Administração Pública

Para colocar a
beleza na mesa

VERA GUAZZELLI - 05/02/1999

Quem inventou a história de que beleza não se põe na mesa certamente nunca andou por Mauá. No máximo reagiu com espanto ao se deparar com favela de 20 mil habitantes situada à esquerda da principal entrada do Município. Retrato daquilo a que o somatório da pobreza, da especulação imobiliária e do crescimento desordenado condena a periferia das metrópoles e cidades limítrofes, o Jardim Oratório é apenas uma das áreas que podem ser beneficiadas pelo Plano Diretor, aprovado no final do ano passado pela Câmara Municipal. Para vislumbrar a Mauá do futuro, o instrumento traça diretrizes que possibilitam colocar pitada de charme e graça na cidade que sequer foi privilegiada pela natureza. Encostas de morros e declives acentuados, recheados pelo resultado da explosão demográfica, não formam conjunto arquitetônico e urbanístico digno da 16ª cidade do Estado em Valor Adicionado do ICMS.

A riqueza atrai a pobreza e a pobreza atrai a feiura. Seria fácil resumir Mauá nesta frase não fosse o risco de incorrer em estereótipos e cometer injustiças. Afinal, a cidade que tem a paupérrima renda per capita de 1,01 salário mínimo convive com o contraste de 10 bairros onde o valor do metro quadrado equivale aos tops da região, onde 78 loteamentos irregulares e 100 núcleos de favelas disputam as más condições de vida com os piores endereços da Grande São Paulo. Esse festival de disparidades está contemplado na terceira versão do Plano Diretor. Depois de tentativas em 1990 e 1996, a Mauá real foi estampada nas páginas da lei. O desafio agora é transportar do papel para as ruas uma Mauá de saltar aos olhos dos moradores sem causar grandes transtornos ou mudança radical na vida estabelecida.

Como o coração sente aquilo que os olhos enxergam, Mauá é uma cidade feia. Não por culpa dos moradores. O Poder Público, durante décadas, fechou os olhos à ocupação desordenada e a loteadores de índole pouco nobre. O resultado do jogo de fingimento voltou-se contra o próprio feiticeiro. Hoje Mauá possui 70% das residências com algum tipo de irregularidade jurídica. Colocar a casa em ordem requer bem mais que boa intenção. Requer vontade política. Somente no primeiro semestre deste ano chegam à Câmara para votação os principais instrumentos legais que normatizam o Plano Diretor: a Lei de Zoneamento, o novo Código de Obras e a Lei de Regularização dos Loteamentos.

A secretária de Planejamento, Josiane Francisco da Silva, está confiante na atuação dos vereadores. Ela espera que sejam necessários bem menos que os 12 meses de tramitação do Plano Diretor. Também essa é a expectativa de Francisco Esmeraldo Felipe Carneiro, o Chiquinho do Zaíra, presidente da Câmara. Embora o jogo legislativo muitas vezes atenda às conveniências dos políticos de plantão e não dos mauaenses de coração, como Josiane e Chiquinho, que até carrega no apelido a denominação do mais populoso bairro da cidade, se a intenção for concretizada será possível regularizar 39 dos 78 loteamentos ilegais e aumentar em 30% a arrecadação do IPTU até o final da atual administração.

Regularização e prevenção resumem as diretrizes do Plano Diretor. "Queremos regularizar o que existe, ordenar as áreas passíveis de ocupação e retirar apenas o que compromete a qualidade de vida das pessoas" -- explica Josiane. Dividido em 14 regiões de planejamento como se fossem administrações regionais, para que a distribuição de escolas, creches, postos de saúde e outros equipamentos públicos seja equalizada pelos bairros, o Plano Diretor conferiu à Mauá quatro zonas: macrozona adensável, onde existem áreas disponíveis para expansão; macrozona não-adensável, onde não há mais áreas; área de proteção e recuperação de mananciais, que ocupa cerca de 22% dos 57 quilômetros quadrados da cidade; e macrozona não-adensável na área de proteção aos mananciais, onde existem terrenos irregulares mas não serão permitidas novas ocupações.

Embora a questão econômica não tenha sido levada em conta na elaboração do plano, a influência é inegável. A maioria dos loteamentos irregulares encontra-se na área não-adensável, ou, em dialeto mauaense, do lado de baixo da estação, onde terrenos baratos e facilidade de ocupação (leiam-se incentivo e conivência) atraíram grande parte de migrantes de outros Estados em busca de empregos industriais. Somente o Jardim Zaíra tem 70 mil moradores, apenas 10 mil a menos que os 80 mil de todos os bairros situados do lado de cima da estação e onde o metro quadrado de terreno chega a custar até R$ 200, comparável ao de áreas nobres de Santo André e São Bernardo.

Lei de Zoneamento -- A aprovação e a aplicação da Lei de Zoneamento e da Lei de Regularização de Loteamentos vão ditar, a médio prazo, o sucesso do Plano Diretor. A primeira lei, cuja principal novidade é a criação das zonas de uso diversificado, deve corrigir esquisitices que vigoram desde os anos 70. Caso da proibição de funcionamento de pequenos comércios e indústrias somente em determinados trechos de ruas e avenidas, como se o fato de uma locadora de vídeo estar numa esquina ou três quadras adiante pudesse comprometer a qualidade de vida do bairro. "Isso vai permitir aumento da arrecadação" -- pondera a secretária Municipal Josiane da Silva. O argumento é arrebatador e deve pesar na balança na hora de convencer os parlamentares de uma cidade enterrada em dívida de R$ 650 milhões -- mais de três orçamentos anuais da Prefeitura. 

Atualmente encontram-se na Prefeitura 250 pedidos de regularização de pequenos estabelecimentos comerciais e microempresas. Além das zonas de uso diversificado que pretendem harmonizar a convivência de residências, comércio e indústria, constam também da proposta as zonas de desenvolvimento econômico e as zonas de ocupação controlada na área de proteção aos mananciais. A divisão descomplica a lei, que possui 15 situações diferentes, ajuda a combater a irregularidade e promove o desenvolvimento. Também as áreas de interesse social ganharão atenção especial por criar mecanismos para legalizar favelas e fomentar loteamentos destinados à moradia popular, principalmente para transferir moradores de áreas de risco. 

"Não faço polêmica com o Plano Diretor, nem acredito que seja um divisor de águas; é preciso haver sincronia entre o que se pretende fazer e o que existe" -- enfatiza o prefeito Oswaldo Dias. O recado tem endereço certo. O Plano Diretor elaborado na gestão do então prefeito José Carlos Grecco pelo urbanista Cândido Malta foi criticado por contemplar a cidade ideal em detrimento da real. Malta também não deixou por menos ao alfinetar que o atual plano sequer prevê o crescimento vertical. Para Oswaldo Dias, a preocupação não tem fundamento, porque existem ainda cinco quilômetros quadrados de áreas disponíveis para residência, o que dá um total de 40 mil lotes de 125 metros quadrados cada. "Ainda é bem mais barato construir casa" -- argumenta Dias. Perigo de nova explosão demográfica? A resposta do secretário de Habitação, Altivo Ovando Júnior, é sintomática. "Não há mais emprego e a Prefeitura tem coibido com rigidez tentativas de invasões".

Indústria -- Mauá conta ainda com outros cinco mil quilômetros quadrados de terrenos para implantação de indústrias. A expectativa de criação de condomínios empresariais, onde várias empresas poderão se instalar no mesmo terreno e dividir os custos das áreas de uso comum como portaria, segurança, refeitório e similares, já desperta interesse. Mesmo sem a regularização, a Prefeitura contabiliza demanda de três grupos interessados no empreendimento.

Também a flexibilização das frações de terra -- um dos principais entraves é a exigência de terreno mínimo de cinco mil metros quadrados no Pólo do Sertãozinho, por exemplo -- vai atrair empreendedores. Afinal, em tempos de tecnologia avançada, produzir mais em menor espaço é totalmente viável.

No rastro dessas medidas vem a infra-estrutura do sistema viário. As avenidas de acesso à cidade e aos principais bairros já não comportam o trânsito caótico, o que significa dificuldade de escoamento da produção. O Plano Diretor prevê a integração entre as vias arteriais (grandes avenidas), vias coletoras (vicinais) e as vias locais, mas a melhoria e a ampliação do sistema esbarram na maioria das vezes no caixa deficitário. A grande aposta recai na ligação Sertãozinho-Via Anchieta, reivindicação de 10 em cada 10 políticos da cidade, que começou a caminhar a passos de tartaruga com a autorização do governo estadual para o início dos estudos de viabilização da obra. Após o anúncio dos estudos e com o asfaltamento de parte das vias de acesso, 11 pequenas empresas transferiram-se para o local.

Conjugar desenvolvimento econômico e acesso à terra é tarefa para no mínimo quatro gestões, prazo de validade do plano. "Será importante a revisão do Plano Diretor a cada novo governo, sempre com participação popular" -- recomenda Josiane. Mas como a continuidade das ações não é o forte da administração pública, resta torcer para que o Plano Diretor, exigência da Constituição Federal para todos os Municípios com mais de 20 mil habitantes, não se torne mais um amontoado de papel a empoeirar nas prateleiras do Poder Público.

Ou sonhar, como o prefeito Oswaldo Dias, mineiro que mora na cidade há 34 anos. "Eu sonho com uma cidade limpa e muito verde, que seja motivo de orgulho para seus moradores". Josiane, também mauaense, acredita que se cada um fizer sua parte Mauá será uma cidade bonita. Outro filho da terra, o presidente da Câmara, Chiquinho do Zaíra, é mais enfático. "Serão necessários pelo menos 10 anos para melhorar a cara de Mauá". 

Detalhes demais, resultados de menos

Nem só de 78 loteamentos clandestinos ou ilegais vive o Município de Mauá. O festival de irregularidades que contempla bairros inteiros está presente em 70% das 80 mil moradias da cidade e a fórmula para colocar um basta na confusão geral é flexibilizar leis e mudar radicalmente conceitos urbanísticos originários do começo do século ainda presentes nas normas de edificações e aprovação de loteamentos. Para inverter a fórmula detalhes-demais-resultados-de-menos é preciso correr contra o tempo e criar mecanismos que incentivem a própria população a buscar a regularização. Com a aprovação da Lei de Loteamento e do novo Código de Obras será possível legalizar 39 loteamentos e aumentar a demanda por documentação correta em 10% no próximo ano. 

À primeira vista parece difícil entender por que alguém compra casa ou terreno sem documentação. Mas quando se analisam as condições socioeconômicas a situação fica perfeitamente compreensível, já que terra barata e áreas disponíveis para ocupação seduzem com relativa facilidade na hora do aperto. Nos últimos 18 anos a população de Mauá cresceu em 150 mil habitantes. O ciclo é vicioso: a retração econômica empurra o trabalhador desempregado ou que teve a renda diminuída para a periferia e de lá para a favela. Quando se trata de sobrevivência, documento é o que menos importa.

No caldeirão fundiário de Mauá encontram-se cinco bairros que merecem atenção especial por abrigar metade da população que ocupa áreas irregulares. Cada caso é tratado individualmente: o Macuco (área particular invadida e em negociação com o proprietário), parte do Jardim Zaíra (maior bairro da cidade, com 70 mil habitantes), Jardim Nova Mauá (loteamento irregular) e os jardins Maria Aparecida e Itaussu (ambos em área de proteção aos mananciais). "Queremos legalizar 70% das residências dessas cinco áreas em dois anos" -- projeta o secretário de Habitação, Altivo Ovando Júnior.  

Como não é possível ter casa regular em terreno irregular, a Prefeitura vai atacar as duas frentes. Loteadores que queiram acertar a situação terão mecanismos como a permuta para amenizar situações irreversíveis. Muitos deles fracionaram áreas sem deixar espaço para implantação de equipamentos públicos, conforme exigência da Lei 6.766 de 1979, a lei Lehman, de loteamentos. "Agora poderão corrigir o erro doando para a Prefeitura área similar" -- sugere Altivo.

Os moradores, por sua vez, contarão com o certificado de conclusão de propriedade, espécie de habite-se municipal, caso queiram regularizar a construção, mesmo que o lote se encontre com problemas. O preço do documento ainda não foi definido, mas certamente custará bem menos que os aproximados R$ 2 mil que se gastam atualmente para deixar a casa em ordem.

Também passarão a ser legais os lotes que fazem frente para ruas com menos de 14 metros de largura, o que é vetado pela lei atual. Inconstitucionalidade à parte, técnicos da Prefeitura agarram-se à brecha de lei federal que permite aos Municípios criar tais alternativas. O projeto vai gerar já no próximo ano aumento de demanda de 10% nos processos de regularização. O resultado, porém, só poderá ser equacionado em cinco anos.

Autoconstrução -- O apoio à autoconstrução surge como mais uma maneira de pressionar o embelezamento da cidade. A Secretaria de Habitação passa a fornecer ainda neste semestre 25 modelos de plantas, a maioria prevendo terrenos em declive, de até 70 metros quadrados, além de orientação técnica para os proprietários-construtores, que edificam suas próprias casas de acordo com a disponibilidade financeira. As construções terão valor médio de R$ 5 mil.

O novo Código de Obras acaba também com detalhes em demasia -- o mais inusitado determina as dimensões do galinheiro --, ao ser reduzido de 400 para 160 itens. A Prefeitura só vai levar em conta na hora de aprovar a planta a estética externa. A divisão interior será problema do dono e do profissional que assinar a obra. A desculpa de que a lei não permite não vai mais servir como justificativa.



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