão de que a dinâmica da Bancada do ABC segue a lógica geral do parlamento. O que o Grande ABC consegue -- quando consegue --  é o que de certa forma já  está na pauta do governo estadual?


Mário Reali -- A Bancada do ABC, assim como o restante da Assembléia, tem sido pressionada pela dinâmica imposta pelo Executivo à Casa. Na realidade, nem a bancada de sustentação do governo tem interferido nessa dinâmica.


A autorização para que os projetos possam ter autoria coletiva aponta para uma tendência da Assembléia de regionalizar as discussões ou é apenas mais um mecanismo para fortalecer as alianças políticas?


Mário Reali -- A aprovação desse projeto significa a possibilidade de trabalhar regionalmente ou por grupos temáticos, envolvendo várias bancadas e pensando-se em temas para todo o Estado. Um modelo muito interessante para se discutir sob esse novo formato é a Lei dos Resíduos Sólidos e a própria questão do desenvolvimento regional. O caminho é interessante para que se  discutam as políticas públicas de todo o Estado porque fortalece a ação legislativa regional e temática.


A Assembléia também instalou um fórum permanente para incentivar as discussões regionais, apesar de a iniciativa chegar com atraso em relação às demandas integradas. Mesmo assim, o senhor acredita que a iniciativa será suficiente para despertar nos parlamentares questões de relevância relacionadas principalmente ao desenvolvimento econômico?


Mário Reali -- O Fórum Legislativo de Desenvolvimento Econômico Sustentado deve suprir uma deficiência das audiências públicas e da relação interativa do Executivo estadual com as regiões. Nesse sentido, pode estimular os parlamentares a deixar o isolacionismo para trabalhar com colegas que representam uma mesma região. De qualquer forma, é preciso destacar o empenho da mesa diretora da Assembléia na criação do Fórum Legislativo porque a iniciativa cria um compromisso com as regiões e uma esperança de que as demandas sejam fortalecidas e até atendidas por meio da ação parlamentar. O projeto de lei complementar 0041/2003, de minha autoria, já está em tramitação na Assembléia e trata da Política Estadual de Desenvolvimento. O projeto cria diretrizes, conselhos regionais e estímulos para o Estado de São Paulo planejar seu desenvolvimento socioeconômico a longo prazo e de acordo com a vocação das regiões. Se aprovado, pode também ajudar a formalizar os espaços de articulação já existentes.


Em recente entrevista a LIVRE MERCADO, o assessor da Seplan (Secretaria de Estado do Planejamento) Maurício Hoffmann abordou as dificuldades que os parlamentares têm de priorizar emendas tanto no PPA (Plano Plurianual) quanto no orçamento do Estado  que sejam compatíveis com os recursos disponíveis. De que forma os deputados podem efetivamente interferir na modificação ou até no ajuste dos principais instrumentos de planejamento do Estado?


Mário Reali -- Em primeiro lugar, os parlamentares precisam ter mais informações a respeito da constituição do orçamento e dos projetos do Executivo. O governo Alckmin deveria estabelecer critérios de relacionamento com os parlamentares e regiões para aceitar as sugestões e dizer onde é possível negociar, melhorar e alterar os projetos enviados à Assembléia Legislativa. Hoje, o Orçamento do Estado, a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e o PPA são blindados, são peças fechadas. Não interessa ao Executivo que a Assembléia tenha força e possa realmente interferir nessas peças da administração pública, de modo que o governo  busca insistentemente esvaziar e enfraquecer a atuação do Legislativo. A Bancada do PT na Assembléia tenta inverter essa relação mas, por outro lado, o orçamento e o PPA são peças complexas e você só consegue verbas e prioridades para um setor retirando recursos de uma área e transferindo para outra.


O senhor integra a Comissão de Assuntos Metropolitanos da Assembléia, uma comissão que privilegia bem mais as questões operacionais do que o debate sobre as áreas adensadas do Estado. O governo do Estado já anunciou que em 2004 iniciará a reformulação da Grande São Paulo, provavelmente com a adoção de submetrópoles e o Grande ABC seria uma. Como o senhor espera que a comissão se comporte diante de discussão tão relevante?


Mário Reali -- A Região Metropolitana de São Paulo segue modelo pouco eficaz para enfrentar os problemas da metrópole. O enfoque é setorial e as políticas públicas são implantadas sob a lógica isolada e centradas em si próprias. Por exemplo: de nada adiantou fazer a lei que limitava o adensamento populacional em área de mananciais sem o estabelecimento de uma política habitacional articulada capaz de evitar as ocupações clandestinas. Acredito que a  Comissão de Assuntos Metropolitanos da Assembléia deva articular esse debate com a realização de audiências públicas sobre questões como limites territoriais da RMSP, definição do formato do Conselho de Desenvolvimento e da gestão subregional.


Como o senhor espera que os parlamentares do Grande ABC se comportem diante dessa discussão essencial para a oficialização do Grande ABC como subregião?


Mário Reali -- Os agentes sociais do Grande ABC têm muito a contribuir nesses debates, uma vez que as experiências do Fórum de Cidadania, da Câmara Regional, da Agência de Desenvolvimento e do Consórcio de Prefeitos são reconhecidas no País todo como instâncias inovadoras de articulação. São experiências exitosas, mas limitadas em razão da própria dificuldade de institucionalização. Já a Bancada do ABC tem especial responsabilidade no debate e na formulação de propostas, juntamente com o governo federal, para que se possa superar tais limitações, já que é preciso fortalecer a capacidade de articulação do território. Creio que a divisão do território deve basear-se nas relações políticas, sociais e econômicas já definidas.


Como o senhor analisa a possível formalização institucional do Grande ABC como uma subregião?


Mário Reali -- Na Conferência Nacional das Cidades discutiu-se muito a idéia de reconhecer institucionalmente os espaços de diálogo e planejamento existentes nas regiões metropolitanas e nas  subregiões formalizadas ou não. Isso daria outra dinâmica à  Câmara Regional, à Agência de Desenvolvimento, ao Consórcio Intermunicipal do Grande ABC e até ao Fórum da Cidadania. Por outro lado, enxergo como muito positivo o reconhecimento institucional da subregião Grande ABC, pois, apesar da mobilização, ainda existem muitas dificuldades. As dificuldades são marcantes na interlocução da região com o governo do Estado, conforme pudemos atestar a partir do que ocorreu com as emendas apresentadas coletivamente pela bancada do Grande ABC para a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e que foram rejeitadas. A institucionalização e um novo formato de gestão certamente contribuiriam para a superação de impasses que limitam a gestão integrada dos sete municípios do Grande ABC.


Durante a Conferência Nacional das Cidades, que discutiu temas predominantemente metropolitanos, foi levantada também a possibilidade de formação de um parlamento metropolitano? Como o senhor avalia essa possibilidade?


Mário Reali -- A idéia do parlamento metropolitano não chegou a ser muito desenvolvida na Conferência das Cidades. Mas a Câmara Federal, em parceria com o Ministério das Cidades e da Subchefia de Assuntos Federativos da Casa Civil, está promovendo uma série de seminários iniciados em 6 de novembro para discutir a gestão metropolitana. Uma questão que se coloca de forma clara é evitar um desenho rígido para essas regiões. Existem desde regiões com população de cerca de um milhão de habitantes até a Grande  São Paulo com quase 18 milhões.


Ao que tudo indica, não se caminha para a criação de mais um ente federativo, mas para o fortalecimento da gestão compartilhada, com a integração de ações e recursos federais, estaduais e municipais. A idéia de se criar um parlamento a partir dos municípios, com os presidentes das câmaras municipais ou parlamentares escolhidos entre seus pares, pode ser uma alternativa. Já são sete municípios no Grande ABC, cada qual com 21 vereadores. Não podemos criar mais uma instância desse gênero, mas algo que realmente complemente o sistema atual. Talvez o melhor seja mesmo fortalecer as instâncias que já existem.


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