Caso Celso Daniel

Sérgio Gomes silencia-se
à condenação da Imprensa

DANIEL LIMA - 13/10/2005

O empresário Sérgio Gomes mantém rigoroso silêncio público diante dos desdobramentos do assassinato do prefeito Celso Daniel, que o acompanhava enquanto dirigia o utilitário Pajero na noite de 18 de janeiro de 2002. Sérgio Gomes sofre sistemático linchamento da maioria da mídia depois que o caso saiu da esfera criminal, apurado pela Polícia Civil de São Paulo e pela Polícia Federal, e se cristalizou como um dos mais ruidosos instrumentos de interpretações político-criminais do País.


Inocentado nas investigações policiais, nas quais foi simultaneamente observado como vítima e suspeito, Sérgio Gomes passou quase oito meses na prisão, a partir de dezembro de 2003, após o Ministério Público reabrir o caso e o apontar como suposto mandante do crime. Sérgio Gomes está em liberdade desde agosto do ano passado, depois de ter julgado favorável uma liminar de habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, voltou às manchetes com o estouro da boiada do anunciado mensalão denunciado pelo então deputado federal Roberto Jefferson. 


O Ministério Público de Santo André associou de vez o caso do assassinato de Celso Daniel e a suposta rede de corrupção na administração do petista que seria ministro do governo Lula da Silva. A correlação, que instrumentalizou a reabertura do caso pelo MP e a criminalização de Sérgio Gomes, interessa por demais para fechar o cerco em torno da suposta vinculação política. Principalmente agora com o terceiro vértice das denúncias sobre o mensalão. 


Na medida em que novas revelações são feitas, fomentam-se consistência e inconsistência de teses sobre a inocência e a culpabilidade de Sérgio Gomes. Tudo depende do ângulo que se observa o caso. Certo mesmo é que a memória do prefeito Celso Daniel sofreu fortes estilhaços nos últimos 30 dias, na exata medida em que a suposição de que tenha morrido por causa de um dossiê denunciatório de irregularidades virou peça contraditória, já que novas versões o colocam como participante ativo das supostas irregularidades. 


Um encontro reservado entre o Ministério Público e Roberto Jefferson chegou a ser realizado há cerca de dois meses para troca de informações. Vazaram-se para a Imprensa não mais que flácidas insinuações de Jefferson sobre a possibilidade de conexão entre os dois casos. A Prefeitura de Santo André seria o laboratório do propalado modo petista de garantir recursos financeiros para obter maioria no Congresso Nacional e, também, preparar-se, segundo interpretação oposicionista, para encaminhar o País a um regime socialista de viés ostensivamente popular. 


Melhor amigo


Sérgio Gomes é enquadrado na condição de culpado. A prevalecer a defesa da equipe de criminalistas comandada por Roberto Podval, o caso Celso Daniel superaria largamente o ruidoso caso da Escola Base, invariavelmente emblematizado como símbolo de precipitação da Polícia Civil e de açodamento dos veículos de comunicação, alguns dos quais obrigados por sentenças judiciais ao pagamento de indenizações. 


O mais grave na situação de Sérgio Gomes é que o inquérito da Polícia Civil com mais de 1,5 mil páginas e as incursões da Polícia Federal se cruzaram na conclusão de que Celso Daniel foi vítima de sequestro de ocasião, sem motivação política. Portanto, sem qualquer implicação direta ou indireta com supostas propinas na Prefeitura de Santo André e longe, portanto, do mensalão. 


Entretanto, o Ministério Público decidiu que Sérgio Gomes, o melhor amigo de Celso Daniel, mandou cometer um crime que, considerados verdadeiros os argumentos, se constituiria em peça de arrematada estupidez do suposto autor. Só o aparato hollywoodiano para o arrebatamento do prefeito de Santo André na área do chamado Três Tombos, na Capital, seria suficiente para conferir a Sérgio Gomes o diploma de maior trapalhão da história policial. Aquela operação foi reconstituída pela Polícia Civil e reúne 19 de um total de 125 testemunhos. 


Quem acreditaria, de boa-fé que alguém que queira matar alguém importante contrataria um bando de marginais desprovidos de infra-estrutura mínima e suscetível à delação e, ainda pior, escolheria como palco uma passarela pública sujeita a olhares indiscretos, quando não a relatos contraditórios? 


E, mais ainda, que acumulasse, como enfatiza o Ministério Público, tantas escorregadelas na ânsia de parecer acidental o que seria proposital? 


Se mesmo um enredo de crime perfeito carrega potencialidade de risco de desmascaramento, o que dizer então do roteiro tão espetaculoso quanto vulnerável atribuído à ação de Sérgio Gomes? 


Pontos extravagantes


Esses pontos de interrogação podem parecer extravagantes, mas seguem ritual preso à dinâmica da tese de que Sérgio Gomes articulou, entre outras, uma espetacular operação para retirar da Pajero o prefeito Celso Daniel. Foram tantas e tão sofisticadas as engrenagens que consta do roteiro o uso de helicóptero para o resgate de um preso na penitenciária de Guarulhos, cuja atuação seria relevante no sequestro.


A mídia eletrônica e impressa foi inicialmente unânime na caracterização de crime comum no noticiário pós-sequestro e pós-assassinato de Celso Daniel. Chegou a derramar-se em condenações contra o estado de calamidade pública da área de segurança pública na Grande São Paulo. Tanto que o impacto da morte de Celso Daniel provocou reviravolta na política do governo do Estado em tratar questões criminais. 


O governador Geraldo Alckmin jogou fora o manual de Direitos Humanos do ex-governador Mário Covas e o novo titular da secretaria de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu, adotou métodos semelhantes aos de Erasmo Dias, entrincheirado titular da pasta no governo Paulo Maluf. Sem contar que resolveu investir pesado em recursos humanos, materiais e também em inteligência preventiva. 

Não é à toa que os indicadores do setor apontam substancial melhora nos últimos três anos. Os dados não surpreendem porque o confronto dos números colhe dois momentos de extremas desigualdades -- de completo abandono da população à sanha dos marginais e de reação enérgica. 


Por presunção


O apontamento de Sérgio Gomes seria compulsório como suspeito do crime não só por estar ao lado do prefeito Celso Daniel na Pajero. Havia antecedentes de denúncias de irregularidades administrativas na Prefeitura de Santo André formuladas dois anos antes do sequestro por opositores políticos do PT. 


A decisão da Justiça em desqualificar aqueles supostos desvios administrativos da gestão Celso Daniel provavelmente jamais excluiriam Sérgio Gomes de investigações. Mesmo se, em vez de estar ao lado do prefeito, permanecesse em Fortaleza, onde cuidava de pequena frota de ônibus. Sérgio Gomes só decidiu viajar a Santo André por insistência de Celso Daniel, dois dias antes. 


Acreditar que o sequestro e o assassinato de um político da cúpula petista de um presidenciável com forte possibilidade de vencer as eleições se constituiria em acontecimento comum e que, portanto, não provocaria medidas especiais de investigação, seria ingenuidade. Foi exatamente por isso que a elite da Polícia Civil de São Paulo e também o que há de melhor na Polícia Federal foram requisitados. Sérgio Gomes seria automaticamente suspeito, como o foi nas apurações policiais. 


Mais importante que retomar o detalhamento do crime que levou 100 mil pessoas a acompanhar o enterro do corpo de Celso Daniel em Santo André e mesmo a compartilhar com as instituições que o inocentaram ou com o Ministério Público que o considera culpado é verificar o quanto Sérgio Gomes vem sendo fuzilado pelos veículos de comunicação. 


Os pontos que dariam sustentação à inocência são rigorosamente minimizados, quando não radicalmente suprimidos do noticiário. A ordem unida da versão de crime encomendado com ramificações políticas é o cardápio de espetacularização praticamente unânime de jornais, revistas e emissoras de televisão. 


A mídia elegeu Sérgio Gomes besta-fera e está acabado. Colar o assassinato de Celso Daniel a suposta ramificação do mensalão é uma decisão verossímil. Toda a credibilidade de que o PT mantinha sistema de financiamento eleitoral e de controle congressual contamina o processo em que o prefeito de Santo André foi eliminado supostamente como queima de arquivo. 


Qualquer pesquisa que tenha a finalidade de medir a responsabilidade de Sérgio Gomes na morte de Celso Daniel provavelmente registrará números extravagantemente condenatórios ao ex-segurança do prefeito petista. Exatamente por isso o silêncio teria sido recomendado pelos advogados. 


A avaliação de que a mais consolidada das verdades com provas seria intransigentemente ignorada, porque o espetáculo não pode parar, move a estratégia de preservar Sérgio Gomes longe dos holofotes.


Silêncio recomendado


Em vez de oferecer de viva-voz contrapontos às sentenças que o massacra, Sérgio Gomes foi instruído a esquecer os veículos de comunicação. Não existiria, segundo avaliação de uma fonte próxima da equipe comandada pelo criminalista Roberto Podval, qualquer possibilidade de sensibilizar a opinião pública.


Trata-se de batalha aparentemente perdida antes mesmo da clivagem ideológica e eleitoral manifestar-se com toda intensidade depois que o PT foi colhido na contramão do financiamento irregular de campanhas eleitorais e na produção de maioria congressual. 


Mas isso não significa que Sérgio Gomes seja um homem sem esperança de provar inocência, embora essa condição não lhe ofereça a menor expectativa de que possa recompor-se socialmente. Ele, ainda segundo fonte da banca de advogados de defesa, tem se mantido distante de tudo e de todos, entre familiares e poucos amigos. 


Evita-se qualquer comentário sobre o cotidiano do empresário e professor de Geografia e História que conheceu Celso Daniel na campanha para a Prefeitura de Santo André em 1988, quando suas habilidades com artes marciais foram requisitadas como voluntário à segurança daquele que se elegeria três vezes prefeito. 


Mal Sérgio Gomes poderia imaginar que aquele corpo estendido numa estrada vicinal de Juquitiba, na manhã de 20 de janeiro de 2002, o corpo de Celso Daniel de indefectível calça jeans, iria lhe provocar tantos transtornos. Sérgio Gomes saltou da condição de vítima para principal suspeito e, em seguida, de mandante alguns meses depois do assassinato e do encerramento dos inquéritos da Polícia Civil de São Paulo e da Polícia Federal, que o consideram vítima dos sequestradores. 


Três anos e nove meses depois do crime e quase três anos e meio depois de concluírem o caso, os delegados Armando de Oliveira Costa Filho e José Masi, do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), foram convocados para depor na CPI dos Bingos, em Brasília, em 14 de setembro último. É provável que a maioria dos brasileiros que consomem informações não só não saiba disso como também desconheça o conteúdo daquelas mais de quatro horas de inquirições de senadores. 


Mais dificuldades


Para complicar ainda mais a má vontade da mídia em ouvir o outro lado das investigações, os depoimentos dos delegados ocorreram no mesmo dia em que Roberto Jefferson teve o mandato cassado e o ex-ministro Luiz Gushiken defrontava-se com legisladores do Senado e da Câmara na CPI dos Correios.


As emissoras de rádio e de televisão praticamente ignoraram as declarações dos delegados paulistas. Apenas alguns jornais registraram fragmentos dos depoimentos em espaços diminutos e graficamente desprezíveis, quando não maliciosamente interpretados em títulos e matérias que colocavam em dúvida a versão policial.


O jornal "O Estado de São Paulo" editou num canto de página a matéria sob o título "Versão do caso Celso Daniel de delegados não convence a CPI", num texto tão econômico em espaço quanto cético às declarações dos delegados. 


E não foi por falta de pontos bombásticos que os depoimentos de Armando de Oliveira e José Masi deixaram de ganhar manchetes. 


Um exemplo inquestionável sobre a importância dos fatos que constam do inquérito policial esteriliza judicialmente as especulações sobre o arrebatamento de Celso Daniel logo após o abalroamento seguido de tiros contra a Pajero em que voltava do jantar com Sérgio Gomes. 


O que mais se propagou na mídia e que inclusive mereceu infografias de supostos pontos obscuros do enredo do sequestro foi a versão de que Sérgio Gomes teria destravado a porta do passageiro Celso Daniel, facilitando a captura do prefeito pelos sequestradores. Atônito com o desencadeamento da operação de sequestro que o teria colhido extremamente relaxado, após consumir duas garrafas de vinho durante o jantar, Sérgio Gomes disse em emocionado depoimento na mesma noite de 18 de setembro que a porta simplesmente se abriu. 


Celso Daniel abriu a porta


Não foi exatamente esse o desenrolar dos fatos. A oitiva dos integrantes do bando que sequestrou Celso Daniel e que consta do calhamaço levado pelos delegados do DHPP aos senadores em Brasília elimina qualquer dúvida. Um dos sequestradores afirma que, ao caminhar em direção à Pajero, depois da saraivada de tiros que permeou a perseguição do veículo conduzido por Sérgio Gomes, observou que o prefeito Celso Daniel não só destravou a porta como, ao girar a maçaneta, saiu do veículo e disse "calma, calma" -- ação típica de quem sempre procurava o diálogo. 


Nenhum veículo de comunicação faz sequer menção ao fato narrado ao delegado José Masi. A versão de que Sérgio Gomes destravou a porta e ofereceu Celso Daniel de bandeja aos sequestradores é verdade suprema. 


Quinze dias antes do depoimento dos delegados da Polícia Civil de São Paulo em Brasília, a mídia eletrônica e impressa abriu generosos espaços para a reaparição do primeiro-irmão João Francisco Daniel, que depôs na CPI dos Bingos. 


Os jornais deram manchetes principais sobre a versão requentada de denúncias formuladas em 2002 que levaram o Ministério Público a reabrir o caso: o atual chefe de gabinete da presidência da República, Gilberto Carvalho, à época secretário de governo de Celso Daniel, teria afirmado a João Francisco que entregava ao então presidente do PT, deputado José Dirceu, dinheiro extorquido de empresas. 


A novidade do depoimento de João Francisco é que seu irmão mais novo, Bruno Daniel, teria ouvido as declarações de Gilberto Carvalho. João Francisco reiterou em Brasília que a morte de Celso Daniel foi "crime planejado, premeditado". No dia seguinte foi a vez de Gilberto Carvalho ser ouvido pela CPI dos Bingos, agora longe da Imprensa que, ao reconstruir suas declarações, com base em informações de senadores presentes, lhe deu tratamento semelhante ao dos delegados da Polícia Civil paulista. 


A tipologia de abordagem da mídia eletrônica e impressa é de gélido ceticismo sobre tudo que se referir à versão de sequestro ocasional de Celso Daniel e de completa crença ao caixa dois petista. Definitivamente, os dois casos foram embrulhados no mesmo invólucro com o objetivo de torná-los igualmente pecaminosos. 


O que a mídia jamais descreve é o distanciamento entre os irmãos Daniel e o prefeito assassinado. Embora o relacionamento entre eles tenha importância relevante na apuração tanto do caso de suposta propina como do próprio assassinato, praticamente nada se relata. Celso Daniel e seus irmãos só se encontravam nas formalidades de aniversários na família e, principalmente, quando João Francisco aparecia no Paço Municipal de Santo André para operar lobby em favor de um grupo de empresários do setor de transportes, que está por trás das denúncias de crime encomendado. Também especializou-se no exercício de vantagens pessoais. 


Qualquer informação que retire dos irmãos Daniel a aura de santidade soaria politicamente incorreta no ambiente de execração a que foi submetido Sérgio Gomes. 


Briga de transporte


Coincidentemente, a família Gabrilli, a quem João Francisco Daniel prestava e recebia favores, está no extremo oposto de interesses do também empresário de transportes Ronan Maria Pinto, apontado pelo Ministério Público juntamente com o ex-secretário Klinger Sousa, além de Sérgio Gomes, como um dos líderes do esquema de propina na prestação de serviços públicos em Santo André e, portanto, possíveis co-autores do mando de assassinato de Celso Daniel. 


O ex-deputado federal Duilio Pisaneschi, candidato derrotado nas eleições do ano passado à Prefeitura de Santo André, ajudou a alimentar o fogaréu que culminou com o aparecimento de João Francisco no noticiário. Ele declarou no mesmo dia do anúncio do assassinato de Celso Daniel desconfiança da motivação do crime. Insinuou numa entrevista a uma emissora de rádio da Capital possível paralelismo com o suposto esquema de propina na Prefeitura de Celso Daniel. 


Mudança de enredo


Um ponto nebuloso envolve o aparecimento com ares de justiceiro de João Francisco Daniel e também de seus irmãos para reabrir o inquérito da morte do prefeito em meados de 2002, quase que imediatamente após a conclusão de crime comum da Polícia Civil e da Polícia Federal. Durante as investigações nenhum membro da família colocou em dúvida a ocasionalidade do crime. Ou seja: não há na primeira fase dos inquéritos policiais qualquer apontamento de crime político. 


Por que a família Daniel preferiu silenciar-se à Polícia Civil sobre a possibilidade de crime encomendado se uma semana depois da morte do prefeito o Ministério Público de São Paulo colhia depoimentos de Rosângela Gabrilli, amiga muito próxima de João Francisco Daniel, e já se revelava a suposição? Rosângela Gabrilli chegou a sugerir no depoimento que o irmão mais velho de Celso Daniel lhe teria afirmado suposto caráter político do assassinato. 


Na semana seguinte, 15 dias depois da morte do prefeito, foi a vez de Duilio Pisaneschi insinuar argumentos semelhantes ao MP. 


A resposta de fontes policiais sugere que a politização do caso estaria definida desde o princípio, independentemente dos resultados das investigações. 


A logomarca familiar de Celso Daniel garantiria credibilidade a qualquer versão que fosse introduzida assim que o caso se encerrasse no âmbito da Polícia Civil eventualmente sem contemplar interesses oposicionistas. 


A instalação do caso nos vãos especulativos seria uma resposta político-partidária à precipitação eleitoral da cúpula petista que, Celso Daniel ainda sequestrado, responsabilizou o governo do Estado pela tormentosa situação criminal na Grande São Paulo. 


O ataque concentrado à caracterização da morte de Celso Daniel como crime vinculado à suposta rede de propina no setor de transporte coletivo em Santo André também ficou explícito na mesma edição dos jornais que deram cobertura ao depoimento de João Francisco Daniel na CPI dos Bingos, no começo de setembro. 


Mais de três anos depois de preso, um dos sequestradores, cuja identidade é mantida em sigilo, resolveu declarar que o arrebatamento teria custado R$ 1 milhão. É claro que reforçou a posição de que Sérgio Gomes seria o mandante e mentor do crime. 


Dossiê esfarrapado


O suposto motivo para o assassinato de Celso Daniel, revelado pelo sequestrador, é uma antiga versão que não passou pela prova de resistência das investigações policiais: o prefeito teria sob guarda minucioso dossiê apontando a participação de Sérgio Gomes, Ronan Maria Pinto e Klinger Sousa no desvio de recursos públicos. "A proposta era sequestrar, pegar os documentos que a vítima guardava e depois era para matar", confessou o preso, estimulado pela delação premiada e, segundo fontes prisionais, porque está jurado de morte por uma facção criminosa.


O depoimento foi prestado à delegada Elizabeth Sato, que comanda a reabertura de inquérito pela Polícia Civil, e ao promotor Roberto Wider. O trabalho em conjunto é espécie de admissão de que, ao atuar isoladamente na apuração anterior, depois do inquérito encerrado pela Polícia Civil, e pela Polícia Federal, o MP contornou pressupostos constitucionais que determinam à polícia judiciária funções investigativas e ao Ministério Público o acompanhamento. 


Alguns veículos de comunicação não esqueceram de ouvir o outro lado da notícia sobre o suposto prêmio de R$ 1 milhão pela cabeça coroada de Celso Daniel. Entretanto, a máscara da democracia de informação cai diante da falta de equilíbrio editorial. As declarações do criminalista Adriano Salles Vanni, do escritório de Roberto Podval, foram lançadas no rodapé do texto denunciatório: "O Sérgio é completamente inocente, não mandou matar Celso Daniel" -- disse Vanni, que alertou sobre o benefício da delação premiada só concedida quando a denúncia é comprovada. E explicou: "Esse rapaz está com a vida perdida, acusado de sequestro e morte e vai passar o resto de seus dias na prisão. É muito estranho que tenha resolvido falar isso mais de três anos depois de ser preso" -- afirmou. 


Mas é sempre assim: o que eventualmente surgir como informação que dê densidade as evidências de que o crime foi ocasional será sempre subestimado pela mídia eletrônica e impressa. Já, em sentido contrário, estarão reservadas manchetes, entrevistas, massacre mesmo. O caso Celso Daniel é um prato cheio para a mídia escrava de audiência. 


Alinhamento ao MP


Uma leitura minimamente atenta da edição de 17 de setembro do jornal O Globo sobre o depoimento do sequestrador que fez alusão ao preço de R$ 1 milhão para a morte de Celso Daniel e que disse ter Sérgio Gomes parado espontaneamente o veículo em que estava com o prefeito em 18 de janeiro de 2002 revela conversão obrigatória às provas recolhidas pelo Ministério Público. Sob o título "Sequestrador diz que Sombra orientou bando", o jornal fluminense, como tantos outros, atribui a Sérgio Gomes um codinome confinado a adversários políticos de Celso Daniel. O simples enunciado do apelido predispõe subliminar juízo de valor discricionário ao empresário. 


Mais enviesamento


Mas a matéria de "O Globo" não se esgota no título enviesado. O texto trafega integralmente pela argumentação preparada pelo Ministério Público. Inclusive nas seguintes declarações do promotor público Roberto Wider: 


"Ele disse que o Sérgio ligou para o Dionísio enquanto jantava com Celso Daniel num restaurante em São Paulo", referindo-se a Dionísio de Aquino Severo, o chefe da quadrilha que teria sido contratado por Sérgio Gomes para participar do sequestro e que foi morto na cadeia.


A informação mais relevante da matéria foi utilizada apenas como apêndice pelo jornal "O Globo": a quebra do sigilo telefônico de Sérgio Gomes não indica a ligação para Dionísio. A Promotoria defende que o empresário pode ter usado um outro aparelho, mas não faz qualquer menção sobre eventual registro da ligação no aparelho de Dionísio de Aquino Severo, um dos sequestradores. 


Fontes policiais asseguram que o telefonema não existiu. Além de suposto contato com Dionísio de Aquino Severo, Sérgio Gomes teria discutido durante o jantar com Celso Daniel. Ou seja: o homem que preparou a morte do prefeito não teve sequer o cuidado de manter aparências de civilidade nos últimos momentos públicos em que passaram juntos, numa mesa de restaurante grã-fino. 


O inquérito conduzido pela Polícia Civil reduz a pó a informação do sequestrador: investigadores estiveram no restaurante paulistano e reconstruíram em minúcias o jantar entre Celso Daniel e Sérgio Gomes. Sabe-se até o valor da conta. Mais que isso: não se notou qualquer anormalidade na relação dos dois comensais. Mais ainda: a história divulgada pela imprensa de que Celso Daniel não estaria, no restaurante, vestindo a calça jeans com que foi encontrado na estrada vicinal de Juquitiba, não passa de farsa. Ou seja: Celso Daniel saiu de calça jeans naquela noite de sexta-feira e seu corpo fatalmente baleado foi encontrado 36 horas depois com a mesma calça. 


Um outro exemplo de que a ordem unida da mídia é incriminar Sérgio Gomes para possivelmente consolidar as fronteiras de financiamento eleitoral do PT foi espetacularmente oferecido no final de agosto. Como se tratasse de novidade, não de requentamento de denúncia que contribuiu para elevar a pressão que culminou no final de 2003 com a prisão preventiva de Sérgio Gomes, o perito Carlos Delmonte Printes disse que considera inverossímil a tese de crime comum e que à época foi proibido de falar. 


Responsável pela necropsia do corpo de Celso Daniel, Delmonte saltou para as manchetes com uma abordagem que recolocou suspeição sobre os trabalhos da Polícia Civil. 


No dia seguinte, rebatendo a velharia declaratória vendida como novidade porque o momento político em Brasília exigia pressão total, o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marco Antonio Desgualdo, reafirmou as características de crime comum. O tratamento da mídia, mais uma vez, foi deliberadamente pró-denunciante. 


Diferentemente dos textos do dia anterior, irrevogavelmente atrelados ao perito Carlos Delmonte Printes, as declarações do delegado-geral foram sutilmente enquadradas numa dieta de distanciamento, quando não de ceticismo. 


Ou não seria assim a interpretação de qualquer leitor atento para a seguinte frase, da Folha de S. Paulo: "A despeito da decisão judicial que considerou o empresário Sérgio Gomes da Silva réu no assassinato de Celso Daniel, o delegado-geral(...) disse ontem que não acredita na participação dele no crime". 


Legista ignorado por todos


Nenhum veículo teve sequer o cuidado ou a curiosidade de ouvir os legistas que de fato fizeram a necropsia do corpo de Celso Daniel. Provavelmente porque as explicações seriam pouco interessantes para a indústria do espetáculo. 


Os especialistas do Instituto de Criminalística constataram, com base em fundamentos científicos, que não havia marcas características de tortura no corpo de Celso Daniel. Os estragos decorreram de impactos dos projéteis. 


Os irmãos Daniel não fizeram, entretanto, qualquer menção sobre uma notícia divulgada há muito tempo: a de que obteriam de peritos internacionais as respostas que comprovariam a tese de tortura para recolhimento do suposto dossiê que teria sido preparado por Celso Daniel. 


Crime e mensalão


A efervescência do caso Celso Daniel como crime político seguiu em setembro cronologicamente o andar da carruagem da materialidade das múltiplas faces do caso mensalão, em Brasília. Por isso, o mês não terminaria sem novos personagens. 


Uma empregada doméstica de Celso Daniel e um garçom do Baby Beef Jardim, em Santo André, apareceram no noticiário com identidade sob sigilo para apontar tardias mas sempre providenciais informações sobre o formato do crime defendido pelos promotores públicos. 


A empregada doméstica disse em depoimento que viu três sacolas estufadas de dinheiro vivo e envoltas em um lençol na área de serviço do apartamento de Celso Daniel, o que indicaria, segundo os promotores, que o prefeito tinha pleno conhecimento e participava do esquema de arrecadação de recursos ilícitos para campanhas eleitorais do PT. "Ele foi eliminado porque se opôs ao esquema quando verificou que o dinheiro estava sendo direcionado para os integrantes da quadrilha e não mais para as campanhas eleitorais do seu partido" -- afirmou o promotor Wider. 


Essa versão não corresponde às declarações da família Daniel, quando da abertura do caso pelo Ministério Público em 2002 e que culminou com a prisão de Sérgio Gomes. Naquela ocasião, o acordo de preservar a memória do prefeito assassinado sugeria a interpretação de que Celso Daniel desconhecia o suposto esquema de propina e, ao descobrir e tentar encerrá-lo em nome da moralidade pública, acabou assassinado. 


Agora, as declarações do promotor de Justiça se mostram conflitantes com aquele enunciado dos familiares. Se Celso Daniel tinha conhecimento e participava da operação de propina, por que produziria um dossiê que possivelmente em algum momento poderia incriminá-lo também?


Como alguém que chegaria a ministro de Estado e pretendia conquistar o governo paulista escorregaria na ingenuidade de documentar crimes administrativos nos quais estaria diretamente envolvido? 


Como Celso Daniel seria tão descuidado para largar sacos de dinheiro à curiosidade de uma serviçal?


Espetáculo público


Se os supostos sacos de dinheiro no apartamento de Celso Daniel revelariam imperdoável descuido de um homem público discreto e franciscano, o que dizer então de outra testemunha apontada pelo Ministério Público, um garçom do mais badalado restaurante de Santo André? 


Apresentado como frequentador do Baby Beef Jardim, a testemunha anunciada pelo MP contou ter presenciado no local reuniões de Celso Daniel com Sérgio Gomes, o então secretário de Serviços Municipais Klinger Sousa e o empresário Ronan Maria Pinto. "O grupo tratava de negócios, muitas vezes eu os vi assinando documentos e contratos" -- contou a testemunha. 


Decididamente, a narrativa do garçom torna Celso Daniel tão desastrado em ambientes públicos quanto privados. A narrativa das duas testemunhas remete Celso Daniel à condição de protagonista da espetacularização da traquinagem pública. Uma ação que colidiria frontalmente com o próprio perfil de introspecção e discreção e principalmente com suas ambições políticas. Celso Daniel seria espalhafatoso e ingênuo a ponto de erguer castelos de areia na corrida por um ministério. 


Um desastrado trapalhão


As duas novas versões do Ministério Público para entrecruzar o assassinato de Celso Daniel e o suposto esquema de propina na Prefeitura de Santo André foram massificadas na mídia eletrônica e impressa. Inclusive nos editoriais, espaço tradicional de opiniões e reflexões. Desta forma, a nova imagem de Celso Daniel é de um desastrado trapalhão, quadrilheiro público tanto quanto os supostos mandantes de sua morte. Celso Daniel seria alguém sem a menor competência para, sempre supostamente, lidar com ilícitos administrativos. 


Mais que isso: alguém que além de promover algazarras administrativas fazia questão de exibi-las. Tanto quanto seus supostos algozes. Entre os quais, Sérgio Gomes, que, dessa forma, não honraria jamais o apelido pouco original imantado pelos adversários políticos a quem supostamente cuida dos interesses financeiros de um determinado agente público. Ou alguém acredita que "sombra" é compatível com a visibilidade de qualquer movimento inusual no restaurante mais badalado do Grande ABC? 


O estilhaçamento da imagem do prefeito assassinado é passivo simplesmente patético para a família Daniel. Principalmente para João Francisco. Ele jamais compreendeu a dimensão pública do irmão famoso. Ao ajustar as peças para retirar o caso da esfera criminal em que as polícias civil e federal rigorosamente acondicionaram, João Francisco mergulhou Celso Daniel em supostas implicações político-administrativas que se apresentam tão incontroláveis quanto férteis em interpretações. 


Como se observa, os acontecimentos do final de agosto e de setembro últimos sobre o caso Celso Daniel carregam toda a carga de ambiguidades. Sérgio Gomes e seus amigos mandaram matar aquele que seria ministro de Lula da Silva entre outras razões, sempre a considerar o enredo paralelo, porque detestavam a possibilidade de ganhar rios de dinheiro em nova e muito mais próspera esfera do poder.


Celso Daniel, ainda a considerar a tese paralela, cometeria o haraquiri partidário de opor-se à gênese de financiamento da campanha de Lula da Silva justamente no ano em que o PT se preparava para chegar ao poder federal, período no qual, contraditoriamente, segundo provariam os detalhes do mensalão, mais recursos para o financiamento eleitoral seriam exigidos. 


Celso Daniel, enfim, depois de anos de prevaricações, resolveu dar um basta e desconsiderar a possibilidade de eventuais represálias. Mais que isso: estúpido o suficiente para trocar os pés da estratégia pelas mãos da tática, ainda segundo o raciocínio da versão antipolicial, Celso Daniel estava preparando seu próprio suposto algoz, o então secretário Klinger Sousa, para sucedê-lo na Prefeitura de Santo André, a quem, pouco depois de ser anunciado comandante do programa de governo de Lula da Silva, em novembro de 2001, resolveu conferir a função de supersecretário.


A nomeação branca de Klinger Sousa para o cargo de expectativa de prefeiturável foi preparada de fato muito tempo antes de Celso Daniel ser designado coordenador do programa de governo de Lula da Silva, em novembro de 2001. Um dos sinais mais sólidos nesse sentido foi a inclusão de Klinger Sousa na vice-presidência do Esporte Clube Santo André. 


A popularização do nome do secretário preferido de Celso Daniel passava pelo fortalecimento do único clube profissional da cidade, que disputava a Série B do Campeonato Paulista e a Série C do Campeonato Brasileiro.


Com Klinger de vice-presidente e suporte de empresas próximas ao Paço Municipal, tradição nos clubes médios e pequenos que contam com o apoio do Poder Público, o Santo André subiu para a Série A do Paulista e, mais tarde, para a Série B do Brasileiro. Entre os patrocinadores do Santo André constava a Rotedali, empresa de Ronan Maria Pinto, um dos conflituosos concessionários do setor de transporte coletivo do Município. 


A introdução de Klinger Sousa na direção do Santo André espelhou-se no sucesso esportivo do São Caetano e nos ganhos políticos do então prefeito Luiz Tortorello. O secretário que Celso Daniel escolhera para concorrer à sucessão municipal e que reforçou os quadros diretivos do Santo André foi tão a fundo na missão que nos eventos do clube se tornou um dos mais assíduos participantes. Entoava o hino do clube sem tropeçar na letra e na melodia, caso raro inclusive entre os mais veteranos dirigentes. Com a morte de Celso Daniel e as denúncias em profusão, Klinger acabou se afastando do Santo André, da Prefeitura e da vida partidária. 


É provável que outubro chegue com nova avalanche de teorias condenatórias a Sérgio Gomes, agora cada vez mais fortalecidas porque o suposto caso de propina na Prefeitura de Santo André foi articuladamente associado ao sistema de financiamento de campanhas eleitorais do PT e aliados. Mais que isso: teria sido a célula-mãe do mensalão. 


Paradoxalmente, como se observa, o que deveria servir de prova à inocência de Sérgio Gomes, virou peça de acusação. Afinal, se havia esquema de propina na Prefeitura de Santo André que, por sua vez, ajudava a abastecer os cofres do PT para chegar à presidência da República, por que Celso Daniel, membro importantíssimo do partido e, segundo afirmações do Ministério Público, integrante da quadrilha que atuava no Paço de Santo André, pretenderia mudanças justamente a nove meses das eleições, depois de nomeado para a coordenação do programa de governo?


A possibilidade de Sérgio Gomes conseguir escapar do silêncio a que se impôs também por orientação de advogados não está descartada. Admite-se informalmente que grave uma entrevista em áudio e vídeo que provavelmente contariam inclusive com possíveis indagações enviadas pelos próprios membros do Ministério Público. O trabalho jornalístico seria colocado à disposição da Imprensa. Esse formato foi sugerido como alternativa ao fato de que Sérgio Gomes estaria amargurado demais com o tratamento condenatório da mídia. Há quase um ano e meio fora da prisão, Sérgio Gomes praticamente perdeu a liberdade pública de ir e vir. Enquanto uma fonte policial assegura que ele é a segunda maior vítima da tragédia dos Três Tombos, o MP aperta o cerco para consolidar a tese de crime encomendado.


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21/02/2022 Conheça 43 personagens de um documentário histórico
18/02/2022 Silêncio de Sérgio Gomes em 2002 garante Lula presidente
15/02/2022 Irmãos colaboraram demais para estragos do assassinato
14/02/2022 MP desmente MP: Crime de Encomenda é insustentável
11/02/2022 Finalmente acaba a farra oportunista de sete mortes
08/02/2022 Previsão: jogo eletrizante no mata-mata da Globoplay
07/02/2022 Crime de Encomenda é casa que cai a cada novo episódio
04/02/2022 Bomba na Globoplay: Gilberto Carvalho admite Caixa Dois
02/02/2022 Série da Globoplay começa a revelar equívocos históricos
01/02/2022 Crime Comum em vantagem no mata-mata da Globoplay
31/01/2022 CapitalSocial torna prioridade análise da série da Globoplay
28/01/2022 Já se ouve a marcha fúnebre de uma narrativa fraudulenta
24/01/2022 Globoplay vai exibir segredo de Sérgio Gomes que MP queria?
20/01/2022 Documentário histórico põe fim ao totalitarismo midiático
14/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime
13/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime (4)
12/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime (3)
11/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime (2)