Entrevista Especial

Missionário em
preto-e-branco

MALU MARCOCCIA - 05/02/1998

Alguém na porta faz sinal de positivo com o polegar. É a senha de que o Coríntians emplacou um gol. Os pequenos olhos verdes brilham escondidos atrás de grossas lentes de óculos. O torcedor vibra, interrompe a tarefa e diz para todos, alto e bom som, que o Timão fez um a zero no adversário. Não disfarça a felicidade. 

Seria mais um fato prosaico se o fanático corintiano em questão não fosse padre Rubens Chasseraux e se a cena não ocorresse em plena celebração de uma missa dominical. Mas os moradores da Vila Palmares, em Santo André, já estão acostumados. Foi a irreverência de padre Rubens que os conquistou há 35 anos, quando esse paulista de Piratininga decidiu adotar como família a então favela de Vila Palmares. Os moradores sabem que, depois de Deus, o Timão é sua grande paixão, vivida tão intensamente quanto o serviço missionário. Coleciona camisas, meias, cuecas, bandeiras e cinzeiros com a marca alvi-negra e, como autêntico representante da torcida, odeia palmeirense. "Se o demônio jogar com o Palmeiras, torço para o demônio" -- zomba. 

Corintianismo à parte, padre Rubens está festejando com mais sabor a chegada de 1998: é o ano de seu sexagenário e quando também se completam duas décadas da fundação da Kilombo dos Palmares, sociedade criada em agosto de 1978 com objetivo de comprar o terreno na divisa entre Santo André e São Caetano onde viviam 173 famílias, hoje proprietárias das áreas onde estavam seus barracos. As casas de alvenaria, as ruas asfaltadas e com toda infra-estrutura básica, a escola, a creche, a espaçosa Igreja Nossa Senhora das Dores e até a presença da Escola de Samba da Vila Palmares transformaram, ao longo desse tempo, a vida de um pedaço do Grande ABC em algo menos angustiante. Foi acontecimento pioneiro no País uma comunidade de favelados tornar-se dona do terreno ocupado e padre Rubens foi um dos protagonistas dessa história de final feliz. Não sem muitas pedras no caminho, renúncias pessoais, até ameaças de morte. 

Mas, assim como assombrou moralistas com sua desobediência civil às rígidas regras da igreja católica - que o leva à ousadia de abolir confessionários e comemorar um gol em plena Eucaristia --, padre Rubens causou sensação entre marginalizados sociais e ativistas de direitos humanos. Não venceu a todos os desafetos, muitos dentro dos seminários desde que se decidiu pela vocação religiosa aos 11 anos e outro tanto na comunidade católica que tem olhares atravessados para padres progressistas. Mas suas missas estão sempre cheias e, o que mais lhe importa, com gente participativa, que debate o Evangelho, faz oferendas, canta e louva sem vergonha de soltar a voz e bater palmas. Nada que lembre a formalidade na maioria das igrejas. "A Bíblia não é algo descolado da vida. É chata para quem só lê. É preciso vivê-la, identificar-se com os ensinamentos em discussões na Igreja, em grupos de orações e em trabalhos missionários" -- diz.  

Da resistência nos primeiros anos a um seminarista que dormia ao relento, catava lixo, foi servente de pedreiro e morou durante um ano na Praça do Carmo, em Santo André, até que a Nunciatura Apostólica o ordenou padre, a Vila Palmares é verdadeiro caso de amor correspondido: também adotou Rubens Chasseraux como membro da família.  

O nome de antepassados europeus, por sinal, já preconizava o enfant terrible que seria, ao não vestir exatamente o figurino tradicional do clero. A batina, só nas cerimônias eucarísticas. Calça jeans, camiseta e chinelos franciscanos formam a indumentária do dia-a-dia. Abrir a palavra ao público durante os sermões é fato corriqueiro, assim como recepcionar pessoalmente na porta a todos os participantes da missa e avisar alguém, aos sussurros durante uma oração, que não está com boa aparência, convidando-o para conversa reservada depois na sacristia. Nas manhãs de segundas, quartas e sextas-feiras é comum vê-lo contar piadas aos enfermos do Hospital São Caetano ou dançar com alguma enfermeira pelos corredores. Atende a um miserável faminto que bate à porta da Paróquia, onde tem sempre estocados alimentos doados, ao mesmo tempo em que telefona a alguma autoridade para que intervenha em favor de um missionário amigo.  

O confessionário, "uma gaiola que aboli", transforma-se em local de bate-papo descontraído. "Já sei que todo mundo fala uma mentira, xinga o marido ou a esposa e esquece de rezar antes de dormir. O que me interessa é conversar sobre a vida: a falta de emprego, o filho que não consegue vaga na escola, um gesto de solidariedade a grupos excluídos, como contribuir para reduzir a violência" -- comenta. Não reza missa pelos mortos, "mas sim pela vida e ressurreição", missões pelas quais Deus teria enviado o filho Jesus à Terra. 

Ao cutucar algumas alas religiosas que se centram no discurso do bem contra o mal, de Deus contra o diabo, padre Rubens sabe que muita gente veste a carapuça. "Os demônios que precisamos expulsar são os demônios da fome, da corrupção, da desigualdade social e das drogas que devoram nossos jovens" - fala, com ênfase. Sua postura, entretanto, não é de repressão. Como todo bom pastor, quer curar as ovelhas no desvio. Não esconde que, para aproximar-se de jovens viciados, deixa-os drogarem-se na casa paroquial. "Se Jesus acolheu Madalena e a perdoou, tenho que conhecer e ajudar os pecadores compreendendo-os" - diz.  

Foi a inquietação com as chagas sociais que transformaram padre Rubens numa figura polêmica. Quarto entre oito irmãos, filho de bóias-frias cuja casa chegou a desabar pela precariedade, Rubens Chasserraux sempre foi um questionador. O gosto pelos estudos abriu-lhe a mente para cobiçar vôos mais altos fora da pequena Piratininga. Não se conformava com a família de católicos dividida em tios ricos e pais pobres. "Éramos de uma mesma família, mas não vivíamos uma mesma família. Acreditávamos em Deus, mas não vivíamos o mesmo Deus" - diz.  

Aos 11 anos, quando jogava futebol com amigos numa tarde, padres da região -- "umas viúvas de luto", como os chamou -- convidaram as crianças para conhecer o seminário com piscina, cinema e quadra de futebol, e estimulá-los a seguir a vocação. Rebelde, Rubens encontrou ali uma forma de responder aos castigos dos pais, que a cada peraltice o proibiam de tomar banho no rio ou assistir a uma fita de filme. Não era católico praticante "Fui anjo por dois anos" - afirma. A rígida disciplina do seminário e a teoria dos livros não o satisfaziam. Queria vivenciar a marginalidade, a periferia, a prostituição. Fugia nos intervalos das aulas e nos fins de semana.  

Os questionamentos e a descoberta de um Deus diferente do ensinamento elitizado o levaram a viver entre os excluídos. Veio estudar em São Paulo, instalou-se na favela do Vergueiro e logo transferiu-se para Santo André, abraçando a causa da Vila Palmares. Manter um espírito de aliança com a comunidade marginalizada custou-lhe cinco prisões no auge da ditadura militar. Adepto da Teologia da Libertação e amigo de seu maior expoente, Dom Pedro Casaldáliga -- com quem passou férias em 1985 --, padre Rubens era alvo fácil do regime. Mobilizou a comunidade, cedeu as instalações da paróquia para sediar a sociedade Kilombo dos Palmares e durante anos deu oxigênio às reivindicações do bairro. As casas de alvenaria e a própria Igreja Nossa Senhora das Dores foram erguidas com sobras de demolições. 

Com infância passada na pobreza, a Vila Palmares é a grande trincheira de lutas e paixão do corintiano padre Rubens.



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