Entrevista Especial

Cidadania local
é tema escolar

VERA GUAZZELLI - 08/11/2004

A ausência de assuntos locais na grade curricular do ensino formal coloca a prática da cidadania numa encruzilhada e leva a importante reflexão sobre o papel da população na construção do poder compartilhado. Sem conhecimento sobre a rua, o bairro e a própria gestão municipal fica difícil inverter o processo de distanciamento que torna o morador participativo apenas em casos extremos ou pontuais.

É óbvia a tese de que as mudanças só virão se as crianças aprenderem desde cedo a analisar as variáveis que influem diretamente na qualidade de vida, mas a linha que separa o ideal do possível salta aos olhos na hora de pôr na prática.

A necessidade de incluir questões locais e regionais no cotidiano escolar é defendida pelo professor da PUC Ladislau Dowbor, especialista em poder local. Ele aborda o assunto nas páginas amarelas de LivreMercado ainda sob o calor do recém-encerrado segundo turno e aproveita para lembrar que normalmente as eleições acabam decididas mais pela imagem do que pela capacidade de os candidatos enfrentar os desafios reais. “O importante é formar jovens capazes de se apropriar da realidade e de cruzar diversos conhecimentos para analisar um problema específico” — é enfático o acadêmico.

Ladislau Dowbor é autor do estudo Informação para a Cidadania e Desenvolvimento Sustentável, no qual utiliza a tradicional hierarquia empresarial para explicar o modelo de gestão pública compartilhada que considera ideal. Com o providencial apoio da didática, o professor costuma dizer que a cidade é uma empresa e que os cidadãos precisam entender que são seus donos. Dowbor é professor titular da pós-graduação em economia e administração da PUC de São Paulo, consultor de diversas agências das Nações Unidas. Também deu aulas na Umesp (Universidade Metodista do Estado de São Paulo sobre planejamento econômico e social.

O senhor afirma que a população está muito desinformada sobre a realidade local e que o fato influi diretamente no exercício pleno da cidadania. Nesse contexto, como o senhor avalia a influência dessa falta de conhecimento no resultado das recém-encerradas eleições municipais?

Ladislau Dowbor — Na falta de informação, o que passa a predominar é o marketing político, a construção e a venda da imagem do candidato. Nos debates, conscientes do desconhecimento por parte da população dos desafios reais, os candidatos tentam passar idéias simples que o eleitor possa fixar com facilidade. Na polarização brasileira, onde perto de 70% dos votos se dividem entre os que escolhem situação e oposição, quem acaba por decidir o processo são os 30% de desinformados, cuja votação está baseada bem mais na adesão afetiva do que em argumentos e visões do que é necessário para a cidade. A eleição do Pitta em São Paulo é um exemplo clássico. Um candidato surrealista, com programa surrealista como o veículo leve sobre trilhos.

Se esse discernimento já é complicado na escolha dos candidatos a prefeito — cargo para o qual sempre converge maior visibilidade —, quando se analisa o universo que envolve a votação de vereadores, a situação piora?

Ladislau Dowbor — O universo de vereadores é assunto que merece capítulo à parte. Talvez uma solução fosse evoluir para sistemas mais participativos e não apenas representativos, como são as câmaras de vereadores. A criação de conselhos de residentes nos bairros para integrar as subprefeituras — como está em implantação em São Paulo — é uma tendência que considero importante.

O senhor tem afirmado com frequência que a falta de conhecimento só será rompida se for possível incluir a cidade no currículo escolar. De que maneira o senhor imagina que essa barreira possa ser vencida por meio da educação?

Ladislau Dowbor — É estranho estudarmos em detalhes a Revolução Francesa e a geografia dos Estados Unidos, mas não termos aulas nas quais as crianças possam entender a estrutura política e social que as cercam. Conhecer a própria cidade, a história, as migrações, as heranças culturais, o potencial econômico, os recursos naturais e a estratificação social local é essencial para que o adulto do futuro entenda o contexto no qual está inserido. Há exemplo em Nova York onde a escola de East Harlem passou a estudar o seu próprio bairro. Um grupo estudou arquitetura — e para isso precisou de geometria —, outro grupo estudou a dimensão social e utilizou estatística descritiva, história e outras ferramentas científicas. Outro estudou o saneamento e os problemas da saúde, precisando de conhecimentos de biologia, química e física para entender os problemas da poluição, e assim por diante. O resultado é uma juventude que passa a entender os problemas e as necessidades do local onde vive, que assimila melhor os ensinamentos porque aprende na prática e passa a ter capacidade de cruzar diversos conhecimentos para analisar um problema e entender a realidade. E, mais importante ainda, formam-se pessoas que se apropriam efetivamente da realidade e se sentem pertencentes à cidade. Constroem-se cidadãos no sentido mais profundo.

Se as crianças aprenderem desde cedo como funciona o Município e as respectivas esferas de poder, a exigência por homens públicos cada vez mais qualificados aumentará naturalmente?

Ladislau Dowbor — Um cidadão consciente não vota no tamanho do sorriso do candidato ou na quantidade de camisetas que ele distribui. Conhecendo os problemas-chave da cidade, os moradores passam a ter propostas e sonhos realistas. O programa de governo deixa, assim, de exprimir a vontade de um candidato e passa a ser da população. Nos sistemas participativos da Suécia e do Canadá, por exemplo, a proposta de governo é da população e não há ruptura violenta de orientações a cada eleição. O vencedor não rompe com o programa do prefeito anterior porque as diretrizes são da cidade e não do candidato. Assim, o processo de desenvolvimento ganha continuidade. Por outro lado, o cidadão consciente tende a exigir muito mais em termos de eficiência tanto dos administradores públicos quanto das empresas em termos de comportamento ambiental e social.

O senhor poderia detalhar os pontos principais do estudo, de sua autoria, que analisa o crescimento do poder local, levando em consideração principalmente as possibilidades da população apoderar-se de informações por meio da evolução tecnológica?

Ladislau Dowbor — Podemos dizer que no Brasil praticamente inexistem sistemas de informação municipal minimamente adequados. Numa empresa, isso obrigaria um diretor a trabalhar sem informações gerenciais, sem planos, sem estatísticas, sem relatórios de situação ou estudos estratégicos. Os sistemas de informação de que dispomos alimentam as publicações do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e os relatórios ministeriais, mas não são organizados de maneira integrada para permitir gestão racional por parte das prefeituras e, muito menos, controle adequado da sociedade civil organizada. Ou seja, temos cidades que são geridas de maneira caótica.

Mas essa gestão caótica não pode ser atribuída simplesmente à baixa cultura de participação popular, já que essa prática é muito recente e faz parte apenas de algumas ideologias partidárias?

Ladislau Dowbor — É importante lembrar que até há poucas décadas éramos uma população dominantemente rural e que no mundo rural cada família resolve os problemas individualmente — o lixo na valeta, a água do poço, o transporte individual e assim por diante. Hoje temos mais de 80% da população em área urbana. A cidade se tornou a unidade básica de gestão social e econômica. Uma casa de família está inserida em teia de redes que envolve o abastecimento de água, a coleta e o tratamento de esgotos, a rede escolar, linhas de transporte e assim por diante. A cidade é um sistema complexo e interdependente, onde o consumo coletivo predomina, e onde, consequentemente, formas integradas de gestão são essenciais. Uma cidade não é uma empresa, onde o dono pode tomar as decisões fechado no gabinete. Os cidadãos são, de certa forma, os donos da empresa chamada cidade e têm de participar do que acontece.

Como, então, o senhor classificaria o entendimento da maioria dos governantes sobre cidadania e regionalidade?

Ladislau Dowbor — Há certa confusão em torno do conceito de globalização, porque as pessoas tendem a considerar que tudo se globalizou. A globalização, na realidade, atinge finanças, informação, mídia, publicidade e um conjunto de produtos considerados mundiais, como automóvel e computador. Mas o essencial das atividades que asseguram nossa qualidade de vida é local: a escola do nosso bairro, a limpeza das nossas ruas, um rio limpo ou não no nosso bairro, a qualidade do hortifrutigranjeiro do almoço, o médico de família. Tudo isso se constitui em bens locais que precisam ser geridos adequadamente de forma descentralizada e participativa. Muitos prefeitos ainda não entenderam o novo paradigma da gestão local, que exige atitude de articulação das forças sociais, de fomento econômico, de inserção de novas tecnologias e de planejamento da vocação econômica.

Nesse caso, o modelo do prefeito predominantemente tocador de obras estaria com os dias contados?

Ladislau Dowbor — Na visão tradicional, o prefeito constrói alguns viadutos, tapa buracos e assegura um pouco de cosmética urbana. Essa visão estreita da gestão local está ultrapassada. Uma iniciativa muito interessante é a do governador Luiz Henrique, de Santa Catarina, que agrupou os seus 293 municípios em conselhos regionais de desenvolvimento com participação equilibrada de prefeitos, presidentes de câmaras e de representantes da sociedade civil. Em São Paulo, a recente criação das subprefeituras com conselhos de cidadãos pode assegurar pela primeira vez uma gestão mais racional. São avanços significativos de uma geração de administradores que aprenderam a inovar, como por exemplo o saudoso Celso Daniel, de Santo André.

Como o senhor avalia a contribuição de Celso Daniel para a regionalidade do Grande ABC?

Ladislau Dowbor — Celso Daniel foi um nome de peso internacional. Ele entendeu o governo como um sistema de articulação dos potenciais locais por meio de redes de parceria. É uma visão moderna e eficiente.

E o grau de influência desses temas locais e regionais nas eleições recém-terminadas, principalmente num Grande ABC onde as experiências consorciadas evoluíram muito pouco diante da necessidade de encontrar caminhos para recuperar as perdas econômicas causadas pela desindustrialização?

Ladislau Dowbor — Celso Daniel teve grande peso nas inovações de gestão pública em Santo André e no Grande ABC e esta região tem outros administradores que souberam introduzir o orçamento participativo. É vital num país desigual como o Brasil realizar estudos de vocação regional e de planejamento de longo prazo, criar agências de desenvolvimento, câmaras setoriais e assim por diante. É interessante lembrar que o Grande ABC tem forte raiz italiana, de gente que trouxe da Europa visões de cooperativas e de democracia que podem ajudar na construção da cidadania e do capital social. As heranças culturais costumam ter peso positivo, assim como têm peso negativo as velhas oligarquias que ainda são resistentes à democratização. A revista Desafios do Desenvolvimento, recentemente lançada no Brasil, mostra que dos 5.560 municípios do País, 1.969 participam de consórcios intermunicipais de saúde e que centenas participam de consórcios em outros setores. O ideal é que a gestão municipal dependa cada vez menos do governo central e se torne mais próxima do cidadão. Mas o caminho para esse estágio ainda é muito longo.

O senhor acredita que o papel centralizador do Executivo vai mesmo dar espaço às articulações da chamada sociedade em rede? Até que ponto poder público e comunidade estão realmente preparados para tomar decisões compartilhadas?

Ladislau Dowbor — Trata-se da questão do ovo e da galinha. Dificilmente se desenvolverão capacidades gerenciais locais se não forem descentralizadas funções e recursos. O governo central pode perfeitamente exigir que as administrações municipais publiquem anualmente relatórios sobre a situação do Município. Não só um relatório contábil para o Tribunal de Contas. Precisamos simultaneamente descentralizar e organizar sistemas de informação; disponibilizar cursos de gestão local para funcionários públicos, sindicatos, organizações da sociedade civil; introduzir o ensino do Município nas escolas para formar uma nova geração informada e exigente. Seria um modelo de gestão com o qual não se resolvem os problemas com uma só bala. Trata-se de construir uma mudança de cultura política, e isto exige visão e ação prospectiva.



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