Escrevi tanto sobre Celso Daniel — muito mais que qualquer outro jornalista deste País — que às vésperas de se completarem oito anos desde que seu corpo foi encontrado numa estrada vicinal em Juquitiba, na Grande São Paulo, a melhor homenagem que poderia fazer àquele que foi o maior prefeito do Grande ABC é relembrar o quanto foi superlativo.
Quando afirmo que Celso Daniel é o maior homem público da história do Grande ABC não cometo injustiça alguma a eventuais concorrentes. Celso Daniel foi folgadamente o gerenciador público que mais pensou e se dedicou à regionalidade. Não vejo nenhum outro que se aproxime dele. Se foi o melhor prefeito de Santo André é outra história. Do Grande ABC, foi disparadamente. A abundância intelectual de Celso Daniel era tão intensa que, mesmo sem dirigir o Município economicamente mais importante da região, título que cabe a São Bernardo, transbordou em influência.
O assassinato de Celso Daniel foi traumático para quem sonhava com um Grande ABC menos provinciano. E o dia seguinte se tornou lamentável, porque o Grande ABC mais provinciano ficou.
Recupero nos arquivos da revista LivreMercado que dirigi por 19 anos — e cujo acervo editorial pertence a mim — o texto que preparei ainda sob forte emoção durante os dias que se seguiram ao assassinato do então prefeito de Santo André. Não há registro de algo semelhantemente denso. Movam céus e terra, procurem no Google e vejam que do Celso Daniel administrador público a mídia, de maneira geral, pouco sabe.
Quanto mais me envolvo com determinado assunto, mais esqueço os ponteiros do relógio, mais desprezo o final de semana, mais me desligo do restante do mundo. Por isso, quando Celso Daniel foi encontrado morto naquele domingo, 20 de janeiro de 2002, juntei todas as forças para preparar tanto a Reportagem de Capa de fevereiro de LivreMercado como também para dar continuidade e encerramento a uma empreitada que, coincidentemente, iniciara naquela sexta-feira, 18 de janeiro, algumas horas antes de Celso Daniel ser sequestrado: começara a escrever o livro “Complexo de Gata Borralheira”.
Quando fechei editorialmente a edição de fevereiro, naquele final de janeiro, além da Reportagem de Capa que analisava o legado de Celso Daniel à frente da Prefeitura de Santo André e também de instâncias regionais, encerrava o último capítulo de “Complexo de Gata Borralheira”. Estava física e emocionalmente extenuado. Mas com o sentimento de dever cumprido.
Em 16 de abril daquele mesmo ano, numa noite de gala no Teatro Municipal de Santo André, lançamos “Complexo de Gata Borralheira” após leitura dramática de atores de verdade, gente de gabarito. Como Milton Andrade, que acaba de nos deixar.
O livro ganhara dramaticidade e cristalizou-se como homenagem a Celso Daniel. A criminalidade naqueles dias no Estado de São Paulo de sequestros fluviais fizera uma vítima graduadíssima. Tanto que caiu o secretário de Segurança Pública que expressava a filosofia de Direitos Humanos e entrou em campo um linha-dura. Entretanto, os indicadores criminais do Estado só melhoraram com investimentos em infra-estrutura de apoio às ações policiais e participação dos próprios municípios.
Incorporar aquele texto que preparei para LivreMercado a este endereço de jornalismo é uma oportunidade de ouro que o oitavo aniversário da morte de Celso Daniel obriga.
Nenhum outro jornalista conseguiu infiltrar-se tanto na vida administrativa de Celso Daniel, porque, entre outras razões, o assassinato reduziu a importância que deixou para as próximas gerações: de maneira geral, a Imprensa se preocupou apenas com o espetáculo policial do crime, iniciando-se, já em janeiro, mesmo que sutilmente, série de especulações sobre a motivação do caso. Algo que se avolumou na sequência até chegarmos a extremismos de irresponsabilidade que se perpetuaram na imaginação da sociedade.
É verdade também que meu trabalho foi facilitado porque vinha acompanhando atentamente Celso Daniel. Ao contrário do que imaginam os leitores, tive com ele alguns embates que jamais ultrapassaram o terreno da civilidade — como todos os meus eventuais embates não ultrapassam.
Para dizer a verdade, a grandeza de Celso Daniel aos meus olhos se fortaleceu na exata medida em que o vi maduro às críticas como também a refazer o receituário gerencial que aplicou na primeira gestão à frente da Prefeitura de Santo André, entre 1989 e 1992, quando o PT ainda vivia fase de puberdade político-administrativa. Alguns arroubos de um socialismo já em desuso em praças internacionais mais arejadas foram reformatados quando Celso Daniel voltou à Prefeitura, após vencer as eleições de 1996.
Celso Daniel estava muito à frente da maioria dos políticos tupiniquins que agem com a soberba dos intocáveis. Não esqueço daquela tarde no auditório do então Imes de São Caetano, quando se pretendia debater os 10 anos da criação do Clube dos Prefeitos, entidade que este jornalista ainda chamava de Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. Irritei-me como palestrante com a placidez de um Celso Daniel de discurso extremamente morno, cor-de-rosa. Até parecia que o Grande ABC vivia momentos de glória. Cheguei à redação e produzi um texto ácido contra a política de boa-vizinhança de Celso Daniel. Mas, convenhamos, ele estava certo em proteger seus pares de gerenciamento público tanto quanto eu estava corretíssimo na tonalidade mais forte que apresentei. Vivíamos mundos diferentes.
Dias depois, lá estava o prefeito de Santo André, o grande homem público do Grande ABC, entre os três mil convidados da festa de lançamento da primeira versão do livro “Nosso Século XXI”, que coordenei e organizei juntamente com a jornalista Malu Marcoccia.
Celso Daniel era um dos 27 articulistas do ensaio. Acompanhado de Ivone Santana, ocupou a mesa individual para atender aos convidados. Foi a maior noite de autógrafos coletivos do Grande ABC.
Celso Daniel, como os demais articulistas, também foi ao palco para receber homenagem. Na semana seguinte, cumprimentei Celso Daniel com brevidade mas com carinho após a inauguração do prédio da Justiça Federal em Santo André. Celso Daniel estava acompanhado do segurança. Dei-lhe um abraço e soltei uma frase que jamais esquecerei, porque foi a última que lhe pude dirigir e a primeira no tom afetuoso que ele tanto merecia: “Esse é o maior prefeito da região”. Coisa estranha, porque jamais mantive com Celso Daniel tratamento que não fosse quase cerimonioso.
Vou postar amanhã neste espaço aquela histórica reportagem pós-morte de Celso Daniel. Uma homenagem sincera a quem está fazendo muita falta ao Grande ABC. Há algumas primas-donas por aqui que não serviriam para lustrar os sapatos de Celso Daniel, mas agem como imperadores, arrogantemente presos a mandatos conferidos pelo povo, é verdade, mas que mais dia, menos dia, vão se encerrar. E não deixarão saudade.
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07/03/2025 PREVIDÊNCIA: DIADEMA E SANTO ANDRÉ VÃO MAL