O toque conceitual que ainda envolve o termo governança
corporativa ganha importante didatismo nas páginas amarelas deste mês. O
consultor Marco Muzilli desmistifica assunto ainda pouco palatável fora das
rodas de especialistas em gestão empresarial e mercado de ações. Traduzida para
o bom português, governança corporativa pode ser entendida como o recorte bem
acabado do tão perseguido trabalho em equipe. Nesse caso específico, está
diretamente relacionado aos níveis de gerenciamento e comando e mostra sutil
diferença entre estar de fato no comando de uma empresa e simplesmente ser dono
de um cargo.
A explanação do entrevistado convida à reflexão sobre os
fatores capazes de levar corporações a resultados financeiros satisfatórios e
que pontuam governança corporativa em abordagens pós-modernas e outras, nem
tanto. Ao falar sobre a necessidade de integração entre acionistas,
proprietários, executivos e auditores internos e externos, entre outros níveis
hierárquicos de escalão superior, Muzilli joga lenha em conhecida fogueira de
vaidades que acredita estar, paulatinamente, se abrandando.
Também fala da necessidade de mesclar experiência e
juventude no quadro de colaboradores e da dificuldade de patrocinar esse
equilíbrio diante do excesso de mão-de-obra e da prática ainda comum de
substituir profissionais com mais tempo de casa e salários mais altos por
outros que aceitam ganhar menos para entrar ou retornar ao mercado de trabalho.
Marco Muzilli também mostra como a governança corporativa
pode contribuir para amenizar outro tipo de choque de gerações: a sucessão em
empresas familiares. Ele garante que a possibilidade de contar com cabeças
pensantes independentes é fundamental para evitar conflitos entre proprietários
e herdeiros. Assim, empresas predispostas a adotar a prática atravessam sem
traumas momentos que antecedem troca de comando.
Formado em Ciências Contábeis, Muzilli iniciou carreira de
auditor independente em 1963. Atuou em corporações de capital nacional e
estrangeiro e foi sócio de auditoria do Grupo de Financial Services da KPMG. É
secretário da Câmara de Governança Corporativa do Ibracon (Instituto de
Auditores Independentes do Brasil) e integra o Grupo de Estudos para a
Auditoria do Conselho Federal de Contabilidade.
O que é governança corporativa e como esse
conceito pode contribuir para melhorar a gestão das empresas, principalmente na
esfera globalizada de negócios que, além de qualidade e competitividade, exige
cada vez mais transparência das organizações?
Marco Muzilli — Os especialistas definem governança
corporativa como o sistema pelo qual as empresas são dirigidas e controladas
por meio de rede de relacionamentos que envolve acionistas, proprietários,
conselho de administração, diretoria, auditorias externa e interna e o conselho
fiscal. As boas práticas de governança corporativa têm a finalidade de aumentar
o valor da empresa, facilitar o acesso ao capital e contribuir para a
perenidade da organização.
Poderíamos dizer ainda que, independentemente da busca de
alternativas de financiamento para o crescimento da empresa, é necessário
lembrar dos stakeholders (denominação em inglês para partes interessadas), ou
seja, clientes, fornecedores, credores, empregados, governo, opinião pública.
Esse grupo representa força muito importante para a consolidação da imagem e
reputação da empresa. Nesse sentido a direção da empresa deve caminhar para a
transparência e prestação periódica de contas aos proprietários e, obviamente,
aos stakeholders.
Teoricamente a governança corporativa parece estar ao
alcance apenas de grandes organizações, principalmente as de capital aberto que
utilizam o conceito para ganhar pontos nas bolsas de valores. As empresas de
menor porte geralmente não estão divididas em tantos níveis hierárquicos e
administrativos e, com isso, as decisões acabam quase sempre nas mãos do
proprietário. É o dono que compra, vende, vai atrás de crédito e, se for
preciso, ainda coloca a mão na massa na linha de produção. Para esse grupo, que
representa a realidade da maioria dos empreendimentos do Grande ABC e do País,
é possível trabalhar com uma ferramenta de gestão tão abrangente?
Marco Muzilli — A aplicação integral dos conceitos de
governança corporativa se concentra com mais ênfase nas grandes organizações.
Isso não quer dizer, porém, que organizações de menor porte devam deixar o
assunto de lado. Pelo contrário. Todas as empresas que ambicionam crescer e
criar reputação positiva no mercado têm de estar atentas à implantação
paulatina dos conceitos de governança corporativa.
Uma boa dica é ter predisposição para aceitar a participação
de especialistas. Gente que pode enxergar o negócio de forma mais abrangente do
que os que estão envolvidos com a rotina diária do trabalho. Mesmo assim, não
se pode perder a visão pragmática e resvalar para a falta de objetividade.
Empresas de menor porte que pretendem incorporar o conceito precisam,
sobretudo, estabelecer prioridades. Isso quer dizer dar um passo por vez e
implantar modificações que realmente tenham possibilidade de dar certo e que
estejam totalmente conectadas com as diretrizes do negócio.
A necessidade de profissionalizar o alto escalão não é novidade,
principalmente quando se fala de organizações familiares. A governança
corporativa coloca novos ingredientes nesse cenário ou referenda de forma mais
atualizada, o que há décadas foi traduzido pela frase pai rico, filho nobre,
neto pobre?
Marco Muzilli — A grande chave na sucessão familiar é a
participação de cabeças pensantes independentes, gente sem grau de parentesco
com os que conduzem o dia-a-dia dos negócios. Essa assessoria profissional traz
implícita a necessidade de debater idéias, trocar opiniões e chegar a consenso
antes de adotar novas estratégias. Também afasta um pouco a velha prática da
decisão unilateral. O dono quer é assim e é assim que vai ser feito, sem
ninguém com coragem de dizer que o rei está nu. A profissionalização do comando
também permite acesso às novidades do mercado brasileiro e mundial. É uma
mescla de experiências que traz excelentes resultados e serve de anteparo para
o choque de gerações que geralmente se dá entre fundadores e herdeiros nos
momentos de transição de comando nas empresas de origem familiar.
Especialistas e profissionais com experiência
comprovada custam caro e as empresas de pequeno e médio porte nem sempre têm
como pagá-los. Por outro lado, precisam de credibilidade e transparência para
se posicionar com segurança em mercado cada vez mais competitivo. Como o senhor
aconselharia uma empresa de proporções médias a encontrar caminhos da
governança corporativa?
Marco Muzilli — Um dos caminhos recomendados é constituir
comitês e, sempre que possível, mesclar elementos da empresa com especialistas
independentes. Dessa maneira se obtém o melhor das duas situações: a
experiência interna baseada em muitos anos de atuação numa mesma empresa e o
conhecimento externo adquirido de experiências colhidas em várias empresas. As
duas características criam simbiose próxima do ideal porque permitem preciosa
troca de informações que ajuda a correr menos riscos e a maximizar o potencial
da empresa. Sob o ângulo do imediatismo, esse tipo de profissional pode custar
caro, mas é necessário analisar o custo-benefício e os ganhos que a gestão
profissionalizada traz a médio e longo prazos.
O senhor coloca em vários artigos que governança
corporativa só será aplicada com sucesso se houver pessoal adequado no processo.
Como é possível fazer esse ajuste sem ferir suscetibilidades dos diversos
agentes que compõem os quadros de comando de uma corporação? Como
compatibilizar também o interesse e principalmente o livre arbítrio de
acionistas, diretoria, conselhos e auditores, entre outros departamentos-chave
do comando empresarial?
Marco Muzilli — Dentre os conceitos importantes que todas as
sociedades empresariais devem implantar à medida que começam a crescer, estão o
treinamento e o sistema de avaliação de desempenho acompanhados de plano de
melhoria que precisa atingir também os escalões principais. É imprescindível
que dirigentes estejam predispostos a fazer mudanças, se necessário, e a darem
o exemplo, participando também do processo de treinamento e de avaliação
periódica. A atitude terá excelente repercussão. Quando dirigentes procuram
conhecer a visão dos subordinados sobre gestão dos negócios e principais
desafios da empresa, o grau de comprometimento aumenta sensivelmente. Uma forma
de fazer essa análise e obter subsídios concretos é os principais dirigentes
saírem de vez em quando para bate-papo com representantes dos diversos setores
da empresa, do tipo café com o presidente, ou ainda por meio da contratação de
pesquisa de clima organizacional.
O senhor também costuma chamar a atenção para outro
tipo de choque de gerações, ou seja, a dificuldade de mesclar juventude e
experiência no comando profissional de empresas e todos os problemas
característicos desse tipo de convivência. Existe preocupação das empresas
brasileiras de juntar velhos e novos, ou ainda prevalece o mandamento da oferta
e da procura? Na atual conjuntura econômica não é difícil encontrar
profissionais experientes substituídos por gente mais jovem, muitas vezes
recém-formada e que aceita ganhar menos.
Marco Muzilli — No Brasil temos dois aspectos que colaboram
muito para o aproveitamento dos jovens em detrimento dos mais experientes. O
sistema de reajuste periódico de salários acarreta espécie de bola de neve. De
um lado torna cada vez mais oneroso o salário dos mais antigos. De outro, nem
sempre o empresário consegue repassar essa despesa ao preço final do produto.
Há também abundância de mão-de-obra, principalmente jovem e inegavelmente mais
barata. Além disso, existe um terceiro fator, embora menos relevante: muitos
empresários dão preferência a jovens por acreditarem que dominam com mais
facilidade modernas ferramentas de informática e por serem mais fáceis de se
amoldar às mudanças do mundo moderno. Esses fatores pesam muito no quesito
custo. Por isso, a valorização de profissionais mais experientes vem ocorrendo
de forma lenta. Muitos estão fora do mercado de trabalho e aceitam se
reempregar com níveis menores de remuneração. Essa reversão ocorre também pelo
novo posicionamento desses profissionais mais experientes que agora, talvez
premidos pelas circunstâncias, assumem postura mais pró-ativa e de aceitação de
novos desafios.
Como essa prática compromete tentativas de implantar a
governança corporativa e quais as consequências para o futuro da empresa nesses
tempos em que os especialistas afirmam categoricamente que recursos humanos
fazem toda a diferença?
Marco Muzilli — A melhor escola de aprendizado é a prática.
Assim, qualquer estratégia seguida pela empresa passa pela prova dos nove, que
é a verificação dos resultados. Se não forem bons, forçam mudança de rota
inclusive no que diz respeito aos recursos humanos. Cultura corporativa é muito
importante. É claro que muitas empresas com boa governança corporativa são mais
previdentes e não visam o imediatismo. Ao contrário, seguem estratégias de
longo prazo. Buscam o equilíbrio e a preservação dos valores da organização.
Nesses casos, a lucratividade é calibrada para andar junto com
sustentabilidade.
É possível traçar paralelo entre o sucesso de empresas
que realmente valorizam os profissionais e aquelas que analisam os funcionários
levando em conta apenas as planilhas de custo?
Marco Muzilli — Com certeza, iremos encontrar nas empresas
bem sucedidas bons exemplos de valorização de profissionais. Nesses locais há
cobrança, mas também existem estímulos: há investimento em treinamento e
sistema de avaliação periódica acompanhada de aconselhamento ou plano de
aperfeiçoamento. Existe ainda premiação pelo cumprimento ou ultrapassagem de
metas estabelecidas. Entre os vários exemplos positivos poderia citar a
política de recursos humanos do conglomerado financeiro Itaú. Quanto às
empresas que andam mal das pernas, e existem muitas, não tenho dúvidas em dizer
que apresentam deficiências visíveis no gerenciamento de funcionários.
Governança corporativa é apenas mais um modismo ou se
tornou essencial como ferramenta de gestão?
Marco Muzilli — No campo empresarial os modismos refletem,
na verdade, as necessidades de adaptação a um mundo cada vez mais complexo e
especializado. Assim e em razão da necessidade ou ainda por questões ligadas à
sucessão, os proprietários, sejam fundadores ou herdeiros, têm de compartilhar
a administração com profissionais promovidos internamente ou recrutados no
mercado para garantir o crescimento econômico de suas empresas. Outro aspecto
importante está diretamente relacionado ao posicionamento no mercado. As
empresas só são respeitadas se demonstrarem ser modernas, lucrativas e ao mesmo
tempo seguras e éticas.
Como o senhor estabeleceria a relação entre governança
corporativa e responsabilidade social, visto que a maioria das empresas ainda
relaciona as ações de capitalismo solidário ao assistencialismo e à caridade?
Marco Muzilli — Cresceu muito a exigência de investidores,
principalmente institucionais, e dos stakeholders com práticas socialmente
responsáveis, de preferência, que comecem no ambiente interno das organizações.
As empresas que preservam o meio ambiente e tem planos de assistência social
são muito valorizadas, mas se tiverem administração transparente, legal e forem
consideradas éticas nas relações de negócios e trabalho certamente terão
conceito ainda melhor. E nesse contexto, a governança corporativa funciona como
suporte
indispensável.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira