Caso Celso Daniel

Versão farsesca da morte
do prefeito vira livro (12)

DANIEL LIMA - 30/08/2017

Não foram poucas as páginas que o jornalista Silvio Navarro -- autor de “Celso Daniel, Politica, corrupção e morte no coração do PT” -- dedicou às supostas mortes misteriosas que povoam o imaginário popular no caso Celso Daniel.  Além de ter reservado um capítulo inteiro a Dionísio Severo de Aquino e ao médico legista Calos Delmonte, em versões já esmiuçadas nesta série, o autor procurou dar veracidade às demais testemunhas que teriam sido vítimas de conspiração. 

Dar veracidade não significa necessariamente que Silvio Navarro tenha afirmado categoricamente que as supostas mortes foram encomendadas por terceiros diretamente relacionados aos interesses do PT. A subliminaridade prevalece sempre, a partir do próprio título do capítulo, que faz assertiva a “mortes misteriosas”, as quais, em larga margem, não estão caracterizadas na narrativa do autor do livro. 

Nada, entretanto, que deixe de submeter os leitores menos atentos a conclusões enviesadas. Sobretudo porque na maioria dos casos a compra de um exemplar com direcionamento incriminador imposto por Silvio Navarro encontraria mais leitores interessados em um relato que corresponda à massiva conclusão de que haveria conexão de irregularidades administrativas na Prefeitura de Santo André e o assassinato de Celso Daniel. 

Reproduzimos na sequência trechos do livro. Em seguida, as explicações que desmontam mais essa peça de ilusionismos interpretativos: 

 A polícia dava o sequestro e o assassinato do prefeito como equacionados. Nos últimos 14 anos, no entanto, uma série de mortes faria com que o caso Celso Daniel – repisado em diversas frentes de investigação – se convertesse num roteiro de cinema. Um personagem que atiça a mística é o garçom do restaurante Rubaiyat, o jovem que serviu à mesa o prefeito na noite do arrebatamento, Antônio Palácio de Oliveira. Quando foi morto, pilotava sua moto Honda (...) pela Avenida Águia de Haia, na periferia paulistana – era 1h40 do dia 8 de fevereiro de 2003. Ao se notar perseguido por dois homens a bordo de uma moto Yamaha Tenéré branco, ele acelerou, mas acabou alcançado poucos metros depois. Como resistiu à ordem para que estacionasse imediatamente, foi golpeado com um chute e arremessado contra um poste. Morreu na hora. 

Mais trechos do livro 

 (...) Paulo Henrique da Rocha Brito foi a única testemunha ocular da morte de Antônio. A polícia, porém, não conseguiu ouvi-lo a tempo, morto vinte dias depois, com um tiro pelas costas, segundo informou a viúva. (...) Tudo o que se sabe é que seu assassino fugiu numa moto azul. A suspeita recaiu sobre dois menores, conforme conclusão policial. O crime teria sido motivado por vingança, algo relacionado à conduta de menores infratores dentro da Febem, onde a vítima trabalhava – o que não foi apurado. 

Mais trechos do livro 

 O jovem Iran Rédua, funcionário da empresa Serviço Funerário da Serra, que recolheu o corpo de Celso Daniel em Juquitiba e foi o primeiro a reconhecer o rosto do político, acabaria morto, a tiros, no dia 23 de dezembro de 2003, quando saia de um aloja no bairro de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Um amigo viu a cena e reconheceu o criminoso, que, no entanto, permaneceria foragido por mais de dois anos. No dia 21 de fevereiro de 2006, mais de quatro anos depois da morte de Celso Daniel, o delegado Armando de Oliveira Costa Filho, convocou jornalista para uma entrevista na sede do DHPP (...) a fim de apresentar o preso Alexandre de Almeida Moraes (...) responsável pela morte de Iran. E fez um anúncio: “Definitivamente, não há nenhuma relação entre esse crime o assassinato do prefeito de Santo André”. (...) Para a polícia, Iran fora executado numa disputa por território comercial. 

Mais trechos do livro 

 (...) Otávio Mercier tinha 43 anos e atuava, havia 23, como investigador do Departamento de Narcotráfico (Denarc) quando morreu num tiroteio na alameda Joaquim Eugênio de Lima, na região dos Jardins, em São Paulo, em 5 de julho de 2003. Acompanhado pela esposa, chegava de uma festa quando se deparou com um grupo à sua espera na portaria do Edifício Montes Claros, na alameda Santos, onde morava. Os homens vestiam coletes similares aos da Polícia Federal. Mercier estacionou seu moderno Audi – carro incompatível com sua carreira profissional – em frente ao prédio e iniciou um diálogo com os falsos agentes. Foi rendido por eles, levado a seu apartamento e amarrado junto com a mulher e o porteiro. Os bandidos exigiam que entregasse drogas e dólares, e fugiram levando uma maleta de trabalho. A esse respeito o então diretor do Denarc, Ivaney Cayres de Souza, afirmou que o investigador tentava se disfarçar de traficante para prender um bando, e que provavelmente conhecia um dos algozes. (...) Logo após a fuga dos criminosos, Mercier conseguiu se desamarrar rapidamente e, armado, saiu em busca do grupo. Na tentativa de capturar o bando, foi baleado no peito e no rosto. O socorro, ágil, ainda o fez chegar com vida ao Hospital das Clínicas, mas ele não resistiu.  

Mais trechos do livro 

 A ligação de Otávio Mercier com o assassinato de Celso Daniel remete a um dos mais controversos capítulos das investigações, episódio que provocou uma queda de braço sem precedentes entre o DHPP e o Ministério Público, e que ampliou a rivalidade interna na própria Polícia Civil do Estado. Em janeiro de 2002, pouco antes do assassinato do prefeito de Santo André, Mercier trocou telefonemas com um detento, encarcerado num presídio de Guarulhos, cujo nome até hoje provoca faíscas entre promotores, delegados e advogados dos réus do homicídio do político petista. Trata-se de Dionísio de Aquino Severo. Para os promotores e para os primeiros delegados que se debruçaram sobre o caso, Dionísio é a chave do sequestro de Celso Daniel, escreveu o jornalista Silvio Navarro. 

A verdade do caso

Houvesse tomado o cuidado de se informar melhor, o jornalista Silvio Navarro não teria organizado narrativa paralela. Leiam os trechos principais da matéria que publiquei originalmente na revista LivreMercado, da qual era diretor de Redação, edição de 5 de novembro de 2006, sob o título “Mortes sem qualquer relação com o caso”: 

 Dionísio, malabarista que fugiu da Penitenciária de Guarulhos. Sérgio Orelha, marginal que dividiu apartamento com Dionísio depois da fuga. O garçom Antônio Palácio de Oliveira, que serviu o último jantar de Celso Daniel. Paulo Henrique Brito, testemunha da morte do garçom. Otávio Mercier, investigador de Polícia que teria recebido telefonema de Dionísio da cadeia do bairro de Belém, em São Paulo. Iran Moraes Redua, agente funerário que recolheu o corpo de Celso Daniel. Para o delegado titular do DHPP da Polícia Civil de São Paulo, nenhum desses casos tem qualquer relação com o assassinato do então prefeito de Santo André. O delegado Armando de Oliveira fala com a segurança de quem acompanhou atentamente as investigações e se manteve calado durante todo o tempo por força de decisão do segredo de Justiça requerido pelo juiz de Itapecerica da Serra, que preside o inquérito.(...). Ele e sua equipe foram sistematicamente colocados na desconfortável zona de desconfiança.

Mais verdade do caso 

 (...) O investigador Otávio Mercier procurou a própria morte, segundo o delegado Armando de Oliveira. Ele chegava ao prédio em que morava por volta das 6h com sua mulher quando foi rendido por dois assaltantes, que os conduziram para o apartamento, juntamente com o porteiro. “Eles foram imobilizados com fios de telefone e, em seguida, os dois criminosos furtaram o que bem entenderam do apartamento e desceram para a rua. O Mercier conseguiu se desvencilhar das amarras, pegou uma arma de fogo e foi ao encalço dos criminosos. Ao chegar no meio da rua, ele anunciou a condição de policial e deu voz de prisão aos assaltantes. Depois de um tiroteio, foi atingido por um único tiro e morreu”. Tudo testemunhado, inclusive pelo próprio porteiro” — afirma o delegado.

Mais verdade do caso 

 Manoel Sérgio Estevão, o “Sérgio Orelha”, depois da fuga espetacular de Dionísio Aquino da Penitenciária de Guarulhos, morou durante algum tempo com o sequestrador, ao lado das respectivas amantes. “Ele foi executado na região Oeste de São Paulo, área em que atuava como criminoso. Foi um desenlace típico de assassinato envolvendo marginais”. O delegado Armando de Oliveira só não consegue compreender a importância de Sérgio Orelha no caso Celso Daniel: “Quem eleva e dá condições de relevância é a Imprensa, estimulada por alguns” — desabafa. (...) Tanto quanto o investigador Otávio Mercier e o criminoso companheiro de Dionísio Aquino, o garçom Antônio Palácio de Oliveira, do Restaurante Rubaiyat, de São Paulo, onde Celso Daniel e Sérgio Gomes jantaram na noite do sequestro, não é peça importante do caso, garante o delegado do DHPP. “Ele e outros funcionários do restaurante foram ouvidos aqui. Ouvimos todos. Desde o maitre até os manobristas, passando pelo gerente e chegando ao responsável pelos vinhos. Foram pelo menos seis funcionários que aqui compareceram para prestar informações. Queríamos saber se houve alguma discussão, alguma situação menos amistosa, envolvendo o Celso Daniel e o Sérgio Gomes. Principalmente a utilização de celulares ou mesmo do telefone fixo do estabelecimento. Não temos registro documental ou testemunhal que dê sustentação de que qualquer um dos dois tenha usado de aparelhos celulares ou fixo. Chegamos a essa conclusão também depois de quebrar o sigilo telefônico deles. Foi um jantar amistoso. Um jantar. Somente um jantar”. 

Mais verdade do caso 

 Por isso, o delegado assegura que a morte do garçom se insere na tipologia de crimes semelhantes na metrópole: “Um dia ele estava indo para casa de motocicleta na Cidade AE Carvalho, onde a criminalidade naquele período alcançava números expressivos, quando foi interceptado por uma outra motocicleta cujos ocupantes aparentemente tentam roubá-lo e, na fuga, se desequilibra, dá com a cabeça num poste e morre com traumatismo craniano. É muito comum esse tipo de morte em São Paulo. Embora tenha diminuído vertiginosamente nos últimos anos, os criminosos não poupam as vítimas que tentam se evadir. Em motos e em veículos. Principalmente nos últimos tempos, os profissionais liberais, como mulheres de branco, correm mais riscos. Eles matam com o mesmo sentimento de quem esmaga uma barata. O caso do garçom não foge em nada disso.

Mais verdade do caso 

 A morte de Paulo Henrique da Rocha Brito que, sentado defronte à casa dele, assistiu à queda do garçom. Tempos depois ele apareceu morto, na mesma área de AE Carvalho. “Paulo Henrique atuou como monitor da Febem e, infelizmente, não contava com bons antecedentes. Ele era acusado de receptação, por roubo, por furto. E foi morto por dois adolescentes. Esse inquérito ainda não está concluído, porque não chegamos aos autores do crime. Mas é questão de tempo. Vou dar um exemplo que mostra as mudanças no DHPP nos últimos anos: em 2000 foram efetivadas 165 prisões, contra 1.437 no ano passado. Um aumento relativo de 770% no período, explicado entre outros pontos pela inserção de nossa equipe com a sociedade como um todo, além de recursos tecnológicos cada vez mais avançados” — explica o delegado. 

Mais verdade do caso

Em março de 2006, também na revista Livre Mercado, produzi um novo capítulo, entre dezenas, do caso Celso Daniel. Este, tratava diretamente da morte do agente funerário sob o título “Quem disse que agente funerário morreu por causa de sequestro?”. Vejam os trechos principais: 

 Continua a ruir estrepitosamente o edifício de fantasias que transformou sete mortes de alguma forma relacionadas ao caso Celso Daniel em elementos de desconfiança de suposto esquema para liquidar anunciadas testemunhas-chaves. Depois de comprovado o suicídio induzido do médico legista Carlos Delmonte em outubro do ano passado, agora foi a vez de esclarecer-se como virou estatística criminal o agente funerário que recolheu o corpo de Celso Daniel na estrada vicinal de Juquitiba, na Grande São Paulo, na manhã de 20 de janeiro de 2002. Diferentemente de dezembro de 2003, quando a Imprensa abriu espaços generosos para anunciar o assassinato de Iran Redua, com carga de suspeita de possível queima de arquivo, desta vez, em 22 de fevereiro último, o tratamento foi discretíssimo. O assassino de Iran Redua foi apresentado pelo delegado titular do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), Armando de Oliveira e praticamente não saiu do anonimato.

Mais verdade do caso 

 A disposição da mídia em sustentar a versão de crime encomendado dos promotores públicos de Santo André é tão explícita que Alexandre Almeida Moraes, o criminoso, provavelmente receberia todas as honras de celebridade se a autoria dos disparos contra Iran Redua não fosse a mando de Fábio Hervelha Schunk, mas sim de Sérgio Gomes da Silva ou de qualquer um dos suspeitos sugeridos pelos integrantes do Gaerco. Para azar de quem gosta de drama e espetáculo, Alexandre Almeida Moraes participou do crime porque Iran Redua tentou furar o monopólio da empresa de Shunck, que, segundo o delegado Armando de Oliveira, “dominava por meios ilícitos, através de propina, os serviços funerários da zona Sul da Capital e das cidades vizinhas”. Os jornais mais importantes do País deram pouca importância à prisão anunciada pela Polícia Civil de São Paulo porque, cada vez mais, estão encalacrados: compraram inadvertidamente a versão de crime encomendado defendida pelo Ministério Público e tudo que trafegasse na órbita de supostas ou verdadeiras testemunhas do caso Celso Daniel passou a acrescentar significado especialíssimo. Entretanto, como prova a morte do agente funerário e também, embora relutantemente, o suicídio do legista Carlos Delmonte, histórias suplementares ao sequestro e morte de Celso Daniel não são compatíveis com a teoria de crime de encomenda. Os fatos não costumam flertar definitivamente com os boatos.

Mais verdade do caso 

 Numa entrevista a uma emissora de rádio da região o promotor criminal Amaro José Thomé Filho procurou desqualificar o encontro que a Polícia Civil preparou para apresentar o matador do agente funerário. O promotor tratou o evento como pífio, porque supostamente desimportante. Não é o que prova a cronologia dos fatos. A morte de Iran Redua foi tratada desde o princípio pela mídia como reação dos mandantes à possibilidade de revelarem-se supostas marcas de tortura no corpo de Celso Daniel. Seria Iran Redua um perigo para a versão de crime comum, porque ele foi o primeiro a ver o corpo estirado de Celso Daniel abatido por oito tiros. A descoberta de que Iran Redua foi vítima de um crime de mando que nada tem a ver com o caso Celso Daniel fez murchar o ímpeto da mídia.



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