Caso Celso Daniel

Viúva espera ser
ouvida pelo juiz

DA REDAÇÃO - 05/01/2004

Viúva e mãe da única herdeira de Celso Daniel, a socióloga Ivone Santana quer ser ouvida pelo juiz da 1ª Vara Criminal de Itapecerica da Serra. Ela espera ser convocada pelo juiz criminal que acolheu denúncia do Ministério Público Estadual apontando o empresário Sérgio Gomes da Silva como mandante do sequestro e assassinato do homem com quem partilhou os últimos seis anos de vida. Ivone Santana é testemunha importante do caso, mas não foi chamada pelo MPE instalado em Santo André.


Ivone Santana decidiu revelar a identidade do pai de sua filha Liora, de 18 anos completados em setembro, depois que o jornalista Daniel Lima encaminhou ao MPE, ao juiz da 1ª Vara Criminal de Itapecerica da Serra, ao procurador-geral do Estado e aos advogados de Sérgio Gomes da Silva, além do ex-procurador geral da República, Aristides Junqueira, dossiê que contesta o eixo da denúncia dos promotores públicos. Como o jornalista, Ivone Santana discorda da posição do MPE, baseada nas declarações do primeiro-irmão João Francisco Daniel, de que a origem do crime seria a tentativa de Celso Daniel desestruturar suposto esquema de corrupção na Prefeitura de Santo André, que teria o então secretário de Serviços Municipais, Klinger Sousa, como pivô das operações.


Ivone Santana dirá à Justiça o que o dossiê do jornalista comprova: em vez do suposto esvaziamento de poderes de Klinger Sousa, que segundo João Francisco Daniel teria motivado o crime, o que se verificou nos últimos dois meses de vida de Celso Daniel foi exatamente o contrário, com o fortalecimento das posições estratégicas do então secretário no Paço Municipal. Ou seja: independentemente de juízo de valor sobre o mandante, a diretriz alinhavada pelo MPE não tem sustentação nos fatos que precederam o crime.


Mais que apenas ouvi-la, Ivone Santana vai sugerir ao magistrado que outros executivos públicos da Prefeitura de Santo André sejam convocados a prestar depoimentos. Cita nominalmente dois importantes assessores do presidente Lula da Silva, a ex-secretária municipal Miriam Belchior, primeira mulher de Celso Daniel, e o secretário particular Gilberto de Carvalho, ex-chefe de gabinete do prefeito. "Quem participou das reuniões do começo do ano passado, logo depois das férias, sabe muito bem que o Celso acertou uma série de questões por causa da necessidade que teria de comandar o programa de governo do Lula e entre essas mudanças estava a ampliação das atividades do Klinger, motivo da desistência de disputar uma vaga na Assembléia Legislativa"  -- afirma.


Saindo da penumbra


Ao revelar o nome do pai de Liora em edição especial da newsletter CapitalSocial Online, Ivone Santana decidiu sair da penumbra em que autoridades e imprensa a colocaram desde que o corpo de Celso Daniel foi encontrado na manhã do domingo 20 de janeiro de 2002 numa estrada de terra batida em Juquitiba, na Grande São Paulo. Nem a vida em comum com Celso Daniel, com quem apenas não dividia o mesmo teto sistematicamente, lhe valeu condição diferente de namorada. Ivone Santana perdeu feio em parentesco com o prefeito para os irmãos Daniel, embora, segundo garante, mantivessem longa e gélida distância do político que quase dois meses antes do assassinato foi indicado para comandar o programa de governo do petista Lula da Silva na campanha à Presidência da República.


Foi Ivone quem correu atrás dos trâmites burocráticos para o enterro de Celso Daniel. Ela cuidou de todos os detalhes e não desgrudou do caixão com o corpo que ficou exposto no salão nobre da Câmara de Vereadores. Ivone não esconde mágoas dos irmãos de Celso Daniel. "Eles só o procuravam, e mesmo assim inutilmente, para pedir algum favor, um emprego, uma quebra de multa de trânsito, coisas assim"  -- afirma essa mulher de 40 anos que carregou durante mais de 18 anos o segredo do nome do pai de Liora.


Remorso dos irmãos


Vai mais fundo nas queixas. Foi preterida pelo comando do Paço Municipal em todos os eventos pós-morte de Celso Daniel. Tanto na posse de João Avamileno quanto na cerimônia que marcou o primeiro aniversário do sepultamento. Nesse, assistiu impávida o discurso contestatório de Bruno Daniel Filho, porta-voz das desconfianças da família sobre a motivação do sequestro seguido de assassinato: "Há um componente de remorso que a psicanálise explica, porque eles se excluíram da vida do Celso Daniel e, depois da morte, tentam recuperar o tempo perdido para amenizar a perda de alguém da família" -- analisa a socióloga.


A revelação de que Celso Daniel é o pai biológico de Liora Mindrisz, e não o atual secretário de Saúde de Santo André, Michel Mindrisz, coloca Ivone Santana na expectativa de que será solicitada a prestar depoimento ao juiz criminal. "Não só eu, mas todos os amigos que compartilhavam a administração de Santo André com Celso Daniel. Não consigo entender por que o Ministério Público Estadual só ouviu até agora testemunhos de pessoas sem relação com Celso e construiu um enredo que dá ares de conspiração contra alguém que, francamente, jamais demonstrou qualquer preocupação com sua própria segurança"  -- desabafa.


Um fio de cabelo branco apanhado na bolsa em que carrega uma escova que Celso Daniel dividia frequentemente com Ivone Santana transformou uma verdade -- que se materializa na intensa semelhança física entre Liora e o pai -- em garantia científica conferida pelo DNA. Mesmo assim, a família Daniel não se conforma com o resultado. Os irmãos João Francisco e Bruno exigiram novos exames. Ivone Santana não esconde estar decepcionada. Esse é apenas um novo capítulo de um relacionamento que jamais se apresentou confortável. Ivone impetrou duas ações na Justiça para colocar a situação pós-morte de Celso Daniel em ordem. Primeiro, a confirmação da paternidade de Liora. Segundo, os direitos do legado intelectual do prefeito que mais pensou e trabalhou no sentido de tornar o Grande ABC uma metrópole sem o provincianismo municipalista que impera desde a série de emancipações político-administrativas.


Escola de governo


Fundadora da Escola de Governo, organização não-governamental cuja matéria-prima é a qualificação ética e técnica do setor público, Ivone Santana é cautelosa ao se referir à força-tarefa do MPE. Entretanto, a insistência com que fala em prestar depoimento à Justiça Criminal, omitindo qualquer interesse em ser ouvida pelo MPE, resplandece a carga de decepção pela denúncia contra Sérgio Gomes da Silva. "Jamais houve qualquer indício de que o Celso Daniel tivesse algum problema de relacionamento com amigos e mesmo com terceiros antes do crime. Se houvesse alguma coisa eu saberia, sem dúvida, porque ninguém viveu mais próximo dele nos últimos seis anos de vida do que eu" -- reafirma.


Dois anos depois do crime, Ivone Santana repete as palavras das primeiras declarações à Imprensa que na maioria das vezes preferiu omitir: ela e o filho mais novo, Gabriel, deveriam jantar na fatídica noite de 18 de janeiro de 2002 em companhia de Celso Daniel e Sérgio Gomes.  Haviam combinado. Mas, à última hora, Ivone desistiu por causa de compromissos no dia seguinte com a então campanha do candidato José Genoíno ao governo do Estado. Sérgio e Celso chegaram a passar no escritório de Ivone. Insistiram para que fosse, mas ela acabou ficando. A versão de Ivone Santana é importante na medida em que conflita com informações da denúncia do MPE que caracteriza o crime como programado por Sérgio Gomes da Silva.


Bomba no Planalto


Tudo é possível na apuração do assassinato de Celso Daniel. Desde um lance surpreendente que desate o nó como novos emaranhados que tornem a compreensão cada vez mais improvável. A entrada em cena do ex-procurador geral da República Aristides Junqueira, substituindo um magoadíssimo Luiz Eduardo Greenhalgh, destacado pelo Partido dos Trabalhadores para acompanhar o caso desde o sequestro, deverá provocar mudanças no jogo quase que unilateral de informações do MPE. Aristides Junqueira serviu durante longos anos o Ministério Público. Ele assume função com o claro propósito de evitar que a morte de Celso Daniel seja relacionada ao suposto esquema de propina na Prefeitura de Santo André que, por sua vez, alimentaria o caixa eleitoral petista. Uma bomba que poderia explodir no colo do Palácio do Planalto.


O dossiê do jornalista Daniel Lima foi enviado a Aristides Junqueira dois dias antes de o PT anunciar que o contratou em substituição a Greenhalgh. Dois dias após as primeiras declarações restritivas às investigações do MPE, por considerá-las além das prerrogativas legais dos promotores, Aristides Junqueira acompanhou o tropeço de testemunho do Ministério Público Estadual: o bandido Aílton Alves Feitosa, considerado testemunha principal das investigações que determinaram a prisão preventiva de Sérgio Gomes da Silva, deu declarações ao jornal O Estado de São Paulo que, uma semana antes, negara à Folha de S. Paulo.


Feitosa está condenado a 36 anos e oito meses por três assassinatos e um atentado violento ao pudor. Dos últimos 11 anos e meio, passou apenas 11 dias em liberdade. Ele fugiu do presídio de Guarulhos dois dias antes do sequestro de Celso Daniel em espetacular ação de resgate com Dionísio de Aquino Severo. Em 13 de dezembro, Aílton Feitosa disse à Folha de São Paulo que em momento algum foi citado o nome de Sérgio Gomes da Silva nas supostas reuniões que determinariam o forjado sequestro de Celso Daniel. "Em momento algum é dito o nome do Sérgio" -- enfatizou.


Em 19 de dezembro, o mesmo Feitosa fez relato diferente em entrevista ao Estadão. Acusou Sérgio Gomes da Silva de mandante com base em suposta informação de Dionísio de Aquino Severo, morto em circunstâncias igualmente contraditórias na cadeia poucos dias depois de capturado pela polícia. "O que está sendo divulgado é a mais pura verdade. Não tem conspiração contra o Sérgio como vem alegando a cúpula do PT"  -- disse.


É por causa de contradições como essa e também de conclusões que levaram em conta  exclusivamente o testemunho de João Francisco Daniel que a socióloga Ivone Santana decidiu sair da clausura a que se submeteu nos últimos tempos, cansada de ler e ouvir versões que a levaram, inclusive, a cancelar a assinatura de jornais. "Como pode o Ministério Público confiar mais nas palavras de um bandido e de um irmão ausente do que de pessoas que sempre estiveram próximas do Celso?" -- questiona.


A mulher de Celso Daniel afirma que não consegue entender por que se fala tanto em irregularidades da gestão da Prefeitura, como o suposto esquema de propina: "Onde está o dinheiro dessas tão faladas operações? Não vejo nada, não aparece nada. Além disso, Celso jamais fez qualquer menção sobre isso ou revelou qualquer contrariedade nesse sentido" -- assegura.


Apoio discreto


Amiga pessoal do vereador e ex-secretário Klinger Sousa, Ivone Santana explica o que seria uma clara mas discreta preferência político-eleitoral de Celso Daniel pelo então secretário de Serviços Municipais como sucessor. "Havia uma disputa evidente pela indicação à sucessão do Celso entre deputados do PT. Mas Celso entendia que, dadas as características dos pretendentes, Klinger era quem mais se aproximava do perfil ideal. Ao contrário dos outros, especialistas em Legislativo, em disputas parlamentares, Klinger apresentava-se como planejador e executor. Por isso que o incentivou a legitimar-se eleitoralmente à Câmara Municipal e, quando foi nomeado coordenador do programa do Lula, deu a ele novas funções na Prefeitura, além de colocá-lo no grupo de suporte à campanha presidencial, fazendo-o esquecer a Assembléia Legislativa" -- rememora Ivone.


Informações como essas e tantas outras colocam Ivone Santana em conflito com o processo criminal que culminou com o oferecimento de denúncia contra Sérgio Gomes da Silva. Os jornais de 11 de dezembro abriram generosas manchetes para explicar o pedido de denúncia contra o empresário pelo Ministério Público. "Os promotores de Justiça que investigam o sequestro e a execução de Celso Daniel trabalham com muita convicção nessa linha (de desarticulação do suposto esquema de corrupção que teria tomado conta de setores da Prefeitura de Santo André). Eles suspeitam que o prefeito ameaçou interesses de empresários envolvidos em contratos irregulares, dezenas de negócios realizados por meio de licitações dirigidas no período entre 1997 e 2002"  -- escreveu o Estadão.


Mais à frente, o jornal paulistano relata: "A primeira medida concreta de Celso Daniel para desmontar as bases do grupo, sustentam os promotores, foi impedir a candidatura a deputado estadual de seu secretário de Serviços Municipais, o vereador Klinger Luiz de Oliveira Sousa. Com tal gesto, teria tido a intenção de barrar a evolução política de Klinger, eminência do PT em Santo André".


O jornal afirma que a minuciosa apuração do Ministério Público Estadual contou com informações do médico oftalmologista João Francisco Daniel, autor das primeiras revelações sobre supostas propinas que se teriam instalado em secretarias e departamentos da administração municipal. Ivone Santana lembra que João Francisco Daniel não participava da vida administrativa da Prefeitura de Santo André e que seus interesses estariam relacionados a oposicionistas partidários. "João Francisco e os Gabrillis são vizinhos e têm muita afinidade ideológica" -- lembra Ivone Santana, referindo-se aos proprietários de empresa de transporte coletivo que denunciaram o suposto esquema de propina no setor para abastecer campanhas do PT.


Pedido de casamento


Praticamente dois anos depois de perder Celso Daniel, mas agora sem o sobrepeso do segredo sobre a paternidade de Liora, Ivone Santana espera que os próximos tempos sejam de esclarecimentos. Não se arrepende de não ter aceito dois pedidos de casamento de Celso Daniel. Ela conta que o ex-prefeito só soube que era pai de Liora em 1990, num final de expediente no Paço Municipal, quando Celso Daniel parecia enfastiado. A notícia, relata Ivone, o deixou feliz. Celso Daniel já fazia parte da vida de Liora, comparecendo a praticamente todas as festinhas de aniversário. "Sei que ele era muita areia para o meu caminhãozinho" -- brinca a socióloga, referindo-se ao companheiro de quase dois metros de altura que despertava, segundo afirma, paixões de muitas mulheres, que escreviam e telefonavam intensamente. "Ele tratava a todas com respeito".


Ainda preconceituosamente tratada como namorada, Ivone Santana mantém um quadro com a foto de Celso Daniel iluminado a vela no piso da sala de visitas do apartamento de classe média que tem em Santo André. Guarda a coleção de calças jeans e camisas esportivas do ex-prefeito. E, surpreendentemente, muitas gravatas finíssimas que Celso Daniel pouco usava, mas adorava comprar. Manuscritos do engenheiro, do professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas e do prefeito de Santo André são igualmente bem cuidados. Celso Daniel era extremamente zeloso com suas anotações.

 

É por isso e por muito mais que Ivone Santana é candidata a testemunha, depois de revelar-se mãe da única herdeira do prefeito. Não faz questão da viuvez que lhe negam.


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