Por que o jornalista Daniel Lima, diretor-executivo da revista LivreMercado, decidiu não assumir o cargo de diretor de redação do Diário do Grande ABC, depois de assinar formalmente a posse três dias antes? Nesta entrevista de formato inovador, porque os entrevistadores compõem toda a equipe de jornalistas da revista, Daniel Lima vai além de afirmar que a resposta está na recusa em aceitar censura prévia do material jornalístico pretendida pela família Polesi, sócia minoritária do Diário do Grande ABC. “Já vão longe os tempos ditatoriais do getulismo e do regime militar” -- lembra. “Ninguém deve se submeter à censura” -- completa.
Autor de três livros nos dois últimos anos (Complexo de Gata Borralheira, Meias Verdades e República Republiqueta), todos relacionados à fragmentação administrativa e política do Grande ABC e suas consequências sociais e econômicas, Daniel Lima preparou e teve aprovado um Planejamento Estratégico Editorial para o jornal. Entre as novidades que delimitariam a nova fase da publicação, o jornalista destaca a composição de um Conselho Editorial integrado por especialistas em diferentes atividades econômicas, públicas, sociais e culturais.
Coordenador-geral do Prêmio Desempenho, há 10 anos sinônimo de sucesso e credibilidade no Grande ABC, criador de Nossas Madres Terezas e dos Imortais do Grande ABC, entre outros, e fundador do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), Daniel Lima afirma que o Diário sob seu comando seria uma extensão mais ampla da linha editorial que transformou LivreMercado na melhor publicação regional do País. Regionalidade no contexto metropolitano é o núcleo da proposta do jornalista, que tem distribuído aos interessados cópias do projeto aprovado pelo Conselho de Administração do Diário. “Dirigir editorialmente um veículo de comunicação é assumir compromissos públicos de transparência e compartilhar ações” -- conceitua.
A que se deve a recusa em assumir o cargo de diretor de redação do Diário do Grande ABC, depois de escolhido pelo Conselho de Administração e de programarem a posse?
Daniel Lima -- Os tempos de censura à Imprensa patrocinados pelos governos de exceção de Getúlio Vargas e do regime militar jamais serão bem-vindos. Os acionistas do Diário do Grande ABC Fausto Polesi e Alexandre Polesi pretendiam exercitar às claras, supostamente com respaldo estatutário, o que praticaram durante muitos anos de forma explícita e em seguida às escondidas, isto é, dar as cartas na redação do jornal, sobre a qual eles têm domínio. Os Polesis sempre prevaleceram na redação do Diário. O produto editorial que aí está tem todas as digitais deles; é consequência de anos e anos de reinado.
Não seria um direito deles acompanhar os trabalhos de redação?
Daniel Lima -- Embora sejam jornalistas, suas atribuições naquela companhia estão restritas ao quadro de acionistas e de membros do Conselho de Administração. O foro adequado para que expusessem pareceres sobre a redação é o Conselho de Administração. Aliás, tomei a iniciativa de, ao ser contratado, dispor-me a prestar todas as informações necessárias aos membros do Conselho de Administração. Nosso trabalho seria absolutamente transparente e compartilhado em situações que fugissem do cotidiano da informação. Gostaria de ver os Polesis nas reuniões do Conselho de Administração cujo temário fosse a área editorial.
Quando ocorreu o encontro entre o senhor e representantes da família Polesi?
Daniel Lima -- Em 17 de março, um dia depois de assinar o termo de posse da redação. Eles se plantaram no sexto andar da empresa e me aguardaram para uma reunião solicitada ao superintendente Oscar Osawa. Fiz questão de dialogar com eles.
A conversa foi tensa?
Daniel Lima -- No começo sim, porque o senhor Fausto Polesi dá sinais de que troca o presente com o passado, a verdade com a imaginação. Mas depois tudo se ajeitou. Foram diálogos interessantes. Nunca me senti tão à vontade.
Que momento teria sido o mais especial?
Daniel Lima -- Quando Alexandre Polesi disse que eu não me enquadraria nos critérios de profissionalismo que ele adotaria na empresa. Imagine só, alguém com currículo tão pobre e tão confuso, orquestrador do Fórum da Cidadania e organizador de uma redação tecnocrática, pretendendo ditar regras. Os escolhidos de Alexandre Polesi para o Diário sempre foram um fracasso, gente despreparada. Gente de sua mais intestina intimidade, mas sem qualidade, mesmo gastando rios de dinheiro.
E suas relações com Fausto Polesi?
Daniel Lima -- Respeito Fausto Polesi pela condição etária, mas profissionalmente jamais fui suficientemente sensibilizado a admirá-lo, exceto pelo denodo em se lançar ao trabalho. Pena que passou anos e anos construindo relações incestuosas com amigos e amigos dos amigos, num jornalismo de compadrio -- aliás, um dos pontos que execro no Planejamento Estratégico Editorial que elaborei e foi aprovado pelo Conselho de Administração. Em resumo, o projeto é uma antítese das influências dos Polesis naquela empresa porque seus limites editoriais começavam e terminavam nos interesses de contemplar amigos. Ou pretensos amigos, porque ficaram praticamente abandonados nos últimos tempos.
O senhor chegou a pensar em assumir o cargo?
Daniel Lima -- Desde que ouvi dos Polesis que atuariam como censores, minha decisão já estava tomada. Aliás, disse para eles. Dois dias depois mantive reunião com os Dottos, que até prova em contrário são majoritários na companhia, e expus a necessidade de contornar o obstáculo. Disseram-me que seria preciso esperar alguns dias, para que se revertesse a situação no Conselho de Administração. Sugeri então que adiassem minha posse, mas eles não aceitaram.
Quando o senhor decidiu não comparecer à posse marcada para 15h de sexta-feira, dia 19 de março?
Daniel Lima -- Acho que a decisão já tinha sido tomada ao longo dos dias anteriores, mas quando soube que nem mesmo a gerente operacional da Editora Livre Mercado, Kátia Passadore, que trata de todas as minhas necessidades profissionais, poderia entrar na sede do jornal antes de minha posse, não tive dúvidas de que algo estranho havia sido preparado.
Quem deu a ordem?
Daniel Lima -- O diretor-adjunto Arthur Lotto, ligado ao grupo de Fausto e Alexandre Polesi e cujo desempenho nas relações com a Editora Livre Mercado sempre foi dúbio, para não dizer obstaculador. Ele foi mais adiante na tentativa de me isolar: deu ordens à portaria para impedir Kátia Passadore de ingressar. Aquele executivo subverteu a hierarquia, porque eu já estava empossado e o Planejamento Estratégico Editorial consistia de ampla autonomia ao gestor editorial.
O ingresso de Kátia era tão relevante assim?
Daniel Lima -- Taticamente sim, porque precisava sondar o terreno onde pisaria, já que tanto Fausto quanto Alexandre Polesi estavam à minha espera. Se a Kátia não poderia entrar para cuidar de minha sala de trabalho, imagine os demais integrantes da Editora Livre Mercado, cerca de 40, que me procuraram dias antes dizendo que queriam acompanhar minha chegada ao Diário. De forma alguma eu os frustraria.
O que o esperava no Diário?
Daniel Lima -- O ambiente de beligerância acionária por parte dos Polesis naquela empresa não pode ser subestimado. Sabe-se que o esgarçamento dos bons modos já atingiu o ápice. Pretendia-se com minha apresentação aos editores, no salão nobre, provocar um fato desagradável, com invasão do espaço pelos acionistas minoritários e subsequente desautorização legal à minha atuação. É provável que, diante de eventual presença dos acionistas majoritários, o ambiente se degradasse ainda mais, porque os Dottos já dão sinais de que não suportam mais a instabilidade levada pelos Polesis aos membros da companhia. Pensei na repercussão negativa para a corporação e decidi que não seria correto tornar o ambiente ainda mais inquietante.
O senhor não estaria exagerando nessa perspectiva?
Daniel Lima -- De forma alguma. Contava com informações seguríssimas sobre o ambiente divisionista que teria momentos de fricção com minha chegada. Os Polesis, que controlam a redação, utilizaram-se de conhecidos assessores informais para instaurarem ambiente desagradável. Estava tão certo da decisão de evitar fatos lamentáveis naquela sexta-feira que três dias depois, numa festa de empresários em São Bernardo, um jornalista de baixa estatura ética, espécie de assessor de imprensa dos Polesis, agrediu o porta-voz da Prefeitura, Raimundo Salles, atirando-lhe o líquido de um copo de uísque e dizendo que ele apostara errado nas disputas no Diário. Uma avaliação absolutamente descabida. A agressão ao Salles simbolizava um gesto de desespero na luta acionária pelo Diário porque aquele jornalista estava acompanhado circunstancialmente ou não de Fausto Polesi.
Mas o senhor não estava interessadíssimo em dirigir a redação do Diário?
Daniel Lima -- Me fiz essa pergunta várias vezes ao longo dos dias e sempre respondia a mim mesmo que não deveria me instalar na Rua Catequese. Várias vezes durante as reuniões com os acionistas majoritários expus minha inquietação, mas sempre fui voto vencido. A redação do Diário é um caso complicado enquanto vicejar a influência direta e indireta dos Polesis. Há equívocos gerenciais que afetam extraordinariamente o produto final. Os profissionais estão desmotivados porque sofrem as consequências de pressões dos Polesis, cujo esporte favorito é propagar a todos que vencerão a disputa acionária na Justiça.
E o gostinho de dirigir o jornal?
Daniel Lima -- Vaidosos e carreiristas só enxergam os eventuais bônus do cargo, jamais os ônus. Se tinha que sentir algum prazer em voltar ao Diário, depois de ali ter estado por 15 anos e dali ter-me ausentado nos 18 anos seguintes, esse prazer foi materializado com a assinatura de minha posse, em reunião do Conselho Administrativo. Mas isso foi apenas uma formalidade legal à qual não me prendi diante do atentado à liberdade de expressão pretendida pelos Polesis.
Que avaliação o senhor acredita que os Polesis têm do seu trabalho e de sua equipe?
Daniel Lima -- Dadas as fundas diferenças que nos separam e que estão detalhadamente enfatizadas no Planejamento Estratégico Editorial, é natural que eles busquem o caminho transverso de uma malandragem semântica que não resiste à menor avaliação crítica. Basta solicitar os serviços prestados por eles nos anos coincidentes que estiveram à frente do Diário e os que, com enormes dificuldades, implantamos na revista LIVRE MERCADO.
O que acha de os Polesis dizerem que conseguiram afastar o senhor do jornal?
Daniel Lima -- Acho que estão contando apenas metade da história. A outra metade vai manchar a biografia de ambos para o resto da vida, como censores contumazes. Aliás, como pretensos censores, porque jamais permitiria que meus textos e os textos de companheiros de trabalho passassem pelo crivo de quem -- juntos ou separadamente -- teve 45 anos para ajudar a moldar um Grande ABC bem diferente do que temos.
Que Grande ABC é esse?
Daniel Lima -- Basta recorrer aos arquivos de LIVRE MERCADO para ver a diferença de postura. O Diário simplesmente não conseguiu enxergar a banda da globalização passar pela região nos últimos 14 anos, enquanto a revista não só acompanhou e interpretou todos os fatos como, principalmente, se antecipou aos acontecimentos. Basta ler os três livros que lancei nos últimos dois anos para detectar a síntese do perfil editorial da revista.
Como foi formulado o Planejamento Estratégico Editorial para o Diário do Grande ABC?
Daniel Lima -- Num final de semana viajei para uma casa no Interior e produzi o material. São 95 mil caracteres, algo como um livro de 80 páginas. Dividi o planejamento em 12 pontos. Fiz mais que uma abordagem gerencial. Cavouquei vetores sociológicos que consubstanciaram o planejamento. Não foi nada extraordinariamente difícil, porque a experiência à frente de LIVRE MERCADO é riquíssima. Além disso, tratou-se de um vôo panorâmico. O vôo rasante seria a prática do dia-a-dia.
Esses experimentos se referem exclusivamente ao campo jornalístico?
Daniel Lima -- Sem dúvida. Jamais tive acesso ao gerenciamento administrativo-financeiro da Editora Livre Mercado, que, desde o início da parceria com o Diário do Grande ABC, em abril de 1997, coube ao sócio majoritário, especialmente ao dirigente Wilson Ambrósio da Silva, também presidente da Associação Comercial e Industrial de Santo André e homem de confiança dos Polesis.
Qual o resultado dessa gestão administrativo-financeiro?
Daniel Lima -- Prefiro não entrar em detalhes.
Quais eram os pontos mais importantes do projeto editorial?
Daniel Lima -- A âncora motivacional que preparei para reverter o quadro de depauperação editorial do jornal é o projeto Diário50Anos. Em maio de 2008 o jornal vai completar 50 anos e até lá seriam exatos 50 meses de muitas novidades. Não havíamos detalhado a programação dos 50 anos, mas antecipamos que em 2008 teríamos exatamente meia centena de eventos relacionados às festividades do jornal. O embalo do jogo, repito, seria esse projeto, mas iríamos mergulhar fundo numa operação que já aplicamos na Editora Livre Mercado e que se tornou sucesso na área editorial. Teríamos os conceitos de jornalista com especialidade, de multiplicidade, de compromisso social, de responsabilidade regional, tudo isso num mesmo pacote. A ótica editorial do jornal seguiria os passos da Editora Livre Mercado. Nossa revista está de olhos postos na regionalidade mergulhada na metropolização. Somos sete municípios entre 39 da Região Metropolitana de São Paulo com seus 18 milhões de habitantes. Criamos o Instituto de Estudos Metropolitanos há um ano como suporte estatístico e de estudos principalmente sobre nossa metrópole.
Qual foi a reação dos acionistas?
Daniel Lima -- As duas famílias Dottos participaram dos encontros e aprovaram integralmente a proposta. Os Polesis não compareceram nem mesmo à posse formal, mas durante a reunião que mantive com eles, no dia seguinte, entreguei-lhes cópias do material. Talvez a leitura tenha sido indigesta, porque me refiro em vários pontos ao modelo de jornalismo de compadrio que não consta do meu dicionário profissional.
Um exemplo de jornalismo de compadrio?
Daniel Lima -- O lançamento político do ex-deputado federal Duílio Pisaneschi e toda a engenharia de negociações para torná-lo objeto de desejo eleitoral tiveram participação direta de Fausto Polesi, como o próprio Duílio afirmou ainda outro dia. Não estabeleço juízo de valor sobre o ex-deputado federal. Refiro-me apenas à metodologia aplicada. Fausto Polesi sempre atuou como espécie de imperador, procurando influenciar nos mais diferentes organismos esportivos, sociais e econômicos. A Acisa inoperante sob o ponto de vista institucional sempre foi um ramal de Fausto Polesi, que, inclusive, dirigiu a entidade como presidente e se perpetuou numa espécie de Politburo, um Conselho Gestor. Todo mundo sabe disso. Poderiam ser citados muitos outros casos menos ou mais expressivos, mas sintomaticamente comprobatórios do que chamo de uso indevido da prática jornalística.
Como o Fórum da Cidadania?
Daniel Lima -- O Fórum da Cidadania tem Alexandre Polesi e Wilson Ambrósio como principais mentores e coveiros. Todos caímos nesse conto cujo objetivo implícito era fazer decolar algumas candidaturas de amigos dos diretores do Diário do Grande ABC, contra a vontade dos Dottos, mais preocupados com a sustentação econômica da empresa. Tanto Alexandre quanto Ambrósio deram com os burros n’água porque o Fórum jamais teve enraizamento popular. Seus candidatos quebraram a cara, a politicagem tomou conta do organismo e a morte anunciada por mim acabou se concretizando. Não havia como o Fórum sobreviver em meio à hipocrisia e a interesses de hegemonia de um novo grupo político com vícios apenas renovados em relação aos que eram combatidos.
O senhor não participa da diretoria ou conselho de entidades esportivas, sociais, culturais e econômicas?
Daniel Lima -- Quem exerce função jornalística precisa ter consciência de que a participação direta inibe ou acomoda os demais. É até provável que tanto Fausto quanto Alexandre Polesi quisessem dar sua colaboração, mas escolheram o caminho errado. Jornalista tem de escrever e de influenciar pela responsabilidade social inerente à atividade. Quando toma partido como membro decisório, cai na armadilha da sedução e do anestesiamento crítico. Há os aproveitadores de sempre que se cristalizam em torno da mídia e dali não arredam pé, mesmo que não façam nada pela comunidade.
Que nota daria ao produto Diário do Grande ABC?
Daniel Lima -- Iria assumir um time de redação que não alcança mais que nota dois numa escala de zero a 10. Sou muito crítico do jornalismo impresso diário. Tanto que para o Estadão não passaria de nota cinco. A Folha de S. Paulo é um pouco melhor, merece nota seis. O melhor jornal do País, em qualidade, é o Valor Econômico, que merece nota oito.
Dá para explicar, sucintamente, a diferença entre esses veículos?
Daniel Lima -- A redação do Diário do Grande ABC que está aí foi montada com o que há de mais pernicioso à funcionalidade, ou seja, a estatocracia funcional, em que valem mais os meios do que os resultados finais. Há muita gente no meio de campo e poucos fazem gol. O Estadão ainda peca pelo conservadorismo, pelas abordagens óbvias. A Folha tem seus viéses, quer ser mais realista que o rei, mas é inovadora, provocativa. Já o Valor Econômico é uniforme, estável, tem uma cara definida, vai fundo nas questões. Também leio diariamente a Gazeta Mercantil, que merece nota cinco porque tem um caudal de informações e muitos profissionais especializados em setores vitais da economia. Diferentemente, portanto, do Diário do Grande ABC, a Gazeta Mercantil conseguiu salvar-se como produto em meio ao tiroteio de complicações societárias e financeiras.
Que nota daria à revista LIVRE MERCADO?
Daniel Lima -- Considerando-se as circunstâncias e os valores pagos aos profissionais de redação, levando-se em conta a coragem de apontar erros, registrando-se a atenção com que seus profissionais vislumbram os acontecimentos, se desse menos que nota oito estaria cometendo um sacrilégio. Nossa equipe de jornalistas custa muito menos do que a soma de dois profissionais de jornais de porte médio como o Diário do Grande ABC.
O senhor não está preocupado com eventual uso do Planejamento Estratégico Editorial que entregou aos dirigentes do Diário?
Daniel Lima -- Pelo contrário: seria ótimo se aplicassem pelo menos alguma coisa do que deixei impresso. Mas, francamente, apenas a receita não garante um bom prato. É preciso qualificação intangível para entender os ingredientes e aplicá-los corretamente. Jornalismo não se pratica com fórmulas feitas. É preciso ter paixão, alma, olhar os interlocutores nos olhos, vestir a camisa dos humildes, enfrentar os poderosos.
Por que a família Dotto escolheu o senhor para a direção de redação do Diário?
Daniel Lima -- O ramal familiar de Maury Dotto e Evenson Dotto não especificou a escolha, mas eles conhecem meu trabalho e de minha equipe. Sabem da minha história de 15 anos como repórter e editor do Diário do Grande ABC. Já da família de Keynes e Keller Dotto, filhos de Edson Danilo Dotto, que durante muito tempo foi presidente e condutor do grupo, recebi a seguinte mensagem num almoço: você vai ser o continuador da obra do meu pai. Até arrepiei quando Keller Dotto me disse isso, porque tenho pela memória de Edson Dotto o maior carinho. Diria que aquela frase adiou a decisão de recusar o cargo porque me sentia quase obrigado a não frustrar a expectativa da família Edson Dotto.
Quando finalmente aceitou o convite para o comando do jornal e anunciou a posse que se daria na sexta-feira, que impressões tinha do que enfrentaria?
Daniel Lima -- Estava convicto de que a missão seria árdua, que me exigiria muito trabalho e inspiração. Por isso jamais aceitaria censura dialeticamente tratada como fiscalização. O Diário do futuro não pode ter relação direta com o Diário do passado e do presente. A ruptura editorial precisa ser emblemática porque os tempos são outros, as exigências são outras, o capital social precisa ser instalado.
A que se deveria a recusa da família Polesi à sua contratação? Que tipo de interesses os acionistas procurariam defender com a censura à equipe que o senhor comandaria?
Daniel Lima -- Os Polesis foram duramente criticados por mim especialmente no livro Meias Verdades -- Como Usar a Mídia Para Vender Ilusão, no qual muitos dos casos relatados constam do reinado de Fausto e Alexandre à frente do jornal. Além disso existem questões freudianas, de não aceitarem que um ex-empregado de repente seja levado ao comando da redação. Mas, principalmente, porque fui indicado por seus oponentes, os Dottos.
Que posição a família Dotto tomou diante do impasse que se instalou logo após sua recusa? Qual a reação de ambos os grupos de acionistas?
Daniel Lima -- As informações de que disponho giraram no sentido de que os Dottos ficaram irritados, porque me queriam lá de qualquer modo. Sentiram-se traídos, mas depois entenderam que também estava preocupado em preservar a companhia. Quanto aos Polesis, francamente não sei. Talvez eles tenham comemorado. Os censores getulistas e do regime militar também festejavam as páginas que subtraíam dos leitores.
Como se daria a fiscalização dos acionistas da família Polesi ao trabalho de redação? Que riscos a boa informação correria? Que argumentos a favor da medida sustentavam os acionistas?
Daniel Lima -- Eles ficariam confinados numa sala do sexto andar, para onde deveriam ser enviadas as matérias e ali promoveriam supostas alterações. Como eu não adotaria as mudanças, é fácil concluir o que poderia acontecer. Eles argumentaram em favor da censura, que preferiram chamar de fiscalização, que o estatuto lhes confere essa prerrogativa. Trata-se de malabarismo semântico, típico dos ditadores, porque a fiscalização à qual se refere o estatuto se restringe aos setores administrativo e financeiro. O risco inerente à tentativa de censurar o material seria proporcional aos viéses dos Polesis.
Quais rivalidades ou interesses se entrecruzam no relacionamento dos acionistas do Diário do Grande ABC?
Daniel Lima -- Fala-se de tudo sobre o assunto. Desde grupos políticos poderosos por trás de cada família até o simples desejo de vingança. Em nenhum momento me preocupei com isso porque acho que há muita fantasia nesse carnaval de informações.
A redação do jornal está desgovernada. Essa é uma cadeira pretendida por vários profissionais de jornalismo. Que tipo de relações envolvem a redação e seus acionistas que podem atrapalhar o desenvolvimento do trabalho de um diretor que se senta àquela cadeira?
Daniel Lima -- Os Polesis mantêm o controle da redação entre outras razões porque colocaram ali a maioria dos profissionais e afirmam, através de seus porta-vozes, que vão ganhar a disputa jurídica. Os Dottos, especialmente da família de Maury, um dos fundadores, pensam que contam com suporte da redação, mas não conseguem assimilar as filigranas do setor, o que é natural, porque são profissionais do setor comercial. A tentativa de censurar meu trabalho e da equipe é prova disso: eles sabem que eu não permitiria que seus tentáculos continuassem ativos.
Qual é o diretor de redação dos sonhos do grupo?
Daniel Lima -- Dos Dottos, agora, francamente não sei. Dos Polesis, qualquer um que lhes seja dependente de interesses específicos.
Com o atual domínio instalado no Diário do Grande ABC, como o senhor enxerga o futuro do jornal sob dois aspectos: primeiro, com relação à qualidade do serviço prestado aos leitores; segundo como produto editorial que precisa ser comercialmente sustentável, ou seja, sob o ponto de vista empresarial?
Daniel Lima -- Como produto informativo, o Diário de hoje é o mesmo de outros tempos, porque sempre tiveram o controle dos Polesis. O que mudou foi a maquiagem. Hoje o produto está escancaradamente nu, desprotegido. Antes havia uma embalagem caprichada. As informações foram intencionalmente instrumentalizadas. Vendeu-se um Grande ABC unido institucionalmente, forte economicamente, regenerador socialmente. Nossa revista cansou de contrapor-se a isso, daí, inclusive, comemos o pão que o diabo amassou. É evidente que tudo isso tem reflexos empresariais. É difícil manter um bom produto no mercado -- e a TV Globo é prova disso, com dívidas astronômicas apesar de toda a qualidade.
Quem sofre mais com isso?
Daniel Lima -- Em termos societários sem dúvida os Dottos, porque de uns tempos para cá, quando passou a ser cada vez mais importante a qualidade jornalística para sensibilizar leitores e anunciantes, eles acabaram sentindo na pele as fragilidades editoriais. O Diário sempre se notabilizou como produto comercialmente forte e complementarmente editorial. Quando apertou o cerco de perdas econômicas da região por causa da desindustrialização, e o Diário precisou ser editorialmente forte para robustecer o departamento comercial, se viu encalacrado.
Como fica o relacionamento da Editora Livre Mercado com seu acionista majoritário depois dos últimos eventos?
Daniel Lima -- Vivemos um processo de expectativa, mas o bom senso dos Dottos, em contradição ao inconformismo dos Polesis, acabará prevalecendo.
Quais seus planos de jornalista empreendedor?
Daniel Lima -- Vamos esperar os acontecimentos. Vivo de missões. Estou muito feliz na Editora Livre Mercado.
Que interesses ou gana por poder envolvem o comando empresarial de um jornal? Há espaço para a dignidade no jornalismo?
Daniel Lima -- Informação qualificada é poder, informação deformada é poder também. Há quem tema jornalista bem-informado e ético da mesma forma que se teme jornalista mal-informado e antiético. Há sempre espaço para a dignidade. Os leitores éticos e não-éticos que tratem de fazer a escolha.
Acredita que os acionistas do Diário do Grande ABC o colocaram propositalmente numa grande cilada, para utilizá-lo como escudo humano em uma estratégia de afrontamento e desgaste dos Polesis, ou simplesmente ignoraram as armadilhas da redação entregue ao grupo rival?
Daniel Lima -- Os Dottos agiram com a mais elementar boa-fé ao me contratarem, porque pensam e querem a implantação de uma linha editorial jamais aplicada no jornal.
Há alguma possibilidade de voltar atrás em sua decisão?
Daniel Lima -- A perdurarem os problemas que me levaram à recusa, sobremodo o autoritarismo da família Polesi, não existe a menor possibilidade de ocupar a direção do Diário do Grande ABC.
Se o Planejamento Estratégico Editorial que o senhor apresentou ao Diário tivesse sido adotado há mais tempo, teria contribuído para reverter a apatia da comunidade regional e ajudaria a entender nosso empobrecimento econômico?
Daniel Lima -- Mesmo sem a capacidade de mobilização do jornalismo impresso diário, mas com a sustentação comprovada da reflexão, nossa equipe já apresenta esses resultados na Editora Livre Mercado. Há setores comunitários mais sensíveis à nossa pregação, ou seja, têm consciência do momento decisivo que vivemos como região duramente atingida pela globalização, principalmente porque nossa riqueza industrial sobrerrodas foi destruída em 39% nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso.
O senhor é visto como um crítico da profissão, principalmente por não aceitar procedimentos que colocam o jornalista no simples papel de repassador do que as fontes desejam falar. A expectativa de sua ida ao Diário era de que um novo conceito de jornalismo pudesse ser disseminado, principalmente aos mais jovens. O que o senhor teria a dizer a esses profissionais que estão em começo de carreira e que por razões diversas espelham-se em referências equivocadas?
Daniel Lima -- Sugeriria aos editores do Diário que lessem o livro Meias Verdades, no qual faço uma incursão prática sobre as inconformidades da produção jornalística. E que os novatos também se debrucem sobre a obra, porque reuno casos específicos de espancamentos editoriais. Aos iniciantes na profissão recomendo ainda que sejam exaustivamente exigentes com as chefias ineficientes, porque um bom começo é estruturalmente decisivo para uma carreira vitoriosa.
Quais os principais problemas que o jornal apresenta ao não manter posição crítica sobre o impasse da economia regional?
Daniel Lima -- O Diário dos últimos 15 anos foi um veículo esquizofrênico, que lambeu as tetas de uma economia supostamente inviolável enquanto desfilava em suas páginas manchetes de uma realidade social em franca decomposição. Em resumo, foi vítima preferencial de fontes de informação que sequestraram o editorial e de realidades práticas que o abasteceram na tentativa de conquistar o leitor pelo viés da desgraça. Uma mula sem cabeça. Mas é uma marca fortíssima, resiste bravamente a tudo e a todos e deve merecer a mobilização de quem carrega o Grande ABC no peito. Isso não pode, entretanto, significar submissão. Tanto é verdade que o Planejamento Estratégico que preparei contempla um Conselho Editorial formado por especialistas de diversas atividades na região. Trata-se de um mecanismo de proteção contra malversadores da informação que gravitam em torno do jornal e eventualmente até dentro do jornal, porque todos nós podemos incorrer em abusos. Nada é mais produtivo do que trabalho em equipe. Menos com censores piratas de plantão, é claro. Os mesmos piratas que tentaram, num gesto de desespero, vincular minha nomeação a vetores político-eleitorais. Nada mais estúpido.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira