Transportando a sessão de ontem da CPI dos Bingos para a linguagem futebolística, uma de minhas paixões, diria que o empresário Ronan Maria Pinto venceu sem dificuldades o confronto com os senadores que pretendem vincular supostos desvios administrativos de Celso Daniel ao financiamento irregular de campanha eleitoral, que o ex-secretário municipal Klinger Sousa deu uma goleada e que o ex-empresário Sérgio Gomes da Silva simplesmente foi triturado.
Não perdi praticamente nada da transmissão, me virando entre a TV e o rádio para acompanhar os debates. Fui dormir por volta de uma hora da manhã de hoje. Confesso que estava deprimido. E que rezei, rezei muito, para não precisar lidar profissionalmente com o ambiente político que aquela CPI exala. Uma coleção de impropriedades que me causa náusea.
Há sarcasmo demais, ignorância demais, especulações demais, sofismas demais. Quero acreditar que o mundo pode e deve ser diferente. Viver é algo esplendorosamente magnífico para ser consumido diariamente num ambiente daqueles, onde prevalecem o individualismo arrogante, o partidarismo fragmentador, o gestual programado, a entonação de voz teatral -- enfim, tudo diferente do que aprendi com meus pais e meus sete irmãos, com os amigos de infância.
Que horror ter de conviver naquele ambiente. Há os que jamais viveriam sem aquilo, como se pode ver pela frequência com que são eleitos. São especialmente formatados para a hipocrisia. Que Deus tenha piedade de mim e não me permita, jamais, que precise ganhar meu pão de cada dia tendo a companhia de certos personagens congressuais. Há exceções, é claro, que só confirmam a regra de que o modus operandi local é de uma estratosfera completamente oposta do que aprendemos em sala de aula. Democracia é indispensável, mas não necessariamente precisa de tantas malversações comportamentais.
Três jogos diferentes
Mas, vamos ao que mais interessa, sobre essa avaliação futebolística da CPI dos Bingos. Ronan Maria Pinto é um homem suficientemente versátil e bem orientado por seus advogados para adaptar-se sem traumas ao ambiente parlamentar. Parece ser fruto do mesmo barro.
Klinger Sousa tem apetrechamento técnico-intelectual para reduzir a pó todas as inquirições dos parlamentares. Não estou estabelecendo juízo de valor sobre o depoimento de Klinger Sousa, o mais brilhante discípulo de Celso Daniel. Limito-me simplesmente ao resultado do teatro de operações daquele encontro. E nesse ponto, com fluência verbal, organização argumentativa, tranquilidade na postura física, serenidade, Klinger Sousa mostrou à maioria dos senadores quanto seria diferente este País (ainda sob o ponto de vista de aparência e conteúdo sem juízo de valor) se a maioria chegasse às nossas principais instâncias legislativas com suas qualificações.
Klinger deu uma sova em regra em todos eles. Impôs um turbilhão de informações tecnicamente imbatíveis (agora sim estabeleço juízo de valor) que levou os adversários (sim, a maioria dos senadores é oposicionista) ao nocaute. Klinger é um espetáculo para quem tem um mínimo de inteligência.
Azar de Sérgio Gomes da Silva, a quem os senadores dirigiram toda a frustração provocada pelo desempenho de Klinger Sousa e provavelmente também a inquietude por terem sido literalmente enrolados no depoimento de Ronan Maria Pinto. Com Sérgio Gomes o que se viu foi um massacre. Ao associarem subliminarmente a estupefação do depoente diante de provas documentais de movimentação bancária que podem sugerir o esquema de propina e o assassinato de Celso Daniel, os senadores da CPI dos Bingos tornaram a atuação de Sérgio Gomes arremedo de defesa. Ainda mais que não faltaram senadores, como Magno Malta, um craque na arte de provocação e amedrontamento, a lhe prometer prisão caso "insistisse em mentir".
Administrativo e criminal
A dificuldade de desembaraçar-se dos cordéis dos indícios de esquema de propina (indícios, porque os documentos apresentados precisam ser analisados e os beneficiários dos recursos devidamente questionados, como mandam as regras de respeito às leis) impactaram de tal forma Sérgio Gomes que no terreno em que poderia caminhar sem dificuldades, o caso específico do sequestro do prefeito Celso Daniel, acabou se limitando a frases frouxas.
A impressão que resultou daquele massacre a que foi submetido Sérgio Gomes é que seus advogados estão tão confiantes e certos de que dispõem de elementos documentais e testemunhais para uma reviravolta no caso (afinal, Polícia Civil, DEIC e Polícia Federal garantem a ocasionalidade do crime) que simplesmente desdenharam os efeitos pirotécnicos da CPI dos Bingos.
Seja lá o que for que move os advogados de Sérgio Gomes, o fato é que ao final das inquirições da CPI dos Bingos, o que sobrou foi a impressão de que seu cliente fora atropelado por um caminhão de demagogia, sarcasmo, impetuosidade, partidarismo e desrespeito humano, sempre na avaliação do sequestro do prefeito, e de uma bem engendrada e cuidadosa estratégia de criminalização aparentemente insofismável na área administrativa.
O embate desproporcional chegou ao ponto de um senador condenar Sérgio Gomes por entender que ele não se mostrou emocionado durante o depoimento. Mais: sugeriu que Sérgio Gomes, supostamente indutor do sequestro, deveria ter disfarçado a operação combinando um tiro com os sequestradores.
Sim, Sérgio Gomes, segundo o senador, deveria ter programado um tiro cuidadosamente em região não vital, para dar veracidade à operação. Uma barbaridade que, estivesse Sérgio Gomes em condições psicológicas minimamente razoáveis, caberia uma resposta tão simples como demolidora: ao contrário de outros pontos do sequestro, caso, por exemplo de ter acionado a sirene da Pajero assim que foi abalroado, de modo a chamar a atenção popular, um tiro no próprio corpo faria parte de uma encenação da qual ele jamais participaria.
Vou mais longe: no caso específico do assassinato de Celso Daniel, as perguntas e as provocações dos senadores eram tão previsíveis quanto neutralizáveis. Bastaria que Sérgio Gomes tivesse tido o preparo psicológico adequado, não uma correria para atender ao chamamento dos senadores, para que, incisivamente, arrebentasse uma a uma cada ponta da espada de condenação que saltou da bainha dos inquiridores que enxergam sim o governo Lula da Silva, não ele, no palco da CPI.
Enquanto Ronan Maria Pinto deve estar comemorando uma vitória com razoável margem de gols e Klinger Sousa enfiou uma goleada senadores adentro, Sérgio Gomes foi colhido no contrapé no campo administrativo e, com isso, neutralizado na área do crime cometido por bandidos pés-de-chinelo da periferia de Diadema.
Para variar, a cobertura dos jornais de hoje sobre o caso Celso Daniel foi burocrática, imprecisa, amorfa. Depois os donos de jornais não sabem porque cada vez mais a Internet toma-lhe público. Fast-food por fast-food, nada melhor do que fast-food gratuito.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP