O jornalista Silvio Navarro produziu o livro sobre o assassinato de Celso Daniel com a premissa encalacradora de que se tratou de crime encomendado em conexão com os desvios de dinheiro da Administração petista em Santo André. Navarro não citou uma vez sequer o então deputado federal e empresário Duílio Pisaneschi, adversário petista dos anos 1990. No meu caso, ao longo de mais de uma centena de textos sobre o caso Celso Daniel, Duílio Pisaneschi aparece apenas uma vez. Não merecia mais que isso, porque não participou das investigações, pelo menos oficialmente. Entretanto, descobri uma joia nos arquivos que provocaria indigestão interpretativa àqueles que enquadram o crime no figurino rocambolesco de encomenda politico-administrativa.
O que chamaria de grande mancada da força-tarefa do Ministério Público Estadual para estrangular as investigações policiais que concluíram ter sido Celso Daniel assassinado por um bando de pés de chinelos foi a enfática argumentação inicial de que o titular do Paço Municipal de Santo André não sabia de absolutamente nada sobre o que chamaram de roubalheiras da administração petista.
Mais tarde, como se sabe, o MP abandonou a teoria de que Celso Daniel desconhecia completamente a ação dos chamados quadrilheiros no entorno do Paço Municipal e avançou em direção a um terreno menos nobre, de que o petista sabia o que estava acontecendo nos escaninhos do Paço Municipal mas flexibilizava o critério ético e moral em nome do partido, que necessitava de recursos financeiros para chegar à Presidência da República. Ainda mais tarde, diante de informações da diarista do apartamento de Celso Daniel, que disse ter encontrado sacos de dinheiro no local, o Ministério Público passou a admitir que o então prefeito de Santo André participaria arrecadação de recursos para o PT em nível estadual e federal, mas reiterava a argumentação inicial de que teria se rebelado contra desvios a bolsos particulares.
Ou seja: sempre que era colhido em flagrante escorregadela investigativa, a força-tarefa do MP dava um jeito de consertar, ou de tentar consertar o estrago. Beneficiados pelo cala-boca do governo do Estado aos comandados da Polícia Civil de São Paulo, proibidos de explicar as operações que constataram ter sido o crime algo fortuito, sem qualquer relação com a Administração Pública de Santo André, os promotores criminais tornaram as declarações seguidamente contestadas em verdades absolutas.
Lengalenga da virgindade
Só por esse conjunto conflitante de avaliações as investigações do Ministério Público Estadual, mais propriamente do Gaerco em Santo André, já mereceriam ressalvas que as colocariam no acostamento da credibilidade. A teoria de que o primeiro amigo de Celso Daniel, Sérgio Gomes da Silva, preparou a armadilha que culminaria no assassinato do prefeito, ruía a cada nova temporada de conclusões policiais. A lengalenga de virgindade administrativa de Celso Daniel sobretudo na área de transporte coletivo, foco de atuação do MP, perdera viscosidade. Os irmãos há muito tempo afastados do prefeito, Bruno Daniel Filho e João Francisco Daniel, trataram de sensibilizar a opinião pública na empreitada de fazer de um crime comum crime político-administrativo.
Aquelas milhares de peças de dominós que aparecem desmoronando no filme Beleza Oculta, que está em cartaz, poderiam ser rebocadas como simbologia das imprecisões do MP que as forças policiais, experientes e dedicadas a elucidar o crime, trataram de tipificar. Afinal de contas, perguntaria o leitor, onde entra o então deputado federal petebista Duílio Pisaneschi nessa história?
Na edição de 28 de junho de 2000, portanto um ano e meio antes do assassinato de Celso Daniel, Duílio Pisaneschi ocupou o alto da página interna de Política do Diário do Grande ABC. O título da matéria era instigante: “Duílio denuncia vereadores”. Na chamada linha fina, que é o complemento breve de uma manchete, qualquer que seja a manchete, o jornal destacava: “Deputado acusa parlamentares de receber benefícios escusos”.
A acusação de Pisaneschi
Vamos reproduzir integralmente aquela reportagem do Diário do Grande ABC, assinada pela jornalista Gislayne Jacinto:
O deputado federal Duílio Pisaneschi (PTB-Santo André) acusou alguns vereadores da coligação que o apoiou na última eleição municipal (1996) de ter recebido "benefícios escusos" para votar favoravelmente as contas do prefeito Celso Daniel rejeitadas pelo TCE (Tribunal de Contas do Estado). A acusação foi feita segunda à noite durante a inauguração do escritório político do candidato a prefeito de Santo André pelo PPB, Celso Russomanno. "Tive uma decepção muito grande na eleição que passou. Não escondo, não deixo de falar. A nossa coligação elegeu 13 vereadores. A primeira votação que teve apreciou as contas rejeitadas do prefeito Celso Daniel e esses caras votaram a favor porque tiveram benefícios escusos", disse o deputado para as cerca de 500 pessoas que lotaram o escritório de Russomanno.
Sem mencionar os nomes daqueles que, segundo ele, receberam benefícios escusos, o deputado livrou das acusações os vereadores Luiz Manssur (PPB), Luiz Zacarias (PTB), André Sanches (PPB), Dinah Zekcer (PTB), Joaquim dos Santos (PTB) e o Franco Masiero (PTB). "Vamos eleger vereadores que possamos cobrar e continuar cobrando. Não essa Câmara que estava aí, onde 70% votava contra o povo. Vamos ter de limpar esses daí", afirmou o deputado. O deputado também fez críticas à administração do prefeito Celso Daniel (PT) que tentará a reeleição neste ano. "O nosso adversário está no Paço Municipal. É como fala o caipira: aquela tiririca, onde dá, não nasce mais nada. Eles (os petistas) já deixaram um rastro muito triste na administração de 1988 a 1992, deixando uma dívida para esta cidade impagável", disse.
Pisaneschi acusou também a administração de endividar o Semasa. "Eles quebraram com o Semasa, uma empresa que nosso prefeito Brandão (Newton Brandão) e o Ajan (Ajan Marques, superintendente do Semasa na administração Brandão) deixaram com um caixa de R$ 28 milhões e deve hoje R$ 155 milhões. Se um de nós deixar de pagar a conta do Semasa por 30 dias cortam a água. Faz um ano que não pagam a Sabesp, para fazer plantação de coqueiro, que pagam como palmeira imperial -- mas é coqueiro --, e metade está bichada e não vai vingar", disse.
Maioria comprada
As declarações do então deputado federal Duílio Pisaneschi referiam-se claramente à maioria obtida pela Administração Celso Daniel no Legislativo de Santo André em 1997, ano seguinte à vitória eleitoral do petista em Santo André. E foi reiterada naquele 2000 durante a campanha eleitoral da qual Duílio Pisaneschi e muitos outros conservadores de Santo André apoiaram ostensivamente um “forasteiro” para disputar com Celso Daniel.
Tratou-se aquela estratégia eleitoral de oportunismo puro. Primeiro porque colidia frontalmente com os pressupostos do grupo “Frente Andreense”, que sempre chamei de “Frente Andreense do Atraso”, o qual dedicava total restrição a estrangeiros em Santo André. Entenda-se por estrangeiro todos que não tinham história concreta no Município.
Para a Frente Andreense, principalmente, quem houvesse nascido em Santo André teria vários metros de vantagem na corrida rumo a cargos importantes. Duílio Pisaneschi contou sempre e sempre com o apoio do Diário do Grande ABC, entre outros motivos porque era amigo particular do diretor de Redação Fausto Polesi, um dos membros da Frente Andreense.
Traduzindo tudo isso, o que quero dizer sem rodeios é que a Administração de Celso Daniel já estava estabelecida na praça de Santo André como beneficiária de esquema de corrupção mais que tolerado, porque histórico, envolvendo o setor de transporte coletivo. Duílio Pisaneschi tinha participação no mercado de transporte coletivo, entre outras atividades, e conhecia exatamente como funcionavam os mecanismos de financiamento eleitoral. Salvo exceções, empresas de transporte coletivo são espécies de empreiteiras nas campanhas eleitorais municipais.
Dinheiro tradicional
Qualquer dono de restaurante mais antigo e frequentado por políticos no passado – e também discretos garçons – sabe que as relações entre o Poder Público e magnatas do setor de transporte coletivo jamais tiveram como leitura e prática obrigatórias algum manual de conduta avalizado pela Igreja Católica.
Era comum – ouvi muitos relatos sobre isso – o passar de pacotes de dinheiro sob as mesas dos comensais. Em algumas situações não havia nem muita cerimônia em tentar disfarçar a operação compensatória que, mais tarde, a reboque do assassinato de Celso Daniel, foi denunciada como ações retaliatórias pela Família Gabrilli numa estranha posição tomada semanas depois do sepultamento do prefeito. Tudo isso muito bem concatenado para conduzir as investigações do Ministério Público Estadual de Santo André ao campo do assassinato por vingança.
Celso Daniel, segundo essa versão, fora vítima de uma conspiração porque, sempre segundo declarações dos promotores criminais, descobrira que estavam a transformar a Administração num escândalo de propinas.
A acusação do MP não só limpava a barra dos empresários do setor de transporte que durante anos e anos praticaram o delito de recompensar o Poder Público pelos contratos de concessões como também demonizava exclusivamente os então empresários do setor de forma seletiva.
Os vereadores de sustentação ao governo Celso Daniel viraram a casaca por motivos espúrios, segundo Duílio Pisaneschi. Só faltou dizer de onde saiu o dinheiro para financiar a mudança. Duílio Pisaneschi sabia o que estava a declarar, mas essa informação não foi levada em conta durante as investigações do Ministério Público Estadual em Santo André. Afinal, a versão confirmaria o que todos sabiam: o PT fazia da Prefeitura de Santo André algo apenas mais estruturalmente sofisticado que antecessores, de outras agremiações, consolidaram ao longo de décadas. E Celso Daniel tinha conhecimento do esquema. Duílio Pisaneschi reunia razões de sobre ao referir-se às operações escusas que levaram o petista a dar um drible nos resultados eleitorais. Quando venceu nas urnas em 1996, Celso Daniel defrontou-se com uma maioria de vereadores eleitos pela oposição.
Uma roda antiga
A narrativa do jornalista Silvio Navarro, editor do site da revista Veja, também peca porque ignora que não foi o PT a inventar a roda da corrupção no setor de transporte coletivo. Apenas a aperfeiçoou num sentido programático de reforço ao caixa geral em busca do desembarque em Brasília.
Transformar desvios administrativos em matéria-prima do assassinato de Celso Daniel é uma anedota que só não foi jogada na lata do lixo da história porque sempre existirão especulações em situações análogas, quando um politico de realce é morto e há fundas intenções de tornar o enredo cinematográfico.
Estava a esquecer o motivo que me levou a citar o ex-deputado federal Duílio Pisaneschi numa única matéria do caso Celso Daniel. A inclusão de Pisaneschi foi resultado da tentativa da força-tarefa do MP em Santo André desqualificar o depoimento confuso de Sérgio Gomes da Silva à Polícia, logo após o sequestro de Celso Daniel. Vejam o que escrevi na edição de agosto de 2006 (portanto há quase 11 anos) da revista LivreMercado:
Os depoimentos de Sérgio Gomes da Silva provavelmente tenham sido mesmo mais contraditórios do que pareçam quando vistos com a frieza da cronologia superada. Quem em sã consciência poderia imaginar que alguém em circunstância semelhante ou menos grave reagiria de forma emocional diferente? Estudos neurológicos traduzem o que se passa na mente de quem vive situação semelhante. Dispomos de depoimento do ex-deputado federal Duílio Pisaneschi ao jornal Diário do Grande ABC três horas depois da tentativa de roubo na qual foi envolvido. Pisaneschi confessou — três horas depois, vejam só! — que não conseguia explicar os desdobramentos que culminaram na morte de um dos assaltantes. Imagine-se então o bombardeio do qual foi vítima Sérgio Gomes quando os sequestradores decidiram abalroar o veículo que dirigia. Quantos relatos semelhantes não constariam de inquéritos policiais? Esperar de um homem vitimado pela surpresa e pelo arrebatamento de seu melhor amigo o sangue frio e a precisão de informações de um videoteipe editado é subestimar a psicanálise. Provavelmente se se comportasse de forma linear, fria e correta no depoimento, Sérgio Gomes despertaria o mesmo tipo de desconfiança do relato confuso de quem estava emocionalmente abalado. Por que teria sido calculista numa situação de pânico? Quem prepara uma cilada para o melhor amigo não estaria psicologicamente pronto para relato inquestionável, respostas certeiras, em vez de embrenhar-se em tropeços mentais e cognitivos? Sérgio Gomes da Silva estava tão abalado no depoimento prestado à Polícia Civil na madrugada de 18 de janeiro que até trocou a cor e o tipo da calça usada por Celso Daniel. Com isso, sugeriu a possibilidade de substituição de roupa entre o período que separou o arrebatamento do prefeito e a morte, pormenor que induziria à tese de crime de encomenda, não ocasional. Só mais tarde, depois de muita especulação, sofisticados exames laboratoriais da Universidade de São Paulo confirmaram que o Celso Daniel encontrado morto vestia a mesma calça jeans azul com que deixou seu apartamento horas antes de jantar em São Paulo, em cujo restaurante as imagens do encontro com Sérgio Gomes foram resgatadas por especialistas. Por que haveria Sérgio Gomes da Silva de criar uma confusão daquelas? Para, pateticamente, incriminar-se? A mente humana — basta ouvir especialistas, basta ouvir Duílio Pisaneschi, basta ouvir quem já foi vítima de assaltantes e sequestradores — entra em curto-circuito de lucidez, discernimento e sensatez quando colocada em xeque de forma traumática – escrevi em agosto de 2006.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP