Entrevista Especial

Descarte do
tortorelismo

DANIEL LIMA - 27/07/2005

É inevitável que, até que o fantasma político-administrativo fortemente personalista de Luiz Tortorello descanse em paz, o novo comandante do Palácio da Cerâmica, médico José Auricchio Júnior, seja contraposto ao dirigente que durante três mandatos quase completos liderou o destino de São Caetano. As diferenças entre um Tortorello ruidoso e um Auricchio discreto são tão fortes que provavelmente psicanalistas precisariam ser requisitados para destrinchar o enigma: como pode o prefeito morto em 17 de dezembro do ano passado ter escolhido para sucedê-lo o prefeito que venceu em 3 de outubro e que assumiu em 1º de janeiro? Talvez a melhor resposta seja acreditar que Luiz Tortorello tenha observado nas características de José Auricchio o pedaço que lhe faltava de comedimento e diplomacia gerencial. 

Seja qual for o balanço psicanalítico-comportamental para encaixar o caso Tortorello-Auricchio na política de São Caetano, o fato é que o prefeito de São Caetano surpreende quem o imaginava irrevogavelmente sob as asas do tortorellismo. Tanto que o rompimento com a família Tortorello, à frente o irmão Antonio de Pádua e o filho deputado estadual Marquinho, não demorou. Uma barra pesada que um sucessor que reunisse as características de composição político-partidária que consagraram José Auricchio teria dificuldades em operacionalizar. 

Nesta entrevista, o jovem prefeito de São Caetano combina série de qualidades que o identifica como personalidade pouco comum na política regional. Esgrime críticas com golpes tão cirúrgicos quanto elegantes. Utiliza linguagem que rompe chavões de gerenciadores públicos conservadores. Não foge dos dramas que afligem uma cidade só aparentemente sem problemas. Não mistifica títulos e estatísticas. Um José Auricchio que, provavelmente, deixaria atônito até mesmo seu patrono, se vivo estivesse. 

Indisfarçavelmente uma grande surpresa da administração pública regional, porque o Grande ABC se acostumou a uma São Caetano de imperadores. Auricchio parece ter um recorte mais apropriado a retirar o Município do conservadorismo, a ponto de lançar no final do mês um conselho formado por representantes da comunidade. 

Considerando-se que São Caetano é a cidade proporcionalmente com o maior número de ricos no Brasil e que tem classes média-alta e média-média também em proporção maior que a média regional e nacional, o senhor observa como desafio encontrar o que chamaríamos de eixo administrativo, entendendo-se essa expressão como planejamento voltado para o atendimento desse perfil econômico-social?

José Auricchio Jr. — Minha administração é completamente voltada à eficiência de gestão. Trabalho o tempo todo com números, pesquisas, análises, planejamento. O estereótipo de ineficiência da administração pública não tem, e não terá em momento algum, a mínima condição de aderência à minha gestão. Não é possível seguir com essa imagem de paquiderme estatal que o Brasil criou e vem mantendo. A administração de São Caetano deve ser enxuta e eficiente tendo como objetivo único a sustentabilidade social, a prestação de serviços de qualidade, os investimentos estruturais, o gerenciamento eficiente e transparente da coisa pública, com a não penalização fiscal do contribuinte. É evidente que o plano de governo, e consequente execução, leva em consideração o perfil da população. Entretanto, já se foi o tempo de se deitar confortavelmente sobre prêmios e índices de Primeiro Mundo. São Caetano tem qualidade de vida, é verdade; tem boa renda per capita. Mas tem problemas, como uma parcela da população que precisa de assistência, de geração de renda. E o Município em si, que enfrenta grande déficit estrutural, foco prioritário nesse governo. Portanto, as classes média-alta e média-média são contempladas pelas políticas públicas, assim como a baixa e alta, especialmente quando a administração enxerga os problemas estruturais como críticos, e desenvolve ações para eliminá-los, proporcionando melhor mobilidade, equipamentos públicos eficientes, corredores comerciais revitalizados, entre outros. São mudanças que atendem a todas as camadas sociais, que preparam São Caetano para enfrentar os desafios de estar inserida numa Região Metropolitana farta de grandes problemas. Assim como tornar mais eficiente a máquina pública, por meio de ajuste administrativo que vem cortando custos e aumentando a capacidade de investimento do Município. São políticas para todas as classes. 

O senhor acredita que o fato de a população de São Caetano ter menor índice de auto-estima do que a população de Diadema, conforme pesquisa divulgada este ano pelo Instituto Brasmarket, deriva supostamente do grau de exigência de uma população econômica e educacionalmente mais graduada?

José Auricchio Jr. — Não se pode desconsiderar o impacto de questões macro na avaliação do cenário mais específico. É preciso contextualizar. São Caetano não é uma ilha que vive alheia aos problemas do Brasil. A política econômica extorsiva dos últimos governos afeta sobretudo a classe média, comprovadamente maioria em São Caetano. Portanto, como todos os brasileiros, essa parcela da sociedade sofreu o maior golpe em sua auto-estima. Por isso, encaro como natural o índice apontado pela pesquisa Brasmarket. Analiso o resultado como uma generalização da insatisfação com o quadro geral do País. Vamos considerar um exemplo: outra pesquisa recente mostrou descontentamento da população na área de saúde. Veja bem, você tem uma classe média que perdeu poder aquisitivo. A família que tinha condições de pagar um plano privado de saúde hoje busca a rede pública. Oferecemos atendimento de alta qualidade, como provam os índices e também a procura de uma clientela de outras cidades. Mas esse público da classe média tem alto grau de expectativa, já que a rede particular tem demanda infinitamente menor e não depende de repasse de recursos públicos de nenhuma natureza. É natural que sinta a diferença.  

O prefeito Luiz Tortorello repôs parte das perdas do ICMS derivado do Valor Adicionado com o uso do que chamamos de guerra fiscal do ISS. O senhor tem prioridades definidas que possam amenizar os efeitos das perdas industriais para se precaver dos efeitos do fim da guerra fiscal no setor de serviços, já que várias empresas voltaram a ter a Capital como sede?

José Auricchio Jr. — A unificação constitucional da alíquota do ISS nos leva a uma reflexão muito importante da estruturação do Município como fonte de atração de novos investimentos. No nosso caso, um Município que tem pequena área geográfica, mas com índices de desenvolvimento econômico e social significativos, deve criar condições para que essa atração efetivamente se transforme em investimentos. Isso no nosso governo está sendo executado por meio de intervenções estruturais e focais. Estruturais quando planejamos obras que contenham enchentes, que melhorem o acesso à cidade, como entradas e saídas em complexos viários. E focais quando revitalizamos corredores comerciais, facilitando mobilidade, implementando ações de segurança pública e sobretudo ofertando boa qualidade de serviços assistenciais à população. Embora enxerguemos que a modificação da vocação da cidade não ocorre na simples transformação via decreto do prefeito. Na verdade é preciso ter continuidade de programas. Não que abandonemos a vocação de industrialização que tivemos até as últimas décadas, mas sim que agreguemos um novo setor a esse perfil. Falo especificamente do serviço de alto valor tecnológico. Principalmente o agregado às atividades industriais. Nunca imaginamos abandonar a atividade industrial; sempre pensamos em vitalizá-la por meio de diferenciação. E é aí que a prestação de serviços tecnológicos se torna fundamental.  

São Caetano, conforme pesquisa do Instituto de Estudos Metropolitanos, tem expressiva marca de empreendedorismo por habitante. É a relação mais elevada da Grande São Paulo. Isso significa que há concorrência exacerbada, com evidentes reflexos econômicos e sociais. É possível reestruturar as relações de oferta e demanda de produtos e serviços ou quem deve decidir essa questão é o mercado?

José Auricchio Jr. — O Poder Público pode criar alternativas para a movimentação do mercado, mas não ser o seu regulador. São Caetano vive um problema, que é a falta de espaço para a criação de novas plantas industriais e comerciais. O projeto do Pólo Tecnológico Cerâmica é o que classifico de alternativa, por buscar vocação econômica que agregue ao perfil industrial e equacione a questão territorial. O centro empresarial vai receber empresas de serviços, tecnologia e indústrias avançadas na última grande área que restou para tal empreendimento, de 360 mil metros quadrados. São empresas de ponta que vão atrair investimentos e empregos à cidade. A Prefeitura está realizando série de intervenções de infra-estrutura na área do projeto e em seu entorno, como duplicação e extensão de vias, obras de contenção de enchentes, entre outras. Além disso, após negociações com a Fiesp, estamos trazendo um posto do Sebrae. O objetivo principal é capacitar os empreendedores locais e evitar a mortalidade das empresas. Apesar de São Caetano viver o problema da pequena e superocupada extensão geográfica, e em consequência possuir população potencialmente consumidora pequena, volto a contextualizar a questão. A concorrência exacerbada e os problemas na relação de oferta e procura são reflexos sobejamente ligados à política econômica dos últimos governos, que onera e não oferece espaço a quem quer empreender, mas somente aos que querem — e podem — viver de investimentos atrelados a juros escorchantes, que esfolam a todos nós. 

Ao assumir a Prefeitura com marcas indeléveis de um antecessor personalista, o senhor se sente na situação de que precisa desmontar um carro com série de avarias mecânicas e de funilaria provocando o menor nível possível de ruído?

José Auricchio Jr. — Nesse início de mandato, as principais questões são a administrativa e a estrutural. Foi necessário fazer ajuste administrativo de grau sensível nos primeiros meses, especialmente no quesito funcional. São ajustes nem sempre saborosos, muito pelo contrário, mas são necessários. Não gosto de usar o termo “reforma administrativa”, e sim “ajuste administrativo”. Tampouco falo em datas. Essas adequações têm hora para começar — e já tiveram início — mas não para terminar. É processo contínuo. Estamos avançando na modernização tecnológica, o que vai permitir mais eficiência e transparência com a adoção, por exemplo, do pregão eletrônico. Vamos inclusive contratar parceiros estratégicos, como o Imes e a Fundação Getúlio Vargas, entre outras instituições, para modernizar definitivamente a máquina administrativa de São Caetano. Outro ponto importante é a criação, já aprovada pela Câmara Municipal, de uma Diretoria de Controle Interno, entre outros mecanismos de controle de gastos que estamos adotando desde o início da gestão, e que seguirão ainda mais rígidas ao longo da administração. A questão estrutural da cidade é outro desafio que estamos enfrentando dia-a-dia. Assumimos uma São Caetano com problemas de mobilidade e verdadeiros nós de infra-estrutura urbana, que demandam intervenções de vários níveis. É preciso admitir que as questões administrativa e estrutural são delicadas e que nem sempre é possível eliminar os ruídos das soluções. Mas meu norte administrativo é de que tudo que for bom para minha cidade e a população será feito. Se fosse para pintar praças, não seria prefeito de São Caetano. 

O senhor compartilha com o pensamento de poucos que pararam para refletir sobre o histórico de Luiz Tortorello no sentido de considerar que a liderança dele era tão expressiva e sufocante que se exauria em si mesma? Traduzindo: que o legado de liderança de Tortorello se foi com ele e que quem quiser espaço político precisa construir com trabalho intenso?

José Auricchio Jr. — Indiscutivelmente o prefeito Luiz Tortorello exerceu liderança política em São Caetano e em toda a região. Mas com sua ausência é natural que novas lideranças surjam ao longo do tempo. Essas serão forjadas com valores indispensáveis, como transparência, seriedade, pluralidade, participação nas questões regionais. Enfim, política não se faz sozinho; se faz em grupo e com respeito e ele. E principalmente à população.  

O Conselho Consultivo que o senhor formulou para compartilhar a administração de São Caetano é contraponto àquele personalismo?

José Auricchio Jr. — O Conselho Municipal de Cidadania e Participação Social será importante braço da administração frente ao Executivo de São Caetano. A questão não é ser contraponto a personalismos, mas assegurar o direito a informações, esclarecer a população no tocante a direitos, obrigações e responsabilidades, propor políticas e diretrizes específicas voltadas ao desenvolvimento econômico e social, planejar e coordenar a execução das atividades relacionadas à área. Fomos buscar inspiração em projetos bem-sucedidos em cidades européias como Madri, na Espanha, e Paris, na França. O Conselho de Cidadania não será foro para discussões inócuas, que saem do nada e chegam a lugar algum; será um espaço onde verdadeiramente se praticará a democracia, com os setores da sociedade civil organizada plenamente representados. As discussões terão foco, com temas agendados. Acredito piamente que será um aliado vital na gestão da cidade. A bandeira é que o Conselho é uma grande ferramenta na manutenção da transparência administrativa. 

O que lhe dá mais dores de cabeça em São Caetano: a oposição petista que há muito sonha em chegar ao Palácio da Cerâmica ou os herdeiros políticos de Luiz Tortorello?

José Auricchio Jr. — Não tenho preocupação exacerbada com a questão oposicionista porque quem perde a eleição tem o direito de fiscalizar. Quem ganha administra; quem perde fiscaliza. Desde que seja uma oposição construtiva para a cidade. Agora, é óbvio que quando se imprime modificações significativas e se cria novos modelos de administração, como estamos fazendo, surgem focos de descontentamentos, que se transformam em focos de oposição. Esses grupos eventualmente já se juntaram e circunstancialmente podem até caminhar juntos. O que para nós é indiferente do ponto de vista de tocar a cidade.

Se tivesse que iniciar o governo de São Caetano agora, depois de seis meses de mandato, o que o senhor evitaria repetir?

José Auricchio Jr. — Procuraria realizar as mudanças de cunho administrativo de forma mais precoce. Mas assim que as promovi, a máquina passou a funcionar de maneira ainda mais acelerada. Hoje, posso avaliar com tranquilidade que compensamos esse pequeno descompasso de tempo.  

Em que nível está o grau de integração institucional do Grande ABC, considerando como tal o comprometimento entre agentes políticos, econômicos e sociais?

José Auricchio Jr. — O melhor possível. Saímos de um passivo preocupante, principalmente no Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, mas hoje os prefeitos da região estão em sintonia. As discussões no Consórcio não têm cor partidária e são absolutamente institucionais. Avançamos muito nesses seis meses. Na Agência de Desenvolvimento também somamos vitórias, com a agregação de novos agentes econômicos e a integração de mais entes aos Arranjos Produtivos Locais, por exemplo. Vejo a necessidade de caminharmos bastante ainda em direção à verdadeira regionalidade. Mas sei que estamos na direção correta.

O senhor acredita em integração econômica do Grande ABC sem consolidação da integração institucional?

José Auricchio Jr. — Não. Para mim, a integração econômica é consequência da integração institucional. Por isso tenho trabalhado nesse sentido ao lado dos prefeitos no Consórcio e como diretor-geral da Agência de Desenvolvimento. Porque, mais do que consequência, integração institucional e econômica se confundem, ainda mais numa região tão conurbada quanto a nossa.



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