Administração Pública

Do lixo à mesa de
muitos carentes

VANILDA DE OLIVEIRA - 05/06/2001

Sessenta e cinco toneladas de alimentos chegam todos os meses às mesas de 14 mil carentes, a maioria crianças e idosos amparados em 73 entidades assistenciais de Santo André. Nada demais, não fosse o fato de legumes, cereais, frutas e até pirulitos terem escapado por um triz da lata do lixo para matar a fome desse batalhão de excluídos. Um triz que tem nome: Banco Municipal de Alimentos, primeira iniciativa do gênero na América Latina em esfera pública municipal. 

A instituição completou seis meses em maio, mas é resultado de sonho alimentado durante 20 anos por Newton Narciso Gomes Júnior, economista especializado em abastecimento pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação). Também conta pontos a iniciativa de um ator público, no caso a Prefeitura de Santo André, de investir em carência sempre deixada para o governo federal (mal) resolver: a fome, problema que afeta 22,6 milhões no Brasil segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão do Ministério do Planejamento, e 830 milhões de pessoas no mundo, pelas contas do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas. É muita gente perto dos 30 mil famintos que vivem em Santo André, de acordo com o mix de economista sonhador e realizador Newton Narciso, diretor-superintendente da Craisa (Companhia Regional de Abastecimento Integrado) e responsável pelo Banco de Alimentos. "É inadmissível que uma única pessoa passe fome num país como o Brasil ou mesmo numa cidade como Santo André, principalmente em pleno século XXI globalizado" -- critica.

Frutas com pequenos arranhões, verduras amassadas, queijos e iogurtes se aproximando da data de validade e nenhum segredo provam que o superintendente da Craisa tem razão. O Banco Municipal de Alimentos funciona dentro da companhia de abastecimento na Avenida dos Estados e não é novidade nem obra de gênio. Não exige fórmulas mirabolantes nem batalhão de funcionários públicos ou pacotes de dólares. É programa simples e barato de ser implantado, que custou aos cofres do Município R$ 23 mil, ou menos que um carro zero quilômetro de porte médio. A idéia de recolher e repassar doações é quase quarentona. A primeira experiência surgiu em 1967 em Phoenix, no Arizona, Estados Unidos, onde há hoje mais de 20 bancos. Iniciativas similares se espalham pela Espanha, Itália, França e México. A novidade no caso de Santo André é que o Banco de Alimentos não foi criado por organização não-governamental, mas pela Prefeitura. Isso sim é inédito. Na Capital paulista, por exemplo, o Mesa São Paulo foi criado em 1994 pelo Sesc (Serviço Social do Comércio).

Se é tão bom e simples, por que o prefeito Celso Daniel (PT), já no terceiro mandato, não adotou o programa antes? Newton Narciso, que está na Prefeitura desde 1999, afirma que nas gestões anteriores o governo petista elegeu outras prioridades e urgências para o setor, como colocar a casa em ordem. "Em 1989 fizemos uma revolução no abastecimento, criando a Craisa, e só agora pudemos criar o banco, contemplado dentro de um trabalho maior, o Sistema Municipal de Segurança Alimentar" -- justifica o superintendente.

Com a iniciativa, Santo André ficou à frente na região por ter programa exclusivo de segurança alimentar, que além do Banco de Alimentos nutre outros trabalhos como refeição escolar para 120 mil crianças. No segundo semestre entra em campo o primeiro restaurante popular público do Grande ABC, que cobrará R$ 1 por refeição. O restaurante estará aberto à população, mas destina-se principalmente aos carentes, como ocorre com as quatro unidades mantidas na Capital pela Secretaria de Agricultura do Estado, que também cobram R$ 1 e são sucesso de público. Mais do que alimentar, o restaurante popular terá o papel de devolver um pouco de dignidade e cidadania às pessoas condenadas pela miséria à condição de pedintes. O de Santo André projeta capacidade para servir mil refeições por dia, divididas em cinco turnos de 200 pessoas. O superintendente da Craisa explica que as instalações serão simples, mas confortáveis, e funcionarão em prédio da Prefeitura na região central da cidade, ainda sem endereço definido. Sem citar cifras, Newton Narciso assegura que a criação do restaurante popular terá baixo custo porque a mão-de-obra já existe e será apenas realocada dentro da Craisa. Os equipamentos virão de parcerias com a iniciativa privada, que também deverá fornecer os alimentos. O know-how é do Sesi, que tem larga experiência na produção de refeições de qualidade ao preço de R$ 1.

"A iniciativa vai consolidar o Sistema Municipal de Segurança Alimentar" -- acredita Newton Narciso. O restaurante promete refeição balanceada servida no estilo bandeijão, montado com 1,6 mil calorias em forma de carne, frango ou peixe, arroz, feijão, pão, verdura e legumes, além de suco e sobremesa, provavelmente frutas da estação. O restaurante e o Banco de Alimentos minimizam denúncia feita no início do ano pelo Banco Mundial -- maior supridor de créditos a governos latino-americanos -- contra os programas sociais brasileiros. Segundo a instituição, a maioria das iniciativas está voltada à classe média, pois os recursos e programas nunca chegam aos mais pobres.  

"Quando fui convidado para trabalhar na Craisa impus como condição a criação do Banco de Alimentos. É um programa que tenta garantir aos carentes o resgate da dignidade e cidadania" -- acredita Newton Narciso Gomes Júnior. O Banco de Alimentos também transformou Santo André em ponto de referência para municípios paulistas e de outros Estados que têm feito romaria à Craisa em busca do know-how. Levam para suas cidades mais que conhecimento, já que a Prefeitura não faz segredos do que implantou e fornece kit completo que ensina como montar o banco, além de mostrar as amarras impostas pela falta de normatização a quem quer doar produtos alimentícios que não servem mais para as gôndolas. 

Sim, até doação de alimentos enfrenta a burocracia e o peso da falta de lei no Brasil, dobradinha que desestimula empresas de repassar a milhares de excluídos o que não podem mais aproveitar. Para desatar os nós desse vácuo legal, o Banco Municipal de Alimentos assume o papel de doador, recebendo tudo o que grandes empresas como Coop, Balas Juquinha, Cosnal e Carrefour, entre outras, não podem mais vender, mas que está em perfeitas condições de ser consumido sem risco à saúde. O BMA passa, assim, a ser o doador de fato. O expediente é necessário para evitar que as empresas corram o risco de ser responsabilizadas por eventuais problemas de saúde causados pelos produtos doados, o que nunca ocorreu até hoje. 

O diretor-presidente das Balas Juquinha, Júlio Luigi Sófio, não tem receio de admitir que adoça a lista de doações. Só no final de maio, a empresa de Santo André mandou meia tonelada de pirulitos ao Banco de Alimentos, rapidamente repassados a crianças de creches e casas assistenciais da cidade. O destino dos 500 quilos de doces seria o incinerador, já que o produto era sobra de exportação que, por conta da legislação brasileira, não pode ser vendida no País. "Já tivemos de destruir muitos produtos em razão da lei e da burocracia brasileira. Até para se desfazer dos produtos é preciso de autorização da Receita Federal que, meses depois da nossa notificação, manda fiscal para assistir à destruição" -- conta o empresário, ao garantir que a empresa só faz doações em condições de consumo. Para Júlio Sófio, o Banco de Alimentos de Santo André é alternativa contra o desperdício. "É um programa sério feito por gente esforçada, com total domínio da distribuição do que é doado. É muito triste ver tanta miséria e não poder doar por problemas burocráticos" -- lamenta o presidente das Balas Juquinha. 

Distantes mas vítimas dos labirintos burocráticos brasileiros, crianças como as 420 assistidas pela creche Cidade dos Meninos só têm a comemorar. "O programa tornou mais variada e farta a alimentação das crianças, que agora também podem saborear guloseimas como iogurtes, queijos e doces" -- conta Márcia Todeschini, da coordenação da entidade assistencial com mais de 40 anos que atende 300 crianças de dois meses a sete anos em tempo integral -- leia-se três refeições por dia -- e 120 entre sete e 17 anos em meio período. "Na maioria dos casos, essas crianças e jovens só comem o que servimos aqui" -- afirma a coordenadora. Segundo Márcia Todeschini, a creche gasta R$ 10 mil em alimentos por mês. O BMA garante 10% desse total, além dos cursos de capacitação e reciclagem que ofereceu às cozinheiras e lactaristas da Cidade dos Meninos. "O banco nos ensinou a aproveitar 100% dos produtos que recebemos" -- comenta Márcia.

As 30 mil pessoas que passam fome em Santo André, porque vivem com menos de R$ 2 por dia, integram o dolorido Mapa de Exclusão Social da cidade. Dentro de uma população total de 625 mil moradores, o Poder Público estima existir entre 70 mil e 100 mil na linha extrema de pobreza. São aqueles cidadãos cuja renda não permite padrão mínimo de vida e cidadania -- morar, estudar, trabalhar e muito menos comer o básico recomendado pela Organização Mundial de Saúde, de 2,2 mil calorias por dia. 

Os números da miséria podem, porém, estar muito distantes do real. Os últimos dados da exclusão social em Santo André são de 1999 e, na opinião de Newton Narciso, não retratam mais a realidade porque nos últimos anos o Brasil enfrentou as consequências negativas de duas grandes crises mundiais -- a russa e a asiática. O que é passar fome? "Não ter acesso a uma alimentação digna, saudável e segura, que garanta condições essenciais à sobrevivência" -- explica o diretor-superintendente da Craisa, ao lembrar que, no Brasil, o problema da fome aparece dissolvido no drama dos excluídos. "Vivendo de restos catados no lixo ou prato de sopa doado, o pobre acaba dando um jeitinho" -- explica Newton Narciso, que ambiciona bem mais que as atuais 65 toneladas de alimentos arrecadadas por mês até agora.

Para acabar com a imagem de gente revirando lixo na tentativa de se alimentar, a coordenação do BMA estabeleceu como meta atingir 10 mil famílias, ou seja, 37 mil pessoas nos próximos quatro anos. Para alimentar tanta gente, o banco terá de receber todos os meses 400 toneladas de doações, seis vezes mais do que arrecada hoje. Até o final do ano, Newton Narciso espera bater na casa das 150 toneladas. Espaço para receber e estocar alimentos não falta. "É só construir novos módulos" -- explica. A Craisa está instalada em terreno de 155 mil metros quadrados, dos quais sete mil são de área construída. 

O Banco Municipal de Alimentos conta hoje com 20 grandes doadores e, a partir do mês que vem, terá ajuda de empresa alimentícia transnacional, cujo nome virou segredo de Estado, além dos 60 permissionários (atacado e sacolões) da Craisa. Para fazer parte da lista de beneficiados pelo programa, as entidades do Município têm de preencher três requisitos: distribuir alimentos gratuitamente, estar legalmente constituída e ter aval técnico de nutricionistas e assistentes sociais da Prefeitura. Hoje, alimentos do BMA representam 40% das necessidades da maioria das entidades beneficiadas. É um saldo bastante positivo contra o desperdício no Brasil, que só em alimentos perdidos nas unidades dos Ceasas de todo o País soma prejuízo de R$ 12,6 bilhões, igual a 1,4% do PIB. 

O coordenador operacional do Banco de Alimentos, João Tadeu Pereira, explica que a instituição corre atrás de doação de equipamentos para poder receber mais produtos perecíveis como frios, doces, laticínios e até sorvetes. "A instituição tem câmara fria que comporta apenas duas toneladas de alimentos. Se tivéssemos mais equipamentos, com certeza a doação mensal desses produtos chegaria a 20 toneladas" -- estima. O escoamento de iogurtes e requeijões às vésperas da data de vencimento exige que o já ágil esquema de recebimento/retirada dos alimentos pelas entidades seja ainda mais rápido. Essa logística assistencialista funciona como um relógio suíço nas mãos do afiado João Tadeu Pereira. Ele e sua equipe de 10 pessoas sabem na ponta da língua as necessidades e perfis de cada uma das 73 entidades, por isso garantem que produtos escoem e cheguem no tempo certo às casas assistenciais e às mesas dos carentes. Existe acordo com as entidades para que retirem os alimentos, como ocorre com a Cidade dos Meninos, que tem voluntários para fazer o trabalho.

Já a maioria das empresas doadoras permanece anônima ao público. A falta de normatização para doação de sobras no Brasil torna possível a hipótese de um empresário sofrer processo por ter doado alimento supostamente não-saudável. Daí os empresários pedirem sigilo. O problema é que esse vácuo também inibe ações contra o desperdício como as do Banco de Alimentos. Projeto apresentado pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo e pelo Sesc está parado no Congresso Nacional desde 1996. As entidades pedem a aprovação de lei que torne inimputável civil e criminalmente pessoa física ou jurídica que doar alimentos industrializados diretamente a carentes, entidades, associações ou fundações sem fins lucrativos, no caso de essa doação resultar em dano ou morte ao receptor. 

Em outros países, conta Newton Narciso, a lei permite inclusive o uso da chamada sobra limpa, aqueles pedaços de pizza ou de frango assado que ficam na mesa do restaurante, mas o cliente não pede para embrulhar e levar para casa. "Fome não é falta de alimentos, mas sim resultado da má distribuição de renda. Sobra miséria e faltam iniciativas" -- filosofa o superintendente da Craisa, ao considerar que o Banco de Alimentos transformou-se, em apenas seis meses, em importante braço do programa social de Santo André. É uma gota no oceano de um Brasil que navega sobre números miseráveis, como os três milhões de camponeses mortos pela seca nos últimos dois séculos sob o olhar plácido dos poderes públicos. Cálculos do Ipea revelam que seriam necessários R$ 6 bilhões para suprir a fome dos 22,6 milhões de brasileiros indigentes, que vivem com a vergonhosa renda mensal de R$ 15. São poucos bilhões para um País que se perde em cifras milionárias de corrupção.  


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