Prefiro acreditar que a deputada federal, publicitária e psicóloga Mara Gabrilli, herdeira de um dos barões do transporte coletivo de Santo André, flutue entre o desconhecimento e a ingenuidade quando trata do caso Celso Daniel. Incensada pelo PSDB, agremiação que mais se beneficiou com a versão de que o então prefeito de Santo André fora assassinado por supostamente romper com o esquema de arrecadação dos petistas rumo ao Palácio do Planalto, Mara Gabrilli desfila imprecisões, incorreções e muito mais quando trata do assunto.
Na entrevista a seguir, concedida ao jornalista José Nêumanne, no blog que assina no portal do Estadão, jornal no qual também atua, Mara Gabrilli tropeça nessa mistura de ingenuidade e desconhecimento. Mas quem ousa questioná-la?
A condição de uma das exceções em respeitabilidade na Câmara Federal se junta à defesa de pessoas com deficiências para dar à deputada condição especial de credibilidade. Mesmo quando produz reflexões e informações sem lastro no caso Celso Daniel. Mara Gabrilli está para o esclarecimento da morte do prefeito de Santo André assim como Pelé como comentarista esportivo. Ou seja: a eficiência dentro de campo (ou na tribuna) não tem a devida correspondência em outra área. Pelé sempre encontrou respaldo nos microfones por causa da fama de Rei do Futebol, apenas por isso. Jamais foi analista. Longe disso. Mara Gabrilli, no caso Celso Daniel, escora-se no drama de pertencer a uma das supostas vítimas de achaques. Esquecem seus defensores a origem econômica da família – e os desdobramentos disso a viciar informações e conclusões.
Pego carona na entrevista publicada pelo jornalista do Estadão (e um dos inúmeros defensores de morte politicamente encomendada de Celso Daniel, mesmo sem acompanhar as investigações e destilar opiniões, no caso, por conta de terceiros enfeitiçados pelo marketing tucano) para produzir comentários ao final de cada participação da deputada federal.
A entrevista e o penetra
José Nêumanne – Que tipo de sentimento a senhora tem quando lê, ouve ou vê a devassa promovida no Brasil por operações como a Lava Jato e, 16 anos depois da execução do prefeito petista de sua cidade, Celso Daniel, as providências continuam na estaca zero em termos da atuação da Justiça?
Mara Gabrilli – Olha, é claro que num mundo ideal o caso do assassinato do ex-prefeito Celso Daniel já estaria solucionado, com todos os envolvidos pagando suas penas atrás das grades. Mas acho que, ainda que lentamente, as coisas estão acontecendo. Há dois anos a 1.ª Vara da Fazenda de Santo André condenou o PT a devolver R$ 3,5 milhões aos cofres do município, e outros R$ 3,5 milhões a serem devolvidos de forma compartilhada pelo Ronan Maria Pinto, pelo Sérgio Sombra e pelo ex-secretário Klinger Oliveira. No ano passado, os desembargadores da 3.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo confirmaram a sentença por unanimidade. O Sérgio Sombra está morto e o Ronan e o Klinger, condenados, com um pé na prisão. Uma multa de R$ 10,5 milhões ao PT também foi aplicada, tudo isso pelo envolvimento em esquema de corrupção instalado no setor de transportes públicos de Santo André, na gestão do ex-prefeito Celso Daniel (PT), executado a tiros em janeiro de 2002. Mas, sem dúvida, é um caso que ainda aflige não só os moradores de Santo André, mas de todo o Brasil. Eu confio na Justiça e ainda acredito que muita coisa sobre o assassinato do Celso Daniel virá à tona, mas estou satisfeita em saber que, de uma forma ou de outra, a justiça está sendo feita.
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A justiça estaria sendo feita ao punir os anunciados envolvidos no esquema de corrupção na Administração de Celso Daniel jamais foi acionada antes das gestões petistas em Santo André e nos demais municípios da região que conviveram durante décadas com esquemas semelhantes no setor de transporte coletivo. Quem ousa acreditar ou destilar conhecimento frouxo de que teria se iniciado na gestão de Celso Daniel a combinação de cartas que engordavam bolsos de agentes públicos e privados na atividade reconhecidamente fértil em desvios de recursos possivelmente vive no mundo da lua. A deputada Mara Gabrilli provavelmente é conhecedora, mas nem por isso disseminadora ampla, do sistema de transporte coletivo municipal e suas ramificações político-eleitorais. Afinal, familiares da deputada pertenciam ao baronato de um setor cuja transparência é tão fértil quanto um buraco fundo.
José Nêumanne – Que relação a senhora percebe haver entre a corrupção em Santo André, à época das gestões petistas, e o Petrolão e o mensalão?
Mara Gabrilli – Sempre digo que a corrupção em Santo André foi o laboratório para o mensalão e, depois, para o Petrolão: empresários, como era o caso do meu pai, eram achacados e ameaçados por bandidos armados, para pagarem propina ao grupo da prefeitura. O dinheiro deveria ir para o caixa 2 do PT, que financiaria a campanha do Lula para presidente em 2002. Esse foi o mesmo esquema usado para o mensalão e, mais tarde, descoberto com o Petrolão, institucionalizado, em níveis e quantidades cada vez maiores. Os envolvidos eram os mesmos. Um deles, o empresário Ronan Maria Pinto, acabou sendo o elo entre o caso Celso Daniel e o Petrolão. Possuindo informações privilegiadas dentro do grupo, Ronan chantageou o Lula, que pediu ajuda ao Bumlai e, através do Grupo Schahin, destinou o valor de, no mínimo, R$ 6 milhões para calar a boca do Ronan. Isso tudo não sou eu quem diz, está nos autos, fruto das investigações feitas pelo Ministério Público. Se tivéssemos conseguido cessar a corrupção em Santo André, talvez o País não estivesse na situação em que se encontra hoje.
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O País só está na situação em que se encontra hoje (pegando as declarações de Mara Gabrilli pelo rabo dos últimos parágrafos) porque, entre muitas atividades que aproximavam agentes públicos e representantes do capital, o setor o setor de transporte coletivo sempre foi um intrincadíssimo modelo de arranjos que tanto engordavam bolsos particulares como irrigavam campanhas eleitorais. A corrupção no setor de transporte público não começou nem terminou na gestão petista em Santo André, como sugere a deputada. De fato, Santo André, a considerar os autos processuais, apresentou novidade fruto da própria essência do Partido dos Trabalhadores. Ou seja: os recursos escusos deixaram de ser amealhados por grupos políticos paroquiais e em parte desviados por intermediários e passaram a contar com sistemática que visava algo mais homogêneo, coletivo, ideologicamente comprometido com o controle da máquina federal. Ou seja: o PT está longe de ser catalogado como desbravador desse território de malandragens porque, por se tratar do único conglomerado político com tessitura entranhada em princípios de unicidade de movimentos, agiu coletivamente, centralizando os recursos num caixa específico de campanha rumo ao Palácio do Governo.
José Nêumanne – A seu ver, por que, até hoje, é misteriosa a atitude da polícia estadual paulista, sob o comando de governadores de seu partido, o PSDB, ou aliados, em defesa da tese negada pelo Ministério Público de que a morte de Celso Daniel não passou de um crime banal de sequestro e morte?
Mara Gabrilli – Olha, eu prefiro acreditar que a defesa dessa tese se deu por falta de provas. Com tudo o que aconteceu, com a morte de tantas testemunhas… Na época, minha família vivia assombrada por todas as ameaças que meu pai sofria, por tudo o que acontecia. Cinco dias antes do sequestro do prefeito, fomos avisados pelo irmão do Celso Daniel, que era nosso vizinho, de que o esquema acabaria. Que o Celso iria fazer parar o esquema de recolhimento de propina. E isso, note-se, aconteceu cinco dias antes de ele ser sequestrado. Pra mim, fica claro que a decisão dele de parar com o que ocorria ali não agradou a muita gente. Com tudo isso, como poderia não ser um crime político? Não por acaso, os principais envolvidos naquele esquema de corrupção estão na cadeia, envolvidos no mensalão, na Lava Jato e em outros tantos crimes. Aliás, para quem tiver interesse em saber mais sobre todo esse caso, tem um livro escrito pelo Silvio Navarro e lançado recentemente (Celso Daniel – Política, Corrupção e Morte no Coração do PT) que conta toda a história, muito bem detalhada. Ao ler o livro, não dá pra acreditar que se tratou de um crime banal e sem relação com toda a corrupção que acontecia ali.
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A contradição de Mara Gabrilli quando revela que o esquema de corrupção em Santo André é a matriz do mensalão e do Petrolão e o argumento de que Celso Daniel foi assassinado porque pretendia acabar com o esquema em Santo André não cabe num invólucro de sustentabilidade lógica. Seguindo a linha de raciocínio inicial de Mara Gabrilli (que não difere da dos promotores criminais escalados pelo governo estadual para construir a versão de crime de encomenda), Celso Daniel jamais seria indicado a integrar a equipe de elite do então candidato presidencial Lula da Silva. Não há provas de que Mara Gabrilli esteja a dizer a verdade quando se refere ao irmão do prefeito Celso Daniel e o suposto aviso de que o chamado esquema acabaria. Tudo isso não passaria de justificativa para dar ao enredo paralelo um mínimo de coerência. Ainda seguindo essa linha de raciocínio, e com as provas de ocorrências no decorrer das gestões petistas, esmiuçadas pela operação Lava Jato, está mais que escancarado um enredo que desqualifica o argumento da deputada federal: os petistas mantinham-se fieis a um modelo de atuação extrampo que ultrapassava todos os limites supostamente éticos que teriam sido brandidos por Celso Daniel na suposta tentativa de encerrar a carreira de corruptos na Prefeitura de Santo André. Ao mencionar o livro do jornalista Silvio Navarro, a deputada enfia de vez o pé na jaca do desconhecimento do caso Celso Daniel. Aquela obra (obra é força de expressão, porque se trata mesmo de colagens de reportagens de terceiros que se alinharam acriticamente às denúncias do Ministério Público Estadual) não vale um tostão furado como produto jornalístico. Tanto que, em mais de uma dezena de capítulos, tive o cuidado de estraçalha-la com a verdade dos fatos. Mara Gabrilli tem carradas de razão apenas quando afirma que quem ler o livro de Silvio Navarro jamais acreditará que se tratou de um crime banal e sem relação com toda a corrupção que acontecia em Santo André. Não há como negar que para os incautos e imprevidentes, quando não ignorantes e ideologicamente contaminados, o livro de Silvio Navarro é bastante convincente. Feito sob medida para agradar a uma plateia típica destes tempos de polarização política.
José Nêumanne – Como a senhora avalia a decisão do ministro do STF Ricardo Lewandowski, que, aliás, é de outra cidade do ABC, São Bernardo do Campo, de devolver o processo criminal às suas origens, ao conceder habeas corpus, que repousou anos na gaveta de seis presidentes da Suprema Corte antes dele, ao principal suspeito de ter sido o mandante do crime, Sérgio Gomes da Silva, anulando sentenças de condenação decididas por júri popular?
Mara Gabrilli – Foi uma decisão lamentável, porque o Sérgio Sombra, tido como o mandante do assassinato, quase 15 anos depois de um crime bárbaro como esse, morreu impune. E isso só contribuiu para aumentar a sensação de impunidade e diminuir a crença do brasileiro na Justiça.
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À parte a denunciada participação no esquema de corrupção em Santo André, Sergio Gomes da Silva (estigmatizado pelo Ministério Público Estadual que lhe impôs na mídia o codinome Sombra), primeiro-amigo de Celso Daniel, foi a segunda maior vítima do assassinado do prefeito petista. Na ânsia de encontrar um bode expiatório que retirasse do campo da Segurança Pública o crime cometido por bandidos pés de chinelo, a força-tarefa do MP encontrou um alvo perfeito. Afinal, Sérgio Gomes tinha mesmo fortes articulações com determinados agentes econômicos de Santo André, entre os quais os donos das empresas de transporte coletivo. A ideia de que tenha morrido sem cumprir a pena que supostamente mereceria é, portanto, um erro crasso de avaliação. Tanto as três investigações da Polícia Civil do governo tucano de São Paulo, quanto a investigação da polícia federal nos tempos do tucano Fernando Henrique Cardoso na presidência da República, concluíram que Sérgio Gomes da Silva jamais participou de qualquer iniciativa para atingir Celso Daniel. Mais que isso: Sergio Gomes da Silva fora vítima tanto quanto Celso Daniel, com a diferença de que não foi levado pelos bandidos fortemente armados que metralharam a Pajero com o prefeito de Santo André no banco de acompanhante.
José Nêumanne – Por que, ao longo destes anos todos, em que a senhora, que chegou a ocupar um lugar na Mesa da Câmara dos Deputados, lutou para exigir satisfações a esse respeito, seu partido, o PSDB, nunca tomou uma atitude para exigir das autoridades estaduais, da polícia e da Justiça a solução definitiva do assassinato?
Mara Gabrilli – Eu sempre procurei justiça pela população de Santo André e pela honra do meu pai, mas nunca quis partidarizar esse tema, tornar um PSDB x PT. Até porque, quando tudo aconteceu, eu ainda não era filiada a nenhum partido político e nem sonhava em entrar para a política. Na época, o PSDB incumbiu a Polícia Civil do Estado de São Paulo de investigar o caso e a resposta que deram foi se tratar de um crime simples, de latrocínio. Pra mim, não foi o que aconteceu. Mas, para o partido, o assunto parece ter se encerrado ali. Eu segui minha luta, por conta própria. Minhas denúncias ao Ministério Público, meus questionamentos aos envolvidos, feitos quando foram participar em comissões na Câmara dos Deputados, enfim, todo o meu esforço para tentar desvendar esse caso sempre foi por conta própria, nunca em nome do partido.
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A explicação para o fato de os tucanos se satisfazerem com os resultados do caso Celso Daniel é uma obra de engenharia política de resultados programados. Como assim? Simples, muito simples. O que os tucanos queriam quando a bomba do assassinato estourou naquele janeiro já distante foi alcançado: uma força-tarefa foi criada justamente para retirar o crime da área da Segurança Pública em estado caótico e colocá-lo no colo petista a partir da junção do assassinato em si e das irregularidades já denunciadas na gestão de Celso Daniel. Não foi por outra razão, inclusive, que, durante quatro anos, os policiais civis que apuraram o caso foram proibidos de dar declarações à Imprensa, enquanto os promotores criminais cristalizaram informações sempre direcionadas à criminalização petista a partir da atuação de Sérgio Gomes da Silva. Chegou a ser patético que, durante esse percurso, o MP saiu de um extremo ao outro. Inicialmente (e o noticiário está aí para comprovar) disseram os promotores criminais que Celso Daniel não tinha conhecimento das anunciadas roubalheiras e do esquema de propinas. Mais tarde, Celso Daniel teria conhecimento, mas não participava da festa com dinheiro público. Mais adiante, Celso Daniel sabia e participava de tudo, pois até foi visto por uma empregada doméstica com um saco de dinheiro no apartamento em que morava. O enredo ministerial do caso Celso Daniel é uma lambança e tanto, em contraste com a seriedade, discrição e correção das investigações policiais. O tempo, com Mensalão e Petrolão, desmascarou completamente a teoria do MPE. Celso Daniel era peça importante do tabuleiro petista rumo à Brasília. Antônio Pallocci não o sucedeu por acaso.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP