Caso Celso Daniel

Mais uma mensagem ao
Agente 86, senador Suplicy

DANIEL LIMA - 17/11/2005

Desculpe, senador Eduardo Suplicy, pela inconfidência. É que escapou, num descuido quase que voluntário, desses que dão comichão de tornar o texto menos formal, chamá-lo de Agente 86. O senhor certamente sabe de que se trata essa antiga e quase proscrita série do detetive Agente 86, cujo ator morreu ainda recentemente. Aliás, morreu um pouco antes de um palhaço genuinamente nacional e muito mais divertido, o nosso Ronald Golias. 


Sabe, senador, a atuação do senhor no último final de semana prolongado foi digna mesmo de um agente trapalhão. Talvez o senhor esteja buscando performance de um 007, mesmo que envelhecido, mesmo que fora de forma física e plástica, mas, convenhamos, saia dessa. Pior que o senhor, caro senador da República, com todo o respeito que o senhor merece, só os jornalistas que correram atrás de suas "investigações" nos Três Tombos. 


Devo confessar que o senhor e a sua assessoria são de primeira linha. Sabem exatamente como ocupar espaços na mídia. Os senhores pautam essa descuidada mídia que compra gato por lebre sem pestanejar. Ainda mais em final de semana prolongado, quando as redações de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão estão às moscas, com esquemas de folga pré-concebidos, chefias gozando delícias do campo e da praia. Pode cair o mundo que são os contingentes de sempre dos finais de semana prolongados que vão tratar das notícias. A perspectiva de que nada de importante acontecerá é o padrão dos chefes de redação. Se cair o mundo, que se danem os leitores, os ouvintes e os telespectadores. 


O senhor pegou muito bem essa onda, caro senador da República. Sua assessoria deve estar bem informada sobre os buracos da mídia. Foi aos Três Tombos, fez o papel do Agente 86 e todos caíram feito patos na lagoa. Essa mídia é tão descuidada, senador! O senhor e sua assessoria de imprensa sabem disso. 


Cuidado senador


Não pense o senhor que esteja este jornalista usando de sarcasmo para desclassificar sua pífia atuação de investigador de polícia. Nada disso. O que pretendo, no fundo, no fundo, é sugerir certos cuidados ao senhor. Sua imagem, que é uma maravilha em honradez e ética, pode começar a sofrer avarias. 


Afinal, é impossível que a mídia seja o tempo todo tão sofrível, tão acrítica, tão facilmente usada, e o senhor saia sempre como cavaleiro da esperança que retirará o caso Celso Daniel das penumbras de dúvidas criadas, como o senhor sabe, por razões que vão muito além dos Três Tombos, invadem palácios e outros endereços. 


Sabe, caro senador Eduardo Suplicy, o senhor acabou erigindo uma fortaleza à argumentação dos advogados de defesa de Sérgio Gomes da Silva com a abordagem a duas novas testemunhas que teriam visto fragmentos do arrebatamento do prefeito Celso Daniel? Verdade! O senhor, ao contrário do que divulgou a maioria da mídia deliberadamente contrária à apuração da Polícia Civil, do DEIC e da Polícia Federal de que se trata de crime comum, o senhor, como estava dizendo, caro senador, acabou por ajudar no reforço da tese de crime não-político, embora fizesse tudo, mesmo que numa dissimulação manjada, para oferecer a cabeça de Sérgio Gomes ao banqueteamento geral e irrestrito.


Vamos por parte para revelar o que foi traduzido de forma incorreta pela mídia, com seu preciosíssimo aval de Agente 86?


A dona de casa que relatou o sequestro e que avocou o testemunho de uma irmã que passava férias em seu apartamento disse a verdade verdadeira quando afirmou que apenas Celso Daniel foi retirado do carro e que só depois percebeu que Sérgio Gomes estava ao lado da Pajero. Pois foi exatamente esse o enredo documentado em depoimentos à Polícia Civil. Sérgio Gomes estava às voltas com a tentativa de fazer o carro andar (versão que o delegado do DHPP, Armando de Oliveira, sustenta ser absolutamente lógica) que mal percebeu que Celso Daniel, no banco de passageiro, abriu a porta (conforme consta de depoimentos de um dos sequestradores) para pedir calma aos marginais. Foi então (e os olhos da moradora acompanharam tudo a distância) que os sequestradores levaram o prefeito embora. 


É normal que a irmã da moradora tenha estranhado que Sérgio Gomes tenha ficado para trás, que os marginais não o tenham levado também. Aliás, outras testemunhas do caso, ouvidas pela Polícia, relatam situação semelhante. Com tanta audiência, já que o movimento nos Três Tombos não é de cemitério, seria mais que imprevidência, seria loucura mesmo, os sequestradores esticarem a operação e capturarem o motorista que, segundo consta de relatos à Polícia Civil, presumivelmente não passaria mesmo disso, de simples motorista. A distância que separava a moradora-testemunha do arrebatamento de Celso Daniel não permite, evidentemente, qualquer juízo de valor sobre a expressão facial de Sérgio Gomes. 


Inocência explícita


No mínimo, no mínimo, a testemunha que a Imprensa induziu à criminalização de Sérgio Gomes, de fato o inocentou. Basta ler o depoimento de uma testemunha considerada chave do Ministério Público que, num relato contestadíssimo pela Polícia Civil, disse ter observado (pelo retrovisor do veículo que dirigia) Sérgio Gomes da Silva em ação de colaboração com os sequestradores. 


Ora, bolas: se a moradora-testemunha, do alto de seu apartamento, observou um Sérgio Gomes ao celular, como ele, ao mesmo tempo do desenvolvimento da ação de captura de Celso Daniel, estaria dando suporte aos sequestradores? Das duas uma, caríssimo senador: ou a moradora-testemunha que lhe relatou os lances do sequestro está mentindo, ou é a testemunha do Ministério Público que viu demais. 


A outra testemunha que o caro senador da República levou às páginas dos jornais e ao noticiário das redes de rádio e TV afirma que saiu à janela e observou, pós-sequestro, que Sérgio Gomes estava ao telefone celular e que parecia, vejam só, parecia, estar tranquilo. Há relatos testemunhais no inquérito policial que refutam frontalmente a suposta tranquilidade de Sérgio Gomes. Mas isso não é o mais importante. 


O que vale mesmo é a fidelidade do fato da segunda testemunha quando relata Sérgio Gomes ao celular. O acompanhante de Celso Daniel utilizou o aparelho diversas vezes após o sequestro. Primeiro para chamar a polícia. Depois, para se comunicar com o próprio sequestrado, deixando-lhe mensagem na caixa postal. Depois, ligou para os amigos. A quebra do sigilo telefônico de Sérgio Gomes pela Polícia Civil comprova essas iniciativas. 


Não pretendia escrever hoje sobre esses novos lances do caso Celso Daniel, mas não resisti a telefonemas de leitores fiéis desta newsletter que, encarecidamente, pedem esclarecimentos. 


Não me furtaria a escrever porque estou cada vez mais boquiaberto com a incapacidade da mídia em recepcionar as informações e, antes de torná-las matéria-prima de novos bombardeios, confrontar os dados com as peças policiais. Quem quer que tenha acesso aos inquéritos saberá que tanto uma nova testemunha quanto outra reproduzem respectivos olhares e sensações que, entretanto, não podem estar descolados de um conjunto sistêmico de outros testemunhos e informações. 


A mídia ainda não se deu conta ou finge que não se deu conta de que o caso Celso Daniel na esfera criminal é uma coisa e na esfera administrativa é outra. Por querer juntar alhos com bugalhos, comete sucessão de incorreções que transformam o senador Eduardo Suplicy em exemplar quase irretocável de Agente 86. Sim, porque não tem sentido o caro senador sair das lides congressuais para as quais foi eleito e, num improviso populista e espetacularizador, travestir-se de detetive. 


Mas, mesmo admitindo que o fizesse, por surto de justiça, que, pelo menos, soubesse ler as mensagens dos testemunhos que, diferentemente do próprio senador e dos repórteres que lhe deram guarida, não colocam mais pedras sobre o caixão do morto-vivo Sérgio Gomes. Pelo contrário: aliviam consideravelmente o impacto de acusações eivadas de subjetividades próprias de depoimentos tópicos. 


Caro senador Eduardo Suplicy: não vou escrever neste artigo nada sobre o fantasma do pastor evangélico que anda assombrando sua alma, porque, como o senhor sabe e até prova em contrário, tudo não passa de brincadeira de mau gosto de quem pretende expô-lo ao ridículo. 


Já sobre o testemunho dos sequestradores que, durante todo o dia e noite de segunda-feira, reafirmaram o enredo de crime comum, nada mais a declarar, caro senador. Se os próprios bandidos decidem manter a verdade e, com isso, desprezam vantagens de redução da pena a ser cumprida, o que se pode fazer para reiterar que aquela noite de 18 de janeiro de 2002 foi um acidente de percurso que deveria atingir, como se sabe, o comerciante do Ceagesp? Por falar nisso, caro senador, me liga que lhe passo o telefone celular daquele empresário, cuja foto está na edição de novembro da revista Livre Mercado. 


Um abraço e cuidado com as más línguas. Agente 86 é divertidíssimo -- mas desabonador.


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