Administração Pública

Como transformar
lixo em cidadania

WALTER VENTURINI - 05/06/2001

Ninguém sente mais os efeitos da crise vivida pelo Grande ABC e pelo País do que quem sobrevive de recolher restos dos outros. É o extrato social mais excluído que é atraído pelo lixo. Na região, um pequeno exército de párias percorre as ruas todos os dias ou fuça uma montanha de rejeitos. Retirá-los do fundo do poço é desafio para Poder Público, iniciativa privada e cidadãos em geral. Uma tarefa que já começa em São Bernardo e que provocou mudanças na vida da dona-de-casa Luiza Rodrigues de Oliveira, que morava em casa alugada na Zona Sul de São Paulo com marido e cinco filhos e foi jogada pelo desemprego no lixão do Alvarenga, uma montanha de restos que garantiu seu sustento por 10 anos. Chegou a catar papel e papelão na rua e hoje vive com a família num abrigo provisório da Prefeitura de São Bernardo. 


Luiza agora faz parte da Associação Refazendo de Catadores e Recicladores, entidade criada pelo Programa Lixo e Cidadania da Prefeitura de São Bernardo. Seus filhos não perambulam mais em meio a latas velhas, papel e outros detritos, pois estudam na rede pública de ensino. A história de Luiza é muito parecida com a do ex-metalúrgico Robson Rodrigues da Silva, que depois de trabalhar por dois anos numa empresa da Zona Sul de São Paulo também passou a viver do lixo do Alvarenga. O pedreiro João Batista dos Santos perdeu a conta dos anos em que escolhia material aproveitável no mesmo lixão. "Como ficou difícil arrumar serviço, fui para lá" -- conta João Batista, agora membro do Conselho Fiscal da Associação dos Catadores e Recicladores. Junto com Robson e Luiza, ele ainda trabalha com lixo, mas conseguiu recuperar a dignidade e começa a descobrir o significado da palavra cidadania. 


São Bernardo quer acabar com o buraco negro social representado pelo lixão do Alvarenga, ferida aberta há 30 anos na divisa com Diadema às margens da Represa Billings. O que seria um dos mais belos cartões postais do Grande ABC se transformou em criadouro de gerações de catadores de lixo. Para combater o problema, a Prefeitura implantou o Programa Lixo e Cidadania, que já afastou crianças e jovens da convivência com o lixão e pretende erradicar a atividade de catação tanto no lixão como nas ruas. No lugar da catação feita de forma degradante entrou o trabalho com reciclagem organizado pela coleta seletiva e pelas atividades das associações formadas por famílias que ainda hoje vivem às margens do lixão. O programa é apoiado por entidades internacionais como Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e organizações não-governamentais. A iniciativa, se ainda não eliminou o lixão, já conseguiu o grande feito de colocar na escola 176 crianças que antes viviam entre detritos, além de oferecer oportunidade de trabalho digno às 92 famílias do entorno. 


O lixão do Alvarenga é uma chaga de 40 hectares de área contaminada que consome lixo e vidas humanas. Para inverter a lógica do lixo que atrai miseráveis e joga milhares de crianças em situação de abandono, várias instituições do governo federal, entidades nacionais e ONGs uniram-se ao Unicef e criaram o Fórum Nacional Lixo e Cidadania, do qual faz parte o programa da Prefeitura. A iniciativa de São Bernardo é projeto-piloto desse Fórum. A participação cidadã é o pressuposto do programa, que se desenvolve com base na articulação de co-promotores como o Instituto Pólis, que deu assessoramento técnico à construção do Lixo e Cidadania. Apoiado pelo Unicef, o Pólis despertou outras parcerias como a Fundação Friederich Ebert, da Alemanha, que cooperou com metodologia inovadora, e a Agência de Cooperação Nobiv, da Holanda, que apoiou uma intervenção específica sobre o equilíbrio entre homens e mulheres nas relações de trabalho. O programa atraiu ainda parceiros como Instituto de Governo e Cidadania do ABC, Sebrae e a Escola Politécnica da USP.


"O combate aos lixões é uma questão de segurança nacional" -- afirma Sônia Lima, diretora do Departamento de Meio Ambiente da Prefeitura de São Bernardo e que participa do programa, cujo objetivo central é erradicar o trabalho infanto-juvenil com o lixo, seja na garimpagem do Alvarenga ou com os inconfundíveis carrinhos de coleta de papelão e outros rejeitos com os quais circulam pela cidade. Matéria-prima não falta para garimpar e coletar. Diariamente, quase mil toneladas de lixo são produzidas em São Bernardo. Pior que o lixo das ruas é o do Alvarenga, que ainda recebe despejos clandestinos de entulho da construção civil e resto industrial de várias cidades da Grande São Paulo.


Reciclagem -- Está no lixo de São Bernardo, entretanto, a solução para erradicação do lixão do Alvarenga: são as 140 toneladas diárias de materiais potencialmente recicláveis, como latas de alumínio, garrafas e vidros, plásticos, papel e papelão, que podem ser separadas do lixo produzido na cidade. Desse total, por enquanto apenas seis toneladas são recicladas, pouco mais de 5% do potencial reaproveitável. No Japão, onde a coleta seletiva é a mais organizada do mundo, esse índice é de 10% sobre o total de lixo produzido. "Calculamos que a viabilidade da reciclagem pode alcançar até 20% do lixo produzido" -- informa Sônia Lima. 


Conseguir reciclar o máximo é a equação para eliminar definitivamente o lixão do Alvarenga. Isso porque a produção de materiais recicláveis significa a sustentabilidade do negócio do catador e a coleta seletiva impede que esses materiais se destinem ao lixão, pois uma das metas do projeto a longo prazo é a recuperação ambiental da área. Mesmo que as crianças sejam matriculadas na escola ou até que todas as famílias sejam retiradas, o problema vai existir porque o lixão continuaria a atrair quem deseje despejar rejeitos ou necessite garimpá-los. Foi o que aconteceu em João Pessoa, Paraíba, onde a Prefeitura retirou 600 famílias que viviam do lixo local e as transferiu para casas populares. "Depois de seis meses, apareceram outras famílias para garimpar o lixão, enquanto que a maior parte das famílias retiradas retornou, pois não conseguiu emprego" -- revela a diretora de Meio Ambiente de São Bernardo, que estudou vários projetos antes de implantar o Lixo e Cidadania, em 1997. No caso do lixão do Alvarenga, Sônia Lima acredita que somente uma política metropolitana de saneamento possa enterrar definitivamente a chaga aberta na cidade.


Desde 1997, foram cadastrados 210 catadores de lixo em São Bernardo: 160 que percorriam as ruas e 50 que garimpavam no lixão. Todos receberam a proposta de deixar essa condição de trabalho para começar vida nova nos Centros de Ecologia e Cidadania com a coleta seletiva e a reciclagem. A primeira Casa de Reciclagem implantada resultou de parceria com o Lar Mamãe Clory, instituição beneficente que já trabalhava com reciclagem. A Prefeitura ampliou as instalações e fortaleceu o trabalho doando os recicláveis e articulando parcerias de apoio. Os garimpeiros do lixão formaram a Refazendo -- Associação de Catadores e Recicladores de São Bernardo. Os catadores de rua criaram a Associação Raio de Luz. As duas associações, montadas com apoio do Sebrae e de professores da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), administram os dois Centros de Ecologia e Cidadania em funcionamento na Vila Vivaldi e Bairro Assunção, para onde vai o material reciclável que a população entrega nos Ecopontos. O material é coletado pela Prefeitura para ser separado, valorizado, acondicionado e revendido às indústrias de reciclagem, gerando trabalho e renda ao ex-catador. A Prefeitura estuda a criação do terceiro Centro de Ecologia e Cidadania, na região do Montanhão. 


O apelo é fundamental. Para avançar, o Programa Lixo e Cidadania precisa seduzir a sociedade e a iniciativa privada. "É preciso criar co-responsabilidade entre o Poder Público e a ação da cidadania para eliminarmos o lixão com inclusão social" -- afirma a diretora de Meio Ambiente, que quer mobilizar a sociedade para a prática da entrega voluntária de materiais recicláveis. Em outras palavras, Sônia Lima espera que aumente a disposição e a adesão voluntária da população e das empresas de destinar lixo reciclável para os Centros de Ecologia e Cidadania, onde será comercializado pelos ex-catadores. Hoje, eles são 80 associados que ganham R$ 150 por mês com o trabalho. Para consolidar a inclusão social e engordar a remuneração e a quantidade de participantes do projeto, é necessário aumentar a captação de matéria-prima (os recicláveis) e o número de empresas e condomínios residenciais parceiros. Por enquanto, apenas três condomínios e meia dúzia de empresas participam do programa. Um dos estabelecimentos, a FEI (Faculdade de Engenharia Industrial), implantou coleta seletiva em seu campus. Outro parceiro é a SBCTrans, concessionária de transporte público da cidade que instalou nos 1,5 mil pontos de ônibus dois recipientes, um para lixo comum e outro para reciclável, com a finalidade de incentivar a coleta e a percepção sobre a importância e simplicidade da adesão.


A Prefeitura pretende que a coleta seletiva seja cada vez menos atividade do Poder Público para ficar nas mãos de catadores-empreendedores e da atuação social da iniciativa privada. Sônia Lima cita o exemplo da cidade de New Hampshire, nos Estados Unidos, onde a coleta de lixo tanto reaproveitável quanto descartável não tem participação da administração pública. Passou a ser tarefa da sociedade organizada. "Queremos criar programa específico que organize e envolva a sociedade e o setor empresarial para a cooperação e o desenvolvimento dessa forma de gestão sustentável e independente" -- declara a diretora.


Selo Social -- A idéia inicial é a criação do Selo Social para identificar empresas que apoiam o Programa Lixo e Cidadania. O selo poderia ser usado para os mais diferentes fins promocionais e pode ter apelo forte junto a um público cada vez mais preocupado com a responsabilidade social das empresas. Poderiam utilizar o selo desde um bar que destine latas de alumínio das bebidas que vende até empresa que separe aparas e restos recicláveis para o programa. 


"Um grande hipermercado, por exemplo, que voluntariamente se dispuser a doar embalagens aos catadores estaria produzindo ação de combate à pobreza de grandes proporções" -- acredita Sônia Lima, que chegou a manter contato com empresas de São Bernardo para que destinassem resíduos recicláveis ao programa. Algumas alegaram que não poderiam porque já o comercializam no mercado da reciclagem e o dinheiro da venda servia para custear parte das despesas com transporte e destinação dos rejeitos perigosos para sistemas de tratamento localizados até em outros Estados. A diretora de Meio Ambiente começou, então, a pensar na possibilidade de São Bernardo implantar uma Central de Tratamento para tais rejeitos como forma de reduzir os gastos das empresas, que chegam a enviar produtos perigosos até para outros países. "Precisamos pensar no desenvolvimento e na sustentabilidade sócio-ambiental da região" -- diz. Dessa forma, ceder aparas e todo tipo de resíduo reciclável para o programa Lixo e Cidadania seria uma estratégia em busca de solução local para destinação de todas as emissões sólidas, sejam rejeitos perigosos como lama galvânica, borras de tintas e outros produtos químicos não-aproveitáveis. Outra batalha é conquistar a adesão da população para separar e depositar o lixo nos 192 Ecopontos, grandes recipientes instalados em praças e ruas para coletar papel, vidro, plástico e metal. Esses materiais são depois recolhidos através de coleta seletiva mecanizada feita por caminhões especialmente montados para o trabalho.


A segunda etapa do Programa Lixo e Cidadania é buscar maior envolvimento da sociedade na questão. Essa busca inclui a mais recente parceira internacional do programa, a agência de cooperação canadense IDRC International Development Research Centre, que está investindo R$ 40 mil no projeto Gestão Compartilhada de Resíduos Sólidos Urbanos: Impactos e Potencialidades. Esse projeto a Prefeitura de São Bernardo discutirá em agosto em seminário no qual propostas como o Selo Social também serão debatidas. Também será apresentada no evento a forma de gestão integrada que a Prefeitura encontrou para cuidar do Programa Lixo e Cidadania, ao envolver áreas diferenciadas como Habitação e Meio Ambiente, Educação e Cultura, Saúde, Serviços Urbanos, Desenvolvimento Econômico, Assuntos Jurídicos, Finanças, Obras e Esportes, reunidas num grupo técnico executivo coordenado pela secretária de Desenvolvimento Social e Cidadania, Laerte Soares. "Assim, reduzimos investimentos com recursos já existentes" -- explica Sônia Lima, que se espelhou no modelo público francês para ações integradas. Por causa dessas e outras soluções, o Lixo e Cidadania foi escolhido para ser estudado pela agência canadense IDRC junto com outros programas sociais do Uruguai, Bolívia, Chile, Peru, Argentina e El Salvador. O Unicef, nessa fase, entrou apenas com suporte institucional, pois havia aportado R$ 180 mil na implantação inicial do programa lastreando a participação do Instituto Pólis e do Instituto de Governo e Cidadania do ABC. A Escola Politécnica da USP e Sebrae apoiam a iniciativa com assessores e técnicos. 


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