Caso Celso Daniel

Versão farsesca da morte
do prefeito vira livro (3)

DANIEL LIMA - 24/10/2016

O jornalista Silvio Navarro, editor do site da revista Veja, fez do livro “Celso Daniel – Política, Corrupção e Morte no Coração do PT” um experimento de improvisação e buracos negros na tentativa de juntar peças inconciliáveis entre o assassinato e os denunciados desvios de dinheiro público da administração do petista. O saldo da operação é uma tremenda furada. Entretanto, contempla largamente o senso comum industrializado ao longo dos anos. Contou-se uma lorota e todos acreditaram porque se montou um tabuleiro estratégico para abortar a realidade dos fatos. 

Possivelmente a personagem Maria Amaro Leite seja o símbolo mais grotesco dos descuidos e desconhecimento do jornalista na abordagem de um assunto que vai muito além da mesmice de procurar nos arquivos dos grandes jornais informações distorcidas. Ela ocupa duas míseras páginas da reportagem transformada em literatura. Maria Louca, como se tornou conhecida, revela sem retoque a dimensão e a profundidade do esgarçamento investigativo da força-tarefa de três promotores criminais do Ministério Público Estadual deslocado a Santo André e que atuou em conflito permanente, quando não sistemático, contra 10 delegados estaduais e federais e 32 investigadores. 

Maria Louca valorizada 

Uma leitura atenta sobre o que está nas duas páginas do livro e também dos muitos parágrafos da atuação de fato de Maria Louca sufoca a incipiente argumentação do jornalista de Veja. O trecho relativo à ação anedótica, quando não trágica, de Maria Amaro Leite está no capítulo 8 do livro de Navarro (“A fuga da favela”), que reproduzo até onde é necessário: 

 Nas semanas seguintes ao assassinato de Celso Daniel, já com algum dinheiro no bolso, a quadrilha da favela Pantanal dispersou-se em células. O plano em comum consistia em fugir para o Nordeste, especialmente para o interior da Bahia, onde se reorganizariam. Àquela altura, não era mais mistério que a polícia os procurava, graças às denúncias de moradores da favela e às pistas que eles mesmos deixaram pelo caminho. Àquela altura, uma mulher chamada Maria Amaro Leite já relatara ao DHPP ter sido ameaçada de morte depois de presenciar, por volta das 20h do dia 29 de janeiro de 2002, a conversa de um grupo de jovens num telefone público próximo à Pantanal, instalado na Rua José Ramos Teixeira, ao lado da escola municipal Monteiro Lobato. Segundo ela, eram três meninos e uma menina, que se revezavam ao telefone. O assunto era o sequestro por encomenda do prefeito. Os rapazes eram Mauro Sérgio Santos de Souza, o Serginho, e Manoel Dantas de Santana Filho, o Cabeção. A testemunha também contou que fora abordada na rua mais de uma vez por um homem que lhe oferecia dinheiro para não contar à policial diálogo ouvido no telefone público. O homem, de acordo com ela, era o mesmo que aparecera no Jornal da Record, apresentado por Boris Casoy. A reportagem exibia a imagem do empresário Sérgio Sombra. A defesa do empresário e os delegados de Polícia Civil desclassificariam o depoimento e repetiriam que a testemunha era conhecida na Polícia como “Maria Louca”. Os promotores, no entanto, a levaram a sério. Ela ainda seria ouvida mais uma vez, no dia 20 de abril, pelo delegado Hermes Rubens Saviero Junior, da Polícia Federal. Foi retirada da favela e incluída, durante meses, no Provita, o serviço federal de proteção a testemunha.

Maria Louca descartada 

Esses são os trechos completos da narrativa do jornalista Silvio Navarro sobre a participação do Ministério Público de Santo André no episódio envolvendo Maria Louca. São informações que não deixam dúvidas: Sergio Gomes da Silva, a quem aquele jornalista trata discricionariamente como Sergio Sombra, teria tido participação ativa e deliberada no sequestro e morte de Celso Daniel. 

Agora, a verdade dos fatos omitidos por Silvio Navarro, cujos elementos estão fartamente documentados no meu acervo profissional. Silvio Navarro poderia ter escrito que o Ministério Público de Santo André desistiu de uma testemunha apontada como importante no processo de investigação que determinou a prisão preventiva de Sergio Gomes. O que teria levado os promotores criminais de Santo André a deixarem de lado uma testemunha que consideravam importantíssima para a elucidação do caso a ponto de reservar a ela, uma mulher então com identidade sob segredo de justiça, para suas duas filhas e uma neta, programas de proteção a testemunhas? 

Os advogados de Sérgio Gomes arrolaram a testemunha de acusação desprezada pelo MP como testemunha de defesa. Isso mesmo: a mesma mulher que o MP sobrevalorizou e em seguida descartou constava da relação de defensores preparada pelo escritório de advocacia de Roberto Podval. A explicação é simples: ela mentiu todo o tempo nos depoimentos à Polícia Civil, à Polícia Federal e ao MP na sequência dos acontecimentos em 2002.

Delegado não deu espaço

A mulher que conquistou a confiança do Ministério Público e que passou mais de um ano sob cuidados especiais de programas de proteção de testemunhas ameaçadas é a Maria Louca incompletamente abordada no livro de Silvio Navarro. 

Maria Louca driblou a vigilância investigativa dos promotores públicos de Santo André. Entretanto, não passou pelo crivo de experiência do delegado Armando de Oliveira, do DHPP, na Capital. Na semana seguinte ao assassinato de Celso Daniel, “Maria Louca” procurou um delegado de polícia de Diadema para relatar testemunho de supostos fatos que colaborariam para a elucidação do crime. O delegado Mitiaki Yamamoto a encaminhou ao DHPP, onde o experiente Armando de Oliveira comandava as investigações. 

Em documento de 12 de junho de 2002 encaminhado ao promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, Salmo Mohmari dos Santos Júnior, que requereu o material do inquérito policial para encaminhamento ao juiz de Direito da 1ª Vara daquele Município da Grande São Paulo, o delegado do DHPP, respondeu da seguinte forma: “Conforme solicitação de Vossa Senhoria, encaminho cópia do Termo de Depoimento de (menciona o nome completo de “Maria Louca”) que não foi juntado aos autos originais por não guardar relação de veracidade, sendo que a referida testemunha costumeiramente comparece na Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa relatando fatos desconexos” – escreveu Armando de Oliveira. 

“Maria Louca” compareceu ao DHPP exatamente no dia 30 de janeiro de 2002, 10 dias após a morte do prefeito Celso Daniel. O depoimento ao delegado do DHPP foi prestado num contexto em que toda a mídia divulgava detalhes do assassinato de Celso Daniel, mas não se tinha a identidade de possíveis suspeitos. Por isso, “Maria Louca” não mencionou o nome de qualquer um dos bandidos. Mais que isso: colocou claramente Sérgio Gomes na situação de possível vítima dos sequestradores, traduzindo o diálogo que afirma ter ouvido. 

Narrativas contraditórias 

A narrativa do final de janeiro de “Maria Louca” foi completamente alterada três meses e meio depois, em 20 de abril de 2002, quando, também a pedido do MP de Itapecerica da Serra, a testemunha alardeada como preciosa prestou depoimento ao delegado Hermes Rubens Siviero Júnior, da Polícia Federal de São Paulo, um dos homens destacados pelo governo Fernando Henrique Cardoso para proceder às investigações solicitadas pelo PT. 

O caso Celso Daniel já estava praticamente apurado pelas forças policiais, tanto estaduais quanto federais, os nomes dos sequestradores já detidos eram de conhecimento público e as primeiras versões do Ministério Público Estadual de que Sérgio Gomes poderia ser o mandante começou a invadir jornais e programas de televisão. O depoimento de “Maria Louca” desta feita colocou Sérgio Gomes na condição de mandante do crime. Ele teria pagado para assassinar o prefeito porque teria desviado dinheiro da Prefeitura e fora descoberto por Celso Daniel. 

O documento que coloca “Maria Louca” mais próxima ainda da acusação a Sérgio Gomes data de 17 de setembro de 2002, quando foi ouvida pelos promotores criminais José Carlos Blat, Amaro José Thomé Filho, Roberto Wider Filho e José Reinaldo Guimarães Carneiro. “Maria Louca” foi encaminhada ao Gaerco (Grupo de Atuação Especial Regional para Prevenção ao Crime Organizado) pelo delegado de Polícia Federal Hermes Rubens Siviero Júnior, um dos policiais que, mais tarde, acabou arrolado como testemunha de defesa de Sérgio Gomes. 

Vigilância constante

“Maria Louca” colocou mais tempero no vatapá de especulações sobre a motivação de o Ministério Público ter desistido de incluí-la na ação penal. Tratou-se de um apanhado de contradições e incongruências. Somente se admitiria o histórico de perseguição se Sérgio Gomes fosse uma associação perfeita de idiotice e patetice. 

Afinal, ninguém foi mais vigiado e investigado pela Polícia Civil de São Paulo após o assassinato. Durante mais de dois meses, a pretexto de lhe dar segurança, uma equipe de policiais chefiada pela delegada Elisabete Sato, acompanhou todos os passos de Sérgio Gomes. 

Sérgio Gomes seria extraordinariamente desastrado se cometesse a imprudência de se dirigir em três datas diferentes e sequenciais (conforme as fantasias informativas de Maria Louca) à favela onde residia a depoente, na tentativa de cooptá-la num primeiro instante e ameaçá-la de morte depois. 

Quando abril de 2002 chegou e tanto a Polícia Civil quanto a Polícia Federal concluíram que o crime não fugia do enredo que dominava a Grande São Paulo naquele período de sequestros incontroláveis, a constatação de que Sérgio Gomes também fora vítima de bandidos aparentemente encerrava o caso. Nada mais equivocado: o Ministério Público resolveu reabrir as investigações tendo por base, entre supostos indícios, o depoimento de “Maria Louca”. 

Precariedade informativa 

Quatorze anos após a morte de Celso Daniel o que menos se esperava era um livro-reportagem tão precariamente informativo. Mas quem ao menos sugerir que o buraco negro em que se meteu o jornalista de Veja se esgota no caso de “Maria Louca” não imagina o que mostraremos na sequência desta série.  

Aos incautos ou espertos demais que se derreteram em elogios ao livro de Silvio Navarro, uma sugestão cautelar: contenham o ímpeto para não se tornarem igualmente ridículos. O politicamente correto de cruzar os caminhos do assassinato do prefeito Celso Daniel com a administração nebulosa do mesmo Celso Daniel é uma tremenda roubada a manchar a biografia de quem se mete nessa enrascada sem conhecimento profundo. O assassinato do prefeito de Santo André é um campo minado aos noviciados em investigações policiais e mata-burros a quem, mesmo experiente, caiu na gandaia de uma cobertura historicamente enviesada e completamente fora do foco da realidade. 



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