O pequeno empresário que atuava na Ceagesp, em São Paulo, é outro tropeço da narrativa do jornalista Silvio Navarro, chefe do site da revista Veja, no livro “Celso Daniel, política, corrupção e morte no coração do PT”. Estou dando àquela obra o devido e necessário tratamento crítico e corretivo. O capítulo referente a Cleiton Calil de Menezes, o comerciante do Ceagesp, é repleto de imprecisões. O maior buraco da narrativa é sacramentar dúvidas sobre os acontecimentos esmiuçados pela força-tarefa da Polícia Civil de São Paulo.
Nada que seja por acaso ou por descuido. Fomentar dúvidas onde há certezas concretas é um dos condimentos da obra deliberadamente preparada para manter o caso Celso Daniel fora dos rigores das investigações policiais que concluíram sem dificuldades tratar-se de acontecimento rigorosamente ocasional.
O jornalista de Veja pecou pela desatualização das informações. Houvesse tido a curiosidade de acompanhar o que escrevi sobre o caso Celso Daniel, não teria se equivocado. Resta saber se constava da pauta sacramentar informações fieis às investigações da força-tarefa de 10 delegados e 32 investigadores da Polícia Civil de São Paulo, além de dois delegados da Polícia Federal. Os resultados indicam que não. Muito pelo contrário.
Como a leitura dessa série de matérias sobre o assassinato do prefeito de Santo André em janeiro de 2002 exige atenção e disponibilidade de tempo e muita atenção, recomendo aos leitores que abandonem qualquer vício de leitura rápida, apressada. Crente nessa possibilidade, indispensável aliás, reproduzo na sequência os principais trechos da narrativa do jornalista Silvio Navarro. Em seguida, intervirei a bem da verdade dos fatos.
A narrativa de Silvio Navarro
Segundo o bando, José Edison sugerira sequestrar um comerciante que detinha uma banca no Ceagesp, o gigantesco entreposto de flores, hortifrutigranjeiros e peixes na Zona Oeste da Capital paulista. Ele lhes teria contado que o empresário andava com maços de dinheiro nos bolsos e era dono de uma vistosa caminhonete vermelha Dodge Dakota, um carro bastante cobiçado na época. Mais: de acordo com o bandido, a vítima do rapto que nunca ocorreu percorria tradicionalmente a região dos Três Tombos, na Zona Sul de São Paulo, rumo à rodovia Anchieta, com destino ao litoral sul paulista. José Edison afirmou às autoridades que, na noite do sequestro, perseguira a picape, mas a perdera de vista. Diante do fracasso da operação, e sabendo que um grupo aliado saíra fortemente armado da favela Pantanal, declarou ter telefonado para o aparelho celular de Ivan Monstro e informado sobre o fiasco de sua perseguição. A ordem do líder da quadrilha, contudo, era não perder a viagem. O primeiro carro importado que avistasse deveria ser abordado. Alguém teria de ser raptado naquela noite de sexta-feira. Conforme relato dos bandidos, foi a Pajero preto, conduzido por Sérgio Gomes da Silva com o prefeito de Santo André a bordo, o primeiro veículo de luxo a cruzar-lhes o caminho. Para tragédia do bando, havia um político no automóvel.
Mais narrativa do jornalista Silvio Navarro:
(...) Quando negociava uma deleção premiada com o Ministério Público para possivelmente diminuir sua futura pena, Itamar (Messias da Silva dos Santos) chegaria a admitir que a perseguição à picape Dakota jamais acontecera e que se tratava de uma invenção de José Edison combinada na fuga do grupo pela Bahia. John diria o mesmo: não houve caçada a uma picape vermelha naquela noite. O Grupo de Repressão ao Crime Organizado, o Gaeco de Santo André, comandado pelos promotores Roberto Wider Filho, José Reinaldo Guimarães Carneira e Amaro José Tomé Filho, nunca acreditou na versão da quadrilha presa. Nem na conclusão da polícia. A esse grupo posteriormente se somariam os promotores Lafaiete Ramos Pires, Francisco Cembranelli e Márcio Augusto Friggi de Carvalho, os dois últimos escalados pelo Ministério Público para conduzir dois dos júris populares.
Mais narrativa do jornalista Silvio Navarro:
(...) “Eu nunca vi, em toda a minha experiência, um sequestro em que você deixa o principal carro, os principais autores do crime a 19 quilômetros de distância de onde vai começar a perseguição. Normalmente, os sequestros se dão na saída ou na entrada do local de trabalho, na saída ou na entrada da residência da vítima, que é onde a quadrilha tem o controle da ação” – afirmou o promotor Roberto Wider, um dos responsáveis pela investigação. Com enorme esforço e sem a colaboração de José Edison, o autor da tese segundo a qual a vítima-alvo não era Celso Daniel, a Polícia Civil paulista encontraria uma Dakota vermelha nas redondezas do Ceagesp. Sim, uma Dakota vermelha pertencente a um empresário da Ceagesp. José Edison foi levado ao local logo depois de preso, mas, estranhamente, recusou-se a descer do carro da Polícia Civil para apontar a vítima que pretendera sequestrar na noite de 18 de janeiro de 2002, em São Paulo. Tampouco disse o motivo da negativa em sair da viatura. O comerciante Cleiton Calil Menezes, com 34 anos na época do sequestro do prefeito petista, foi localizado e ouvido pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) no dia 15 de agosto daquele ano. Realmente, tinha uma Dakota vermelha. De fato, era dono de uma banca no Ceagesp. A trama fez mais sentido ainda quando relatou que costumava dirigia pela rodovia Anchieta às sextas-feiras, com destino à cidade de Santos, no litoral paulista, para se encontrar com a namorada, que morava na Baixada Santista. Parecia, pois, um caso solucionado.
Mais narrativa do jornalista Silvio Navarro:
No dia 18 de novembro de 2003, contudo, ao saber do rumo das investigações, o comerciante voltaria ao DHPP. Registrou então uma importante informação, pouco divulgada pela imprensa porque a polícia já havia terminado seu trabalho: a Dakota vermelha não deixara a garagem na noite de 18 de janeiro de 2002, de modo que a perseguição descrita pelos bandidos da Pantanal nunca poderia ter ocorrido – não ao automóvel dele. No fim da tarde daquele dia, Cleiton saiu de casa dirigindo outro carro, um Corsa Sedan, na companhia da mãe e da filha, rumo ao litoral. Seriam, somada a namorada, quatro pessoas, volume incompatível com o número de cintos de segurança da cabine da Dakota. No Corsa Sedan, entretanto, cabiam todos. (...) Para a Polícia Civil de São Paulo, todavia, a história da Dakota vermelha fechou rapidamente o quebra-cabeça. Segundo os investigadores, Celso Daniel fora pego por acaso em meio à maior onda de sequestros já registrado no país, e terminaria morto porque os criminosos se assustaram com a repercussão do caso nos telejornais.
Agora, a verdade dos fatos
Em novembro de 2005 publiquei na revista LivreMercado, da qual era fundador e diretor de Redação, que o empresário Cleiton Calil Menezes existia em carne e osso, morava em São Paulo e tinha hábitos rigorosamente compatíveis com a narrativa dos criminou. Mais que isso. Ele prestou três depoimentos (não menos, como conta jornalista de Veja) à equipe do delegado Armando de Oliveira. O próprio delegado fez a seguinte afirmação: “Quem disse que o empresário não existe está completamente enganado. Além de existir, ele tinha o carro Dodge Dakota vermelho que foi mencionado”. “Além disso -- disse o delegado do DHPP -- “anda com calhamaço de dinheiro, que, embora grande em volume, é reduzido em valores”.
O relato do delegado Armando de Oliveira é esclarecedor sobre os fatos. Diferentemente, portanto, da narrativa do autor do livro sobre o assassinato de Celso Daniel: “O comerciante tinha uma namorada que morava na Baixada Santista. Quase todo o final de semana ele descia a serra. Ele cumpria exatamente o caminho descrito pelos criminosos. Tomava a Avenida dos Bandeirantes, ligava o rádio e aí ouvia o noticiário: se a Imigrantes estava com bom fluxo, ele se dirigia à Avenida Ricardo Jafet. Caso contrário, seguia direto para tomar o destino pela Anchieta. Muito bem: os sequestradores estavam esperando aonde? Sobre o pontilhão, perto da Ricardo Jafet” – conta o delegado.
Mais verdades dos fatos
O delegado fez uma pausa na entrevista que me concedeu naquele novembro de 2005. Ele procura a cópia de um dos depoimentos do comerciante, e prossegue: “Naquele final de semana específico, ou seja, naquela sexta-feira à noite, o que aconteceu? Era aniversário dele. Então, ele iria levar a mãe também para o Litoral, para que lá jantassem os três juntos. Ele, a namorada e a mãe dele. O problema é que ele entendeu que usar a Dakota lá na Baixada para três pessoas seria desconfortável. Por isso, saiu do Ceagesp com a Dakota, foi ao condomínio aonde reside ali próximo e trocou de carro. Ele passou a dirigir um Corsa. E é aí que os criminosos o perderam” -- explicou o delegado do DHPP.
Também perguntei ao delegado naquele final de 2005 o motivo que levou a Polícia Civil a ouvir o comerciante três vezes. O delegado explicou o que a narrativa do jornalista Silvio Navarro jamais registrou, porque ficou no passado de informações enviesadas: “O que me incomodava era o fato de que ele não tinha certeza de que naquela noite de 18 de janeiro desceu ou não com a Dakota. Ele resolveu conversar com a namorada para tirar a dúvida. Basicamente foi isso. Ele foi ouvido meses depois do assassinato do prefeito, mas tínhamos como ponto de honra localizá-lo. Ouvimos ele na primeira reabertura do inquérito, em 2002. Contamos para isso com a inestimável colaboração do DEIC, que investigou a quadrilha como um todo, comandava a equipe de investigadores pelo delegado Edson De Santi. Nossa função era apenas uma parcela da quadrilha. Como se sabe, a Favela Pantanal é uma grande incubadora de marginais e o DEIC tem conhecimento profundo sobre a maneira de eles agirem” – explicou o delegado.
Mais verdades dos fatos
Dois anos depois da entrevista de Armando de Oliveira, do DHPP, entrevistei, também para a revista LivreMercado, o delegado federal Armando Rodrigues Coelho. Ele foi contundente na análise do caso Celso Daniel. Disse que houve casamento entre o Ministério Público e a grande imprensa na condenação de Sérgio Gomes da Silva, o homem que acompanhava o então prefeito de Santo André, na noite do sequestro. Especificamente sobre o comerciante Cleiton Calil Menezes, o delegado federal foi incisivo: “Depois de cogitar que o empresário com quem Celso Daniel foi confundido não existia e ter de entrevistar o comerciante do Ceagesp, o qual costumava transportar dinheiro, não deve ser fácil (para o Ministério Público” admitir que errou” – afirmou.
Uma das fontes de informações de Silvio Navarro para o livro que produziu sobre o assassinato de Celso Daniel foram os irmãos de Celso Daniel. Em fevereiro de 2012, Bruno Daniel Filho foi ao programa Roda Viva e falou sobre o comerciante do Ceagesp. Bruno Daniel disse com a imprevidência de sempre, de quem pegou andando e mal-ajeitado o caso Celso Daniel, que o comerciante não passou de invencionice da Polícia Civil. Desconhecia o irmão do prefeito Celso Daniel não só o conjunto de investigações policiais como a entrevista que fiz com Cleiton Calil de Menezes.
Como obra de ficção, o livro de Silvio Navarro pode ser festejado por todos aqueles que jamais fizeram muita questão de esconder todos os pontos que contradizem a versão de morte por encomenda do empresário Sérgio Gomes da Silva. Como obra pretensamente esclarecedora do caso Celso Daniel, trata-se de associação de flacidez informativa e raquitismo de pressupostos de jornalismo comprometido com os interesses da sociedade.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP