Administração Pública

Educação para
os diferentes

WALTER VENTURINI - 05/06/2001

Sílvio Rezende, 30 anos, aprendeu a ler e começou a praticar esportes graças a um serviço da Prefeitura de Diadema. Até aí, nada de novo. A diferença começa pelo fato de o aluno do curso de alfabetização conseguir o título sul-americano de judô. O que amplia a qualidade do trabalho é que Sílvio é cego e conseguiu vencer uma das mais fortes e arraigadas formas de exclusão social: o preconceito contra portadores de deficiências. Combater a exclusão social faz parte do programa da administração petista de Diadema, mas superar as barreiras históricas que isolam os deficientes é batalha ainda não superada pela Prefeitura. Considerado o melhor serviço público de apoio a pessoas excepcionais em todo o Estado, o trabalho foi premiado pela Fundação Getúlio Vargas e também pela Fundação Ford. Trata-se de programa altamente especializado e caro, a ponto de a Prefeitura ter dificuldades em custear algumas atividades e estar em busca de parcerias para desenvolver pesquisas e treinamento de professores.

Histórias como a do judoca Sílvio Rezende são comuns entre os profissionais da Divisão de Educação Especial, mas praticamente desconhecidas da população. As atividades da Prefeitura com deficientes começaram há 13 anos com a criação da Escola Municipal de Educação Especial Olga Benário, que abriga 198 alunos surdos e surdos-mudos em cursos que vão da 1ª à 8ª série do Ensino Fundamental. "Fizemos pesquisa com moradores da vizinhança e descobrimos que 80% não sabiam que ali era uma escola para deficientes" -- revela Lisete Arelaro, secretária de Educação, Cultura, Esportes e Lazer de Diadema.

A sociedade parece querer ignorar ou evitar os deficientes. A exclusão vem desde os tempos antigos, pois se tem notícias de que há 2,5 mil anos crianças da cidade grega de Esparta que nasciam com defeitos físicos eram atiradas num penhasco. Hoje não há sacrifícios dessa magnitude. Pelo contrário, a ciência avança e um dos ícones mais idolatrados é o Projeto Genoma, que descobriu o sequenciamento dos gens e pode contribuir para a cura das mais diversas doenças do homem. Se essa é a meta desejada, o outro lado da moeda da decodificação do gene humano é a exclusão dos que podem ser considerados defeituosos para um eventual padrão de saúde e eficiência. Cardíacos em potencial seriam rejeitados por seguradoras e futuros portadores de deficiências ou síndromes teriam as carreiras profissionais abortadas por um simples exame de sangue.

Marli Vizim é chefe da Divisão de Educação Especial da Prefeitura de Diadema e está atenta a pretensos padrões de qualidade genética que excluam portadores de deficiências. "As diferenças não são sinônimo de desigualdades, mas riquezas que precisamos trabalhar" -- conceitua a pedagoga. Sua rotina de trabalho é acompanhar deficientes físicos, mentais, visuais, auditivos e com distúrbios globais do desenvolvimento, sejam crianças, adolescentes ou adultos. Foi assim que tomou contato com o judoca Sílvio, que apesar de cego trabalhava tocando violão em casas noturnas. "Ele nos procurou para aprender o alfabeto Braile, para cegos. Durante esse contato sugerimos que começasse também a praticar esportes" -- recorda Marli.

Integração -- O trabalho da Divisão de Educação Especial de Diadema tem o mérito de beneficiar portadores de necessidades especiais, mas também de levar a sociedade a saber conviver com suas próprias diferenças. A interação entre crianças normais e deficientes é considerada positiva por Marli Vizim. Não por acaso é uma prática na rede regular de ensino municipal em Diadema desde 1993, quando alunos com deficiência passaram a frequentar as aulas junto com outras crianças. A integração tinha mão dupla -- tanto o aluno com deficiência percebia a possibilidade de convívio social como as outras crianças passavam a aceitar e respeitar o colega que tinha limitações. "A convivência é a melhor possível. As crianças passam a ficar mais atentas com o deficiente e muitas vezes avisam a professora caso o colega esteja com dificuldades" -- explica Marli Vizim.

O convívio nunca é visto como relação entre seres superiores versus inferiores. Como então explicar que um menino de nove anos com distúrbios emocionais consiga fazer operações matemáticas de cabeça, enquanto colegas de classe recorrem ao lápis e papel para resolver a conta? "Ele anda pela sala e fala os resultados para a professora. Mas só lê quando tem vontade" -- lembra Marli Vizim, para quem a própria escola ainda tem muita resistência às diversidades. A pedagoga identifica essa resistência na ausência de formação adequada dos professores para lidar com alunos especiais, nas classes superlotadas que inviabilizam qualquer atenção suplementar para alguns alunos ou mesmo na falta de planejamento das escolas. "Em tais situações, as crianças são só mais um número" -- afirma Marli Vizim.

Para começar a integrar alunos com necessidades educativas especiais na rede regular de ensino, a Prefeitura de Diadema iniciou operação de fôlego em 1994 com a realização do Censo dos Portadores de Deficiência. O trabalho foi o mesmo de um censo feito pelo IBGE. As mais de 68 mil residências da cidade foram visitadas com objetivo de identificar quantos deficientes existiam no Município, quais eram seus problemas e a situação social e familiar. "Conheço poucas pesquisas que deram tanto retorno como essa" -- afirma a secretária de Educação, Cultura, Esporte e Lazer, Lisete Arelaro.

A Prefeitura não tinha até então nenhum dado sobre essa parcela da população. Sabia-se que a OMS (Organização Mundial de Saúde) estimava que nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento pessoas com deficiência representavam cerca de 10% da população. "Os resultados do censo nos deixaram preocupados" -- lembra Marli Vizim, que junto com seus colegas de trabalho contabilizaram 3.141 portadores de necessidades especiais numa população que à época chegava perto de 316 mil habitantes. Significava que dos 10% previstos pela OMS, a Prefeitura havia identificado pouco mais de 1% de deficientes na cidade. A diferença de 9% entre os dois indicadores é atribuída ao pioneirismo da iniciativa e às variadas conceituações sobre o que pode ser considerada uma pessoa portadora de deficiência. O censo deve ser aperfeiçoado pela Prefeitura, de acordo com a secretária Lisete Arelaro.

Apesar da discrepância entre os números da Organização Mundial de Saúde e os da Prefeitura, o levantamento teve o mérito de descobrir inúmeros portadores de necessidades especiais praticamente escondidos pelos parentes em suas casas. O isolamento era a forma que familiares encontraram para proteger os filhos das discriminações da sociedade. Mas também impedia que crianças, jovens e adultos pudessem cursar a escola, recebessem tratamento especializado ou mesmo se alfabetizassem pelo método Braile para cegos e a língua de sinais dos surdos-mudos. A integração das crianças na rede de ensino municipal começou a romper o isolamento. "O mundo dessas crianças, que era até então suas próprias casas, passou a se abrir" -- conta a chefe da Divisão de Educação Especial, Marli Vizim.

Meningite -- Outra constatação do censo feito pela Prefeitura de Diadema fugiu, entretanto, dos padrões da OMS. Os padrões de países emergentes indicavam que o maior número de pessoas especiais é o dos mentais, mas em Diadema predominam os deficientes físicos. A opção em atender primeiramente os surdos e surdos-mudos foi consequência de carências sociais nos anos 70. "Diadema teve grande número de surdos nessa época por causa de surtos de meningite combinados com a falta de atendimento às gestantes" -- explica Marli Vizim.

Além das aulas normais de 1ª à 8ª séries, a Escola Olga Benário passou a oferecer em 1995 salas de recursos para apoio extra a deficientes auditivos e visuais. O atendimento aos cegos era básico para integrá-los à escola. "Não dá para integrar um cego se ele não sabe a linguagem do Braile" -- explica Marli Vizim. Desde aquela época, professores da rede regular de ensino que passaram a ter deficientes em suas salas também começaram a receber formação continuada. Por causa do grande número de deficientes físicos, decidiu-se atendê-los em sala de recursos, criada em 1996. Começava a se esboçar outro serviço da Prefeitura, o Cais (Centro de Atenção à Inclusão Social), efetivado em 1999. Houve também a implantação de outras salas de apoio pedagógico para deficientes mentais e distúrbios globais para crianças e adolescentes com problemas emocionais, tais como autismo, psicose ou portadores de problemas afetivos graves.

Com o início da municipalização do Ensino Fundamental, a Prefeitura de Diadema passou a atender parcela maior de crianças. Hoje 2,8 mil crianças cursam o Ensino Fundamental na rede municipal, entre as quais um contingente maior de portadoras de necessidades especiais. O Cais transformou-se em espaço onde alunos com deficiência passaram a receber apoio de pedagogos habilitados, nos períodos da manhã e da tarde. Deficientes auditivos, visuais, mentais, físicos e portadores de distúrbios globais de desenvolvimento são atendidos no Cais e na rede de ensino municipal por meio de serviço itinerante. Ao todo, utilizam o serviço 550 crianças, jovens e adultos, 350 dos quais alunos das redes de ensino público (municipal e estadual). Por falta de recursos, aproximadamente 40 crianças da rede estadual estão na fila de atendimento, o que evidencia outro problema -- o governo do Estado simplesmente não presta atendimento de apoio aos alunos da rede que administra. O problema tende a ficar mais grave com a política de aprovar o aluno a qualquer custo. "O deficiente vai sendo empurrado e passa de ano on-line. Assim, o Estado está mascarando um processo de inclusão" -- critica Marli Vizim.

Manter serviço de excelência no atendimento a portadores de deficiência tem custo. Nesse ponto da história é que começam os problemas da Prefeitura de Diadema. Por mais que a população da cidade ainda desconheça o trabalho, cada vez mais pais de portadores de deficiência procuram o Cais. "Meu receio é que se crie expectativa de que, se o governo do Estado não faz, a Prefeitura vá fazer" -- desabafa a secretária de Educação, Cultura, Esportes e Lazer de Diadema, Lisete Arelaro, para quem a competência histórica de atendimento a deficientes é do Estado. Ao contrário da Prefeitura, o Estado, além de integrar em sua rede de ensino poucos deficientes -- nunca os mais graves --, não oferece formação continuada e serviços de apoio aos professores. Hoje, dos 550 alunos especiais atendidos pelo Cais, metade vem da rede estadual de ensino e a outra parte da rede municipal. Até deficientes adultos que frequentam cursos de alfabetização e suplência conseguem apoio com os profissionais do Cais.

Como não existe mágica ou efeitos especiais no orçamento municipal, Lisete Arelaro tem dois caminhos para obter mais recursos. O primeiro é buscar parcerias na iniciativa privada, junto a organizações não-governamentais ou até mesmo obter verbas de organismos internacionais, tarefa para a qual já escalou Marli Vizim, sua chefe de Divisão de Educação Especial. A Prefeitura já apresentou à Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) projeto para trabalho conjunto com universidades. Lisete espera conseguir parceria com a Fundação Santo André e com a USP (Universidade de São Paulo) para pesquisas, formação e especialização de professores. Como obter parcerias e financiamentos a fundo perdido é objeto do desejo de todos, os resultados não podem ser previstos a curto prazo.

Outro caminho é reduzir custos, como destinar o transporte de deficientes somente para quem tem dificuldades físicas de locomoção. Isso significa que deficientes auditivos terão de utilizar transporte coletivo normal. "O surdo, dentre outras áreas da deficiência, tem de aprender a andar de ônibus como meta educativa porque não pode ficar na dependência de outros e precisa ter condições para enfrentar a vida concreta de maneira mais autônoma" -- afirma a secretária, que reconhece que a discussão é difícil.

Se a batalha é otimizar as despesas, por outro lado as improvisações não são bem vistas. No começo do ano, as professoras da Escola Olga Benário foram proibidas de pagar os serviços de uma professora de Libras, língua brasileira de sinais ensinada aos surdos e surdos-mudos. A assessoria tinha sido cortada na administração anterior, o que levou à coleta coletiva, prática condenável por todos que defendem condições de trabalho decentes. Cortada em janeiro, a professora teve de voltar a trabalhar em abril de novo com a contribuição coletiva para pagar sua assessoria. A Secretaria de Educação pretende retomar as assessorias específicas para acabar com as contribuições. As professoras da Olga Benário não podem ficar sem apoio da profissional pois a Libras é uma linguagem com a mesma complexidade do chinês ou japonês -- utiliza ideogramas com sinais feitos com as mãos e que transmitem idéias, muito diferente dos fonemas que formam palavras como na língua portuguesa. O impasse mostra a importância vital da busca por excelência na Divisão de Educação Especial de Diadema. Mesmo o combate à improvisação teve de dar uma trégua, diante da extrema necessidade de se manter a qualidade do serviço. "É um processo complicado e delicado. Se não dermos apoio e professores preparados especialmente para trabalhar com os deficientes, eles podem ser rapidamente marginalizados" -- conta a secretária Lisete Arelaro.

Para se ter idéia da complexidade do trabalho com deficientes, muitos pais não conseguem entender os próprios filhos surdos e surdos-mudos que utilizam a linguagem de sinais. Eles buscam a escola Olga Benário e o Cais para que traduzam a comunicação familiar. Foi o caso de um adolescente surdo-mudo que tentou pedir permissão ao pai para ficar num baile até as três horas da manhã. Ele erguia a mão esquerda, colocava a direita sobre o abdômen, rebolava e mostrava o número três com os dedos. O pai não entendeu, mas acenou um sim com a cabeça para acabar com aquela conversa difícil. Só que quis brigar quando o filho chegou em casa de madrugada. A situação só foi resolvida no dia seguinte, quando um professor traduziu o que o filho havia tentado lhe contar.

A Divisão de Educação Especial de Diadema atende crianças a partir de dois e três anos de idade e vai até os adolescentes. Os jovens são as primeiras crianças que estudaram na Escola Olga Benário nos anos 90 -- muitas vítimas do surto de meningite dos anos 70. Para ajudar a integrar os adolescentes ao mundo do trabalho, a Prefeitura de Diadema montou em abril oficina de serigrafia para 30 alunos. Foram contratados um oficineiro e um professor para traduzir as aulas para a linguagem de sinais. "As escolas têm de estar preparadas e os professores têm de ser treinados, pois portadores de necessidades especiais precisam de mais atenção do que pessoas normais" -- afirma Antônio Tenório da Silva, outro judoca cego que ganhou duas medalhas em Para-Olimpíadas -- Atlanta, em 1996, e Sidney, em 2000. Tenório mora em Diadema, tem 30 anos e há 11 perdeu totalmente a visão. Na época não existia atendimento para cegos na Prefeitura. Começou a praticar esportes no Volkswagen Clube, em São Bernardo, e na Associação Batista de Diadema, que não existe mais. O campeão para-olímpico na categoria dos 90 quilos não chegou a trabalhar no Cais, mas foi através da Prefeitura de Diadema que passou a treinar Sílvio Rezende, o rapaz que se revelou no esporte ao aprender a linguagem Braile. Tenório fala sobre a necessidade de aperfeiçoar o trabalho com a autoridade de quem tem deficiência e também se dedica a ensinar aqueles que querem se integrar e mostrar eficiências para toda a sociedade.


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