-- Meus amigos, é uma grande satisfação encontrá-los neste hotel-fazenda do Interior. Acho que vocês receberam o mesmo telegrama secreto convocando para esse encontro, porque o que vejo é que estamos numa mesa retangular para 10 pessoas. Estou aqui na cabeceira inferior porque quem nos convocou vai ficar na cabeceira superior. O que não estou entendendo é por que ainda não estão ocupadas a cadeira da cabeceira superior e também uma das laterais, já que vocês sete, meus vizinhos, estão rigorosamente nos seus lugares.
-- Está certa, formosa São Paulo. O telegrama que você recebeu acho que todos nós recebemos. Estou do seu lado direito, coladinho em você, porque sou a maior potência econômica do ABC. Quem fala em ABC fala em São Bernardo.
-- E estou também coladinho em você, do lado esquerdo, porque é impossível falar de ABC sem levar em conta a tradição econômica, cultural, política e social de Santo André.
-- Só não me incomodei em ficar na segunda fila lateral, do seu lado direito, São Paulo, porque na prática geográfica até as águas do Rio Tamanduateí sabem que São Caetano é a mais vizinha das vizinhas de São Paulo. Não quis criar polêmica com meus vizinhos porque eles poderiam arguir o alfabeto latino como critério de definição, em vez de potencial econômico, e aí me daria mal. Agora, se fosse pela qualidade de vida, e acho que isso vale ouro hoje, eu não estaria nem na lateral. Tomaria o seu lugar, São Paulo, ah! se tomaria! Até porque, convenhamos, cavalheirismo não caberia nessas horas.
-- Não discuto qualidade de vida com São Caetano porque todo mundo sabe que sou meio complicada, mas acho que esse conceito de vizinhança de São Caetano não é bem assim. Estou na segunda fila lateral, do lado esquerdo de São Paulo, também porque me posiciono nos calcanhares de São Paulo. Basta pegar a Imigrantes para todo mundo chegar ao coração e às vísceras de Diadema.
-- Estou na terceira fila lateral à direita de São Paulo e não reclamo. Mauá sempre foi atirada às traças mesmo.
-- Estou na terceira fila lateral à esquerda de São Paulo pelos mesmos motivos de Mauá. Ribeirão Pires é o fim do mundo para quem tem São Paulo como referência, tenho consciência disso, embora, paradoxalmente, também esteja tão perto. São coisas da geoeconomia que poucos conseguem responder.
-- Que posso dizer aqui na quarta fila à direita da querida São Paulo? Sou Rio Grande da Serra. Se sou esquecido no ABC, imagine então na Grande São Paulo? Talvez o meu problema seja o fato de estar escanteado na geografia do Grande ABC e não fazer parte da Baixada Santista. Já imaginaram se meu território tivesse turismo ecológico e litorâneo ao mesmo tempo? Seria um arraso.
-- Está bom, está bom meus vizinhos da periferia. Não gostaria de ouvir choradeira porque tenho muito o que fazer na vida. Só estou aqui porque houve chamamento superior, de quem ainda não identifiquei mas que certamente vai aparecer. Como a recomendação era de que eu me sentaria à cabeceira da mesa, decidi vir até aqui. Se a mesa fosse redonda, não teria comparecido simplesmente porque a hierarquia econômica e cultural estaria sendo desprezada a pretexto de democracia. O retângulo define e assegura nossas diferenças e isso é o que mais me importa.
-- Quem será o ocupante da cadeira lateral à minha frente, que está vazia, cara cidade de São Paulo?
-- Olha Rio Grande da Serra, para dizer a verdade, nem desconfio. Estou tão ansiosa quanto você. A diferença é que devo ter autoridade para censurá-lo pelo atraso. É claro que não vou me meter com quem vai ficar na cabeceira superior, que nem sei quem é, mas deve ser mais importante do que eu. Recebi ordens e estou cumprindo. Inclusive em marcar esse encontro num local neutro, porque me disseram que a gente ia discutir esse tal de Complexo de Gata Borralheira, mal que atinge vocês todos do Grande ABC. Vocês são tão divididos que não deu para marcar o encontro num dos territórios que vocês ocupam. Por isso estamos aqui no Interior de São Paulo, nesse hotel-fazenda.
-- E estou de acordo com essa decisão, porque se o encontro tivesse que acontecer no Grande ABC, teria de ser às minhas barbas. Mas, pensando bem, será que esse encontro não é uma pegadinha?
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16/04/2002 UM QUEBRA-CABEÇAS