Caso Celso Daniel

Destruíram
Sérgio Gomes

DANIEL LIMA - 14/09/2007

O delegado federal Armando Rodrigues Coelho Neto é contundente: houve casamento entre o Ministério Público e a grande Imprensa na condenação de Sérgio Gomes da Silva, o homem que acompanhava o então prefeito de Santo André, Celso Daniel, na noite do sequestro seguido de morte, em janeiro de 2002. Armando Coelho vai mais longe na análise exclusiva para LivreMercado, única publicação nacional que segue cobrindo o caso que abalou a política nacional 10 meses antes de Lula da Silva eleger-se presidente da República: pelas circunstâncias do crime, Sérgio Gomes só seria inocente se houvesse morrido com Celso Daniel ou se tivesse sofrido ferimentos mais substanciais. "Somente tendo morrido Sérgio Gomes teria sido tratado como inocente" -- enfatiza. 

 

Armando Coelho foi chefe da Interpol em São Paulo. Também chefiou a Delegacia de Controle de Segurança Privada. Atuou como presidente do Sindicato dos Delegados Federais do Estado de São Paulo e da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal em dois mandatos seguidos. Formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Armando Coelho também concluiu o curso de jornalismo na Universidade de São Paulo e especializou-se em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. É membro da Comissão de Convergência de Mídias da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de São Paulo. 

 

Num recente artigo, publicado no Conjur (Consultor Jurídico), o senhor fez sérias críticas ao Ministério Público. Não teme ser acusado de corporativista?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Não, porque não sou. Afastadas as questões de Direitos Humanos, cidadania, liberdade de Imprensa e liberdade de expressão, o novo papel do Ministério Público é o que há de mais importante dentro da atual Constituição. Mas fico perplexo quando alguns membros do MP dizem que, se até cães farejadores investigam, eles têm o direito de investigar. O que está em jogo não são comparações chulas e rasteiras, mas sim preceitos constitucionais, o saber quem é quem, e quem faz o quê -- dentro da lei. 


Se eles tivessem certeza de que poderiam mesmo fazer investigações, seus representantes de classe não perderiam tanto tempo no Congresso Nacional, tentando aprovar leis que lhes garantissem investigar. Na medida em que sabiam que não podiam e o faziam, no mínimo foram atos de pouca responsabilidade. 


O ministro Carlos Velloso já disse não caber ao membro do Ministério Público realizar diretamente investigações, mas requisitá-las à autoridade policial. O Supremo Tribunal Federal, pelo menos em uma citação específica, já proclamou que o MP não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos nem competência para produzir inquérito policial. 


Após anos de arbitrariedades, a nova Constituição tem viés cidadão e quer garantir o tripé da promoção da Justiça em condições de igualdade entre os atuantes. Essa ousadia do MP revela, até certo ponto, arrogância. Uma instituição tão nobre está sendo responsável pela maior balbúrdia no ordenamento jurídico. Por conta da atuação nada prudente de alguns membros do MP, muitos conflitos entre polícia e MP estão sendo gerados e alimentados. Por conta dessa insensatez, muitas investigações feitas dentro da ilegalidade correm o risco de ir por terra. Além disso, trata-se de postura que confunde a população, que não consegue distinguir, entender quem é quem e o que faz o Ministério Público, seja Estadual ou Federal. 

 

Depois de ler todo o material sobre o caso Celso Daniel, qual é a análise que o senhor faz do trabalho do Ministério Público nesse caso?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Estamos vivendo a cultura do avesso do avesso, que começa nas supostas teses acadêmicas. Parte-se de uma afirmação e sai-se em busca de fundamentos supostamente científicos para dar suporte à conclusão. Ocorre um crime, elege-se um culpado e sai-se à procura de fatos que dêem sustentação acusatória, desprezando-se até evidências. Esse mesmo caminho trilham alguns veículos de Imprensa que reverberam suspeitas levantadas pela polícia e ainda especulam em cima delas. 


No caso Celso Daniel houve um casamento entre o Ministério Público e a grande Imprensa. Desprezaram o resultado de duas instituições com tradição de investigar crimes: as polícias Federal e Civil. Acreditaram e repercutiram o trabalho do Ministério Público, desprezando-se inclusive a exploração política do caso. A Imprensa tratava Sérgio Gomes por "Sombra", um apelido que só era usado pelos inimigos políticos de Celso Daniel. Isso dá o tom político e de quem interpretava fatos para a Imprensa.  

 

Qual sua visão sobre Sérgio Gomes da Silva?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- É de se reconhecer que as circunstâncias do crime, numa análise primária, não favorecem Sérgio Gomes. Numa visão primária, ele só seria inocente se houvesse morrido junto ou se tivesse sofrido ferimentos mais substanciais. Essa é a conclusão singular e é o que a Imprensa conseguiu incutir no imaginário popular. Isso, porém, é uma visão primária e no Direito trabalha-se com provas. 


Mesmo provas indiciárias, as provas circunstanciais, as testemunhais, necessitam de algum suporte material para lhes conferir respaldo. Vejo em tudo muita conjectura, de forma tal que volto a repetir: somente tendo morrido junto Sérgio Gomes seria tratado como inocente. Como a versão que tem prosperado é contrária a ele, diria ser ele hoje um homem destruído. Não o conheço nem tenho procuração para defendê-lo. Lamentavelmente, a história da Imprensa brasileira vem se firmando sob a tônica Escola Base. 


Até onde sei, os trabalhos feitos pelas polícias Civil e Federal não o apontam como culpado. Cerca de 1,5 mil páginas do inquérito da Civil foram ignoradas. Ora, em sendo inocente, e após todo esse bombardeio pela Imprensa, depois de quase 10 meses na cadeia, não se pode ter outra conclusão. Moralmente, socialmente, materialmente, Sérgio Gomes é um homem destruído.

 

Como o senhor analisa a proibição da Secretaria de Segurança Pública à manifestação da Polícia Civil, durante três anos, enquanto o Ministério Público contou com todo o aparato da mídia?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Entendo que a Polícia Civil poderia, em tese, falar sobre o trabalho, até pelos desdobramentos que o caso teve. Falar sobre os depoimentos colhidos por eles, as conclusões parciais. Observo que a versão corrente, propalada pelo Ministério Público, fere os brios da Polícia Civil, põe em xeque a credibilidade da polícia do Governo do Estado de São Paulo. 


Isso também agride a própria Polícia Federal, que teve pelo menos dois de seus membros muito próximos das investigações. Esse silêncio da Secretaria de Segurança Pública é inadmissível. Acho que seus representantes deveriam liberar todas as informações disponíveis, trabalhar, quem sabe, para a quebra de sigilo e com isso fugir de especulações. É inadmissível que o trabalho de duas instituições de peso, com tradição de respeito, seja enxovalhado. 


A conclusão é que as duas polícias ou erraram por incompetência ou por má-fé. Até porque o assassinato coincidiu com o calendário político. Recentemente escrevi um texto no qual discuto ato jurídico, fato político e fato jornalístico. Às vezes essas três figuras se confundem e muitas vezes as manobras políticas escapam da visão da sociedade. Ao meu ver, não que necessariamente essa tenha sido essa a intenção, a versão veiculada pelo Ministério Público atendia melhor os interesses da elite política que, coincidentemente, é a mesma elite econômica e esta, por sua vez, através de anúncios, mantém a grande Imprensa. Mas a conjugação desses fatores não pode dar suporte técnico-jurídico a uma condenação. Não houve espaço para contrapontos. 

 

O delegado federal José Pinto de Luna disse com todas as letras que o assassinato do prefeito Celso Daniel e as supostas propinas jamais se cruzaram. O senhor avaliza a investigação desse profissional?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Conheço o delegado federal José Pinto de Luna. Ele fez trabalho fantástico na apuração de um assassinato, há quase 10 anos, do também delegado federal Alciony Serafim de Santana, conhecido como "corregedor". O culpado era outro delegado e ele foi extremamente imparcial. Foi uma investigação cinematográfica, verdadeiro garimpo policial. Eu o conheço também do esclarecimento do sequestro do Wellington Camargo -- irmão dos integrantes da dupla Zezé Di Camargo e Luciano. 


Fez ainda excelente trabalho na caça ao ex-juiz Nicolau dos Santos Neto e participou do esclarecimento do assassinato de um juiz no Mato Grosso. José Pinto de Luna tem um currículo respeitável e confiante. Pois bem, na visão dele, trata-se de crime comum e não haveria indicadores do envolvimento de Sérgio Gomes.  

 

Já se passaram mais de cinco anos desde o crime e até agora, apesar de todas as promessas à mídia, os promotores criminais não apresentaram o nome ou os nomes de outros supostos mandantes. É possível entender essa situação como normal?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- É normal que quem não tem respaldo legal para realizar uma tarefa cometa erros, abusos, atrasos. É normal que quem não tenha experiência nem tradição de investigar entre em becos sem saída, fique digladiando na busca de fatos que dêem sustentação a teses antecipadas. A dúvida permanecerá sempre, o que favorecerá a exploração política. Recentemente até a queda de um avião sofreu deplorável exploração política, em que clientes da Paco Rabanne, Nike e Givenchy foram às ruas em passeata. 

 

No enredo construído pelos promotores criminais, quais são os pontos que o senhor considera mais vulneráveis?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Não conheço os autos, mas através de fontes confiáveis tive informações preocupantes. Durante depoimento na CPI, policiais civis acabaram com a versão de que Sérgio Gomes teria aberto a porta da Pajero. Eles reportam que um dos acusados chegou a dizer que o próprio Celso Daniel abriu a porta, desceu do carro e ainda chegou a pedir calma. 


Aliás, os depoimentos dos policiais civis na CPI ocuparam pouco espaço na Imprensa e os poucos veículos que se ocuparam do assunto o fizeram sob a tônica de descrédito ou ironia. Acho que o MP se apegou a relatos vulneráveis. Falam de um tal Dionísio Severo, tido como chefe da quadrilha e que teria sido supostamente contratado por Sérgio Gomes para o crime. Primeiro ninguém sabe como se deu esse contrato. Escrito não foi. Se foi verbal e pessoal, também não temos notícia sequer de testemunhas dessa cogitada tratativa. 


A versão telefônica é frágil. Ao mesmo tempo em que afirma ter Sérgio Gomes telefonado para Dionísio Severo, a quebra do sigilo telefônico não prova isso. Aliás, nenhum dos dois utilizou telefone celular ou mesmo o aparelho de linha fixa do restaurante durante o tempo do jantar. Diante dessa evidência, resolveram cogitar sobre a possibilidade do uso de um aparelho não identificado. A versão oficial transformaria supostos mandantes e executores em patetas, em se tratando de um crime encomendado, sendo a vítima um político e o mandante um experiente segurança. 


Cogitam também que às vésperas do crime, no restaurante fino e sob os olhos dos presentes, Sérgio Gomes teria discutido com Celso Daniel. Trata-se de cena insólita: quem encomendou a morte do prefeito não estava nem aí com a possibilidade de vir a figurar como primeiro suspeito. Vejo nisso tudo, além dos desdobramentos políticos, uma questão de afirmação do Ministério Público na postura de querer investigar. E tudo isso prova desencontros lamentáveis. 


Quer um exemplo? Para a Polícia Civil, Dionísio Severo foi assassinado por causa de rivalidade entre facções criminosas. Ele seria contra a primazia do PCC (Primeiro Comando da Capital). As mortes ocorridas teriam sido em função disso e, portanto, não guardariam relação alguma com o caso Celso Daniel. Trata-se de versão não aceita pelo Ministério Público, que inclusive coloca sob suspeita a eficiência do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) no esclarecimento de homicídios, com o que não concordamos. 


O problema do DHPP está basicamente no volume de casos, mas naquilo em que conseguem se dedicar apresentam excelentes resultados. Acho que um caso de tamanha repercussão seria ponto de honra para eles. Aliás, diante da polêmica desencadeada pelo Ministério Público, quando pretende, ilegalmente, realizar investigações, o natural seria que os policiais encarregados dessem o melhor de si. 

 

Mas o Ministério Público insiste em estabelecer ligações entre os dois casos.

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Eu prefiro ficar com a versão de quem tem tradição em investigar. O delegado Armando de Oliveira tem mais de 20 anos de serviço, além de poder viver um dos melhores dias do DHPP, seja em recursos materiais ou humanos. As estatísticas revelam um dos melhores momentos daquela unidade. 


Não posso imaginar que riscaria sua biografia sem mais nem menos num caso de grande repercussão pública. Prefiro ficar com a versão baseada no trabalho do delegado Wagner Giudice, que tem se conduzido com grande profissionalismo na Divisão Anti-Sequestros do DEIC (Departamento de Investigações contra o Crime Organizado). Prefiro acolher a avaliação do delegado federal José Pinto de Luna. Eles descartam o crime político. 


O delegado Armando de Oliveira tem afirmado e fundamentado que o assassinato de Dionísio Severo foi briga de quadrilhas. Dionísio Severo era membro de uma facção criminosa minoritária, salvo engano, de nome CRBC (Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade). Essa facção fazia oposição ou concorrência ao PCC, não sei bem. O assassinato dele estaria ligado à briga entre esses dois grupos, e não ao caso Celso Daniel. Com ajuda de meliantes a ele ligados, Dionísio Severo conseguiu fugir, ficou um tempo em São Paulo, depois seguiu para o Sul, na sequência fugiu para o Nordeste, lá tomou parte num assalto a uma joalheria e acabou preso. Foi morto em São Paulo por um tal Cezinha, um dos membros influentes do PCC.          

 

Mostramos ao longo de matérias a inconsistência das investigações dos promotores criminais, colhidos por incongruências como, por exemplo, a disseminação de que Celso Daniel foi assassinado porque pretendia desbaratar o suposto esquema de propina e, mais tarde, como se uma coisa fosse uma coisa e a outra coisa fosse outra coisa, afirmaram que o prefeito guardava sacolas de dinheiro em seu apartamento. Dá para explicar?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Quem pretende desbaratar uma quadrilha envolvida num suposto esquema de propinas, desvio de dinheiro público, etc, é, em princípio, uma pessoa honesta. Aliás, é a imagem que a maioria da população tem. A multidão presente no enterro de Celso Daniel parece ser indicador disso; o povo acreditava ser ele uma pessoa honesta. Ora, é improvável que uma pessoa honesta guardasse sacolas de dinheiro em seu apartamento, conforme teria informado uma empregada doméstica, que teria visto três sacolas estufadas de dinheiro vivo envoltas em um lençol na área de serviço do apartamento de Celso Daniel. Seria no mínimo improvável que um dinheiro de origem espúria ficasse às escâncaras. 


Depois vem a outra incoerência, que é admitir que Celso Daniel combatia o tal esquema e que por isso teria sido assassinado. Ou era ou não era honesto. Se Celso Daniel participava do esquema das propinas, é um tanto improvável que iria organizar um dossiê que, mais cedo ou mais tarde, poderia servir para incriminá-lo, em especial sabendo que poderia ser ministro de um governo praticamente eleito. 

 

As relações entre o Ministério Público e a Imprensa estiveram muito estreitas durante a cobertura. O senhor concorda com essa impressão?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Sim. Mas, ao mesmo tempo, para dar sustentação ao enredo de que o tal esquema existia, acusar o indefeso morto de guardar dinheiro em casa parece fantasioso. A impressão que se teve do noticiário é que cada vez que o assunto ia ser coberto aparecia um repórter diferente, pois não se conseguia ligar o que se estava reportando ao que já fora divulgado antes. É patético! 


Confesso que não sou especialista em crimes de homicídio. Em toda minha história policial, só investiguei um caso, que foi o do índio Marçal de Souza, um silvícola que saudou o Papa João Paulo II, quando de sua primeira visita ao Brasil. Mas o exame dos fatos, da forma como tive acesso, me deixa perplexo.  

 

Qual sua avaliação sobre esses desencontros, o que pode ter acontecido?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- A meu ver, criou-se um círculo vicioso, onde a Imprensa alimentava o Ministério Público, este alimentava a Imprensa e os dois alimentavam o mistério que ambos criaram ou no qual se envolveram. E o pior, de forma vaga, insinuante, reticente, nebulosa. Você quer algo mais frágil do que um verbo no condicional para contextualizar ou relatar um fato? Celso Daniel guardaria dinheiro... fulano teria... seria... 


Outro dia, a revista Veja atribuiu ao Procurador da República, Luiz Francisco de Souza, um fato preocupante. Segundo a revista, ele soltava fatos para a Imprensa e depois, com a notícia em mãos, abria procedimento para investigar o que ele mesmo ajudara a veicular. É o que diz o periódico, não são palavras minhas. As relações do Ministério Público, no presente caso, têm sido perigosas. 


Por outro lado, a melhor forma de vender uma mentira é usar verdades. Existe consenso sobre a existência de suposto esquema de propina e isso é um fato. Celso Daniel foi assassinado e isto é outro fato. Estabelecer a ligação entre os dois fatos está no campo da especulação, da mesma forma como tentaram associar tudo ao esquema do tal mensalão. É preciso verificar a existência de fatos que são indissociáveis, mas se utiliza apenas a parte que interessa. Ou seja, voltamos ao início de nossa conversa: a tese começa pela conclusão e sai-se em busca da sustentação. 


Basta alguém dar uma declaração qualquer e o link estará pronto; basta pôr uma declaração na boca de alguém e estará pronto o lead. O resto é a repetição do que já foi publicado. Nesse contexto, a idéia que passa é que a Imprensa alimentava o Ministério Público e este a Imprensa e aqui voltamos ao caso noticiado pela Veja, do Luiz Francisco. Ao final, temos um festival de ilações que não sobrevivem nos autos, mas ganham substância como fato jornalístico e alimentam a guerra política. Cria-se um anticlímax que não sobrevive muito tempo no Judiciário, que sempre espera o momento mais frio para dar a decisão final. 

 

Não é estranho que o inquérito do assaltante e sequestrador Dionísio de Aquino Severo, peça-chave do crime segundo o Ministério Público na denúncia contra Sérgio Gomes da Silva, segue em segredo de Justiça embora já se saiba que seu assassinato não tenha qualquer relação com o caso Celso Daniel? 

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Nada disso irá sobreviver na fase final, mesmo levando em conta a possibilidade de um júri popular, que é sempre teatral e emocional. A alimentação desses casos pela Imprensa, principalmente em homicídios, serve apenas para facilitar o lado emocional do trabalho da acusação. Manter o inquérito do Dionísio Severo sob segredo de Justiça nessas condições é limitar o oferecimento de contrapontos. Isso ajuda a manter a aura de suspeita diante das incriminações já publicadas e contribui para alimentar o fogo político.  

 

O senhor acredita que o caso Celso Daniel pode colocar no Supremo Tribunal Federal uma pá de cal à defesa de investigações criminais independentes do Ministério Público?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- É temeroso afirmar isso. A sociedade brasileira está sob chantagem do Ministério Público. Eles fizeram muitas investigações. É bem verdade que muitas são verdadeiros fiascos. Mas alguns trabalhos contêm dados importantes sobre corrupção, grandes esquemas. Alguns desses trabalhos estão sendo utilizados em suas campanhas, mostrando que se forem declaradas nulas suas investigações os megafraudadores fulanos e sicranos podem ficar impunes. 


A sociedade está ávida de respostas contra a criminalidade, está farta de ver pobre ir para a cadeia e os megaladrões esquiando em Aspen, tomando champanhe em Paris. Temo que esse tipo de chantagem influencie no entendimento do Supremo Tribunal Federal, onde a briga está feia. 


O caso Celso Daniel pode ser um caso a mais, no qual está sendo arguida a ilegalidade das investigações feitas pelo Ministério Público. Li um memorial produzido pela defesa de Sérgio Gomes da Silva. Os advogados de defesa levantam questões desde a ilegalidade até a contrariedade de normas que o próprio MP estabeleceu para disciplinar o trabalho deles. Noutras palavras, nem as normas que eles mesmos criaram (que não valem como lei, é bom ressaltar) são contrariadas. Isso revela prepotência, arrogância e não me parece que o Constituinte quis criar um poder sem controles, sem fiscalização e sem limites. Entendo, portanto, que o caso Celso Daniel vai acirrar o debate. 

 

Numa das entrevistas a esta revista, os promotores criminais correlacionaram a conclusão do inquérito da delegada Elisabete Sato, sobre a falta de conexão entre o assassinato do prefeito e as supostas propinas, a interesses corporativos em defesa de exclusividade da atuação da Polícia.

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- É precipitado ser taxativo sem conhecer os autos. Mas reafirmo meu respeito pelo trabalho de um delegado federal com experiência em homicídio, no caso o Dr. José Pinto de Luna, e da própria Polícia Civil, que tem tradição investigativa. Um exemplo de açodamento me chegou através de um documento da Polícia Civil. O delegado informa que um determinado depoimento não foi juntado ao autos em virtude de a depoente ser uma figura fantasiosa, conhecida como contadora de histórias. 


Pois bem: essa pessoa, conhecida como "Maria Louca", durante muito tempo deu sustentação às teses defendidas pelo Ministério Público. De um lado Maria Louca, de outro o desmascaramento de que Sérgio Gomes não destravou a porta da Pajero, mas sim o próprio Celso Daniel; contratações sem contratos; contatos telefônicos que a quebra de sigilo não confirmou; versões lacônicas, o espetáculo da mídia. Tudo isso mina as conclusões políticas do caso e algumas ligações estabelecidas entre fatos e pessoas.

 

Não parece estranho o silêncio da chamada grande mídia com relação à exumação da realidade do caso Celso Daniel?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Certamente. Depois de levantar mistérios sobre o destravamento da porta da Pajero, ter de noticiar que pode ter sido o próprio Celso Daniel que o fez, pode ser incômodo. Depois de levantar dúvidas sobre a calça que o morto usava antes do episódio ter de dizer que, a duras penas, com o concurso da USP (Universidade de São Paulo), tendo inclusive de recriar o ambiente do último jantar da vítima, a Polícia Civil provou que a calça era a mesma, pode ser desconfortável. 


Depois de veicular a esmo que a vítima fora torturada, com base na declaração do perito Carlos Delmonte Printes (já falecido), ter de publicar que o Instituto Médico-Legal, com o concurso de cinco legistas, desmentiu aquela versão, isso pode ferir a credibilidade do veículo. Depois de acompanhar a diligência do senador Eduardo Suplicy e ter de, com a mesma ênfase, divulgar que o pastor denunciante não foi encontrado ou não existe, ter de investigar ou especular que o pastor do Eduardo Suplicy pode ter sido uma armação de quem dá sustentação política ao assunto, isso pode ser um tormento. 


Depois de cogitar que o empresário com quem Celso Daniel foi confundido não existia e ter de entrevistar o comerciante do Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) Cleiton Calil de Menezes, o qual costumava transportar dinheiro, não deve ser fácil. Ou até tudo isso seria, mas aí voltamos à questão da credibilidade, admitir o fiasco, admitir que errou e que o Ministério Público também. 


Seria ter de admitir que puderam estar, de forma burra ou consciente, a serviço de interesses políticos. Não há nada de anormal entre divulgar um fato e depois outro. O problema está quando se banca o fato, o que parece ter acontecido. Reverter essa situação tem preço muito alto e aí a porca torce o rabo.  

 

O senhor fez referência à morte do perito Carlos Delmonte Printes. Chegou a ver a cobertura dessa morte?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- Sim. A Folha Online, nas primeiras linhas, disse que ele constatou que Celso Daniel havia sido torturado. O jornal O Estado de S. Paulo idem, com a agravante de se referir ao "assassinato de Printes". O Correio Brasiliense destacou em segundo parágrafo a suspeita de membros da CPI dos Bingos, que consideraram suspeito o fato de Carlos Delmonte Printes ter morrido às vésperas de uma acareação. O JB Online também deu destaque nas primeiras linhas para a afirmação dele, perante o Ministério Público, de que Celso Daniel fora torturado e que o perito guardara silêncio, por muito tempo, por ter sido censurado pela Polícia Civil paulista. 


A revista Veja percorreu o mesmo caminho e ainda colocou em dúvida o suicídio, com base em depoimento de familiares do morto, mesmo diante da carta deixada por ele. Segundo a Veja, parentes teriam dito que ele tinha o hábito de anotar as coisas e carta não significava que ele iria morrer. Detalhe: na carta ele dava conta de providências para o sepultamento e o que fazer com as cinzas. Até o jornal Causa Operária seguiu a linha dos grandes veículos e poucos se dignaram, mesmo que em últimas linhas, a informar que a declaração dada por aquele profissional fora desmentida pelo Instituto Médico-Legal. 


Sobra ainda um detalhe curioso, que é o fato de ele haver escrito uma carta e nada tenha revelado sobre um caso tão importante. É possível que não tenha sido tão importante para ele ou que tenha estado vivendo o noticiado clima de depressão pela morte do filho. De qualquer forma, uma morte a mais nesse contexto de mistérios acaba avolumando o mistério central. Foi um prato cheio para o imaginário popular. 

 

E diante desse quadro que o senhor mesmo descreveu e na condição de quem diz ter o desconfiômetro ligado em relação à Imprensa, o que se pode dizer?

 

Armando Rodrigues Coelho Neto -- A Imprensa brasileira, particularmente a grande mídia, tem se comportado como adolescente que só reconhece mancadas muito tardiamente. Li um artigo na Internet, assinado por Maurelio Menezes, professor de telejornalismo, que diz: "a imagem de que o jornalismo representa a realidade não passa disso mesmo, uma imagem, uma impressão, uma sensação. A missão de noticiar, de contar a verdade, de apresentar os vários ângulos de uma mesma discussão, são elementos de uma grande publicidade que em muito se distancia da veraz finalidade da instituição jornalística". 


Depois da Escola Base, do caso Celso Daniel, vemos agora a tragédia com o avião da TAM, em Congonhas, no qual os interesses dos parentes das vítimas se confundem com interesses políticos e os movimentos criados em torno disso acabam se tornando fatos jornalísticos. Enquanto der audiência isso estará em pauta. Tudo isso revela que se aprendeu pouco com os outros episódios. A nossa Imprensa, em geral, tem vergonha de se retratar, com medo de perder a credibilidade. Nas escolas de jornalismo são fartos os relatos de veículos de Imprensa que foram condenados na Justiça não apenas a indenizar vítimas, mas a publicar a sentença e que aumentaram o valor da indenização para não publicar que erraram. Esse talvez seja o retrato do caso Celso Daniel. 


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