Administração Pública

Incubadora de
bons motoristas

ISAIAS DALLE - 05/03/2002

Com o trajeto já desenhado na memória, o motorista acelera o automóvel muito além do que deveria nas ruas da cidade. Satisfeito pela paciência que demonstrou no primeiro semáforo vermelho encontrado pelo caminho, resolve desprezar o sinal seguinte. O trânsito lhe pareceu livre. Esse erro de avaliação se manifesta logo em seguida, no estrondo seco vindo do violento choque de veículos em uma das principais esquinas do Município.

Apesar de toda a sequência ter sido flagrada por câmeras que fiscalizam o trânsito, a infração vai render para o autor, no máximo, uma admoestação. E nenhuma punição poderia ser mais responsável que essa. Afinal, o imprudente é apenas uma criança e o acidente ocorreu durante uma das aulas interativas do CRT (Centro de Reflexão do Trânsito), criado pela Prefeitura de São Bernardo para formar bons motoristas. Os carros que bateram são miniaturas guiadas por controle remoto e percorriam avenidas de uma caprichosa maquete, na qual a realidade e seus perigos são simulados. Nesse caso ainda há, portanto, tempo de fazer do agora inofensivo infrator um motorista responsável e comprometido com a vida.

Foi a partir dessa aposta no futuro que foi criado o CRT, em 2001. Com área de 6,3 mil metros quadrados e 4,1 mil metros quadrados de instalações próximas ao Ginásio Poliesportivo, o CRT consumiu R$ 2,6 milhões. A maioria dos visitantes são crianças, já que o espaço foi idealizado preferencialmente para elas. Duas maquetes atraem com mais força o olhar por reproduzir prédios e vias da cidade, habitados por pequeninos bonecos e vigiados todo o tempo por câmeras miniaturas -- semelhantes às que tanto amedrontam motoristas na vida real. 

Ao lado das maquetes montadas em parceria com a Lego Data, salas reproduzem centros de controle, que mostram através de monitores de TV o que se passa nos cruzamentos cenográficos. Nas maquetes estão 580 mil bloquinhos de encaixar da Lego que reproduzem os principais pontos da cidade. Nas salas virtuais, computadores, simuladores de direção, aceleradores, freios e óculos virtuais permitem dirigir como se se estivesse nos carros que integram a maquete. Lá fora, a céu aberto, uma estreita e sinuosa pista de asfalto é cenário para que pedestres e ciclistas -- estes também no papel de motoristas -- vivenciem a relação entre os dois protagonistas do trânsito e assimilem suas regras.

Os adultos, que muitas vezes chegam ressabiados por se julgarem experientes o bastante, também são alvo do Centro de Reflexão do Trânsito. Muitos são motoristas profissionais levados pela Prefeitura para simples atualização pedagógica, já que a reeducação de quem estoura o limite de pontos negativos cabe ao governo estadual e não aos municípios, segundo o Código de Trânsito Brasileiro. Para cada uma das quatro faixas etárias -- de alunos do Ensino Infantil à terceira idade --, há diferenças entre os programas do CRT, embora as atividades sejam as mesmas.

A educação para o trânsito já começa nas peças teatrais, que constituem a primeira atividade da visita e cujo conteúdo é, evidentemente, a vida sobre o asfalto. Para os adultos há diferenças como, por exemplo, pilotar através de máquinas de realidade virtual em lugar de conduzir miniaturas automobilísticas. O programa ainda inclui, entre outras atividades que surgem ao sabor do momento, a exibição de vídeos e a realização de uma gincana. Cada grupo permanece de três a quatro horas no local. Gratuitamente, uma média de 11 mil pessoas visitou o centro em 2001 ao longo de oito meses, correspondentes ao período de atividades escolares.

Parte importante da estratégia pedagógica do CRT é que cada participante desempenhe os vários papéis que compõem o trânsito moderno: motorista, pedestre, fiscal de trânsito e monitor à distância. Essa multiplicidade de experiências é um traço comum e fundamental a todos. Ora o participante pode estar observando o comportamento alheio através dos monitores da sala de controle, ora sendo observado. Ou, então, às vezes na posição de potencial agressor ou de potencial vítima. "É uma forma lúdica de fazê-los entender que cada elemento existe para buscar o bem comum e não para antagonizar-se, como muitas vezes se faz no mundo real" -- comenta Laerte Francisco Pinto, diretor do DET (Departamento de Engenharia de Tráfego) de São Bernardo.


Tocar a emoção -- Ainda na fase de implantação do Centro de Reflexão do Trânsito, o DET já buscava uma fórmula que tocasse a emoção das pessoas além do que palestras ou memorização de placas de trânsito seriam capazes de fazer. Esse desejo possibilitou o encontro, durante uma feira especializada em que era expositora, da empresa Teatros Promoções e Eventos. Voltada exclusivamente a uma nova consciência no trânsito, a Teatros utiliza montagens cênicas e jogos como métodos de formação. Contratada pelo DET, a empresa contribuiu para forjar a alma do projeto.

Alma que pode ser traduzida pelo papel transformador exercido por quem não tem sequer carteira de motorista. "Não é preciso esperar que as crianças cresçam para começar a mudar a realidade do trânsito" -- garante Rosane Frerichs, criadora da Teatros. "São elas que chamam a atenção dos pais quando são imprudentes ao volante" -- completa Rosane, mãe de três filhos, preocupadíssima com estatísticas que ainda colocam o Brasil entre os campeões mundiais de acidentes nas estradas. Dados do ano 2000 do Denatran indicam que morreram seis brasileiros para cada 10 mil veículos, o dobro do padrão internacional. Segundo Rosane Frerichs, uma forma de comprovar a tomada de consciência das crianças são os relatos de pais e professores que já levaram alunos ao CRT. "São muitas histórias que nos mostram isso, além dos casos que presenciamos" -- garante.

O testemunho de Espelina Rodrigues Santos Pereira, mãe de Bárbara, 7 anos, confirma a tese: "A Bárbara é muito observadora. Antes, ninguém em casa usava cinto de segurança no banco traseiro. Hoje, ela não deixa entrar quem não promete que vai usar cinto" -- conta Espelina. A pequena Bárbara também não se conforma com outra displicência, notada nos motociclistas. "Tem de usar capacete. Até eu, que vou ganhar uma bicicleta de presente, pedi um capacete" -- comenta a menina.

A mãe de Bárbara lembra que a melhor maneira de mudar comportamentos é formar boas crianças. "É nessa idade que se aprende". Foi uma preocupação materna, aliás, a semente brasileira dessa metodologia de conscientização no trânsito. Rosane Frerichs, antes mesmo de imaginar que abriria a Teatros Promoções e Eventos, costumava ficar com o coração na mão ao ver os dois primeiros filhos, à época com três e quatro anos, irem de perua para a escola ou serem conduzidos por empregados da casa. "Para mim estava claro que todos eles eram imprudentes, despreparados" -- lembra. A inquietação com a segurança dos filhos permanecia quando Rosane já estava no escritório da Caixa Econômica Federal, onde trabalhava.

Era a segunda metade dos anos 1980. "Decidi tentar fazer algo enquanto meus filhos estavam vivos" -- costuma dizer a baiana de Salvador, cidade em que ela acredita existir a maior proporção de maus motoristas no País. "Em geral, são despreocupados com as demais pessoas que estão na rua, só pensam neles mesmos" -- considera. Em lugar de despedir quem transportava seus filhos, Rosane Frerichs passou a estudar o trânsito brasileiro com a finalidade de descobrir meios de educar os motoristas. Alguns anos e muitas pesquisas depois, em 1988 ela conseguiu dar partida à sua proposta lúdica de educação para o trânsito, hoje adotada pelo CRT de São Bernardo. A empresa Teatros, que emprega dezenas de atores profissionais e educadores, presta assessoria para outras cidades e Estados brasileiros. 

A encenação teatral, parte fundamental na proposta do CRT, ganha também as ruas. Dependendo de qual campanha educativa está em curso, os atores desempenham vários papéis. Vestidos de anjos, por exemplo, ficam em faróis para dizer que o céu já está bastante povoado e não quer receber mais acidentados de trânsito. Durante o Carnaval, em trajes de foliões, pedem serenidade. Autora de livros e peças infantis sobre trânsito, Rosane Frerichs e a Teatros já receberam quatro prêmios concedidos pela empresa sueca Volvo, que promove diversas ações voltadas à segurança no trânsito, inclusive uma premiação anual há mais de duas décadas. 


Multas e estacionamento -- Frente à ausência de algo semelhante em muitas cidades brasileiras, o CRT é inegavelmente inovador. Consome pequena parte do orçamento de R$ 25 milhões anuais à disposição do DET de São Bernardo, arrecadados através de cobranças de multas e de estacionamento rotativo. Como o investimento no Centro de Reflexão do Trânsito foi de R$ 2,6 milhões, representou, portanto, 10,4% do orçamento da pasta municipal em 2001. O custo anual, estimado em R$ 840 mil, alcança 3,3% do orçamento. Os R$ 25 milhões arrecadados pelo DET representam bastante em diversas situações. São, por exemplo, quase metade de tudo o que Ribeirão Pires arrecadou no ano passado, quando registrou orçamento de R$ 56 milhões.

O restante do orçamento de trânsito em São Bernardo deve ser aplicado, basicamente, em sinalização e estudos de mudanças viárias que desafoguem as ruas. E, especialmente, em fiscalização, seja através de câmeras ou de agentes. O diretor do DET Laerte Francisco Pinto apresenta números para mostrar o acerto da estratégia atual. A tendência de queda no registro de acidentes em São Bernardo tem como marco inicial 1998, ano da entrada em vigor do CTB (Código de Trânsito Brasileiro). Depois de um pico de aproximadamente 13 mil acidentes em 1997, o número passou para 11,1 mil em 1998 e chegou a 6,1 mil em 2000. 

Por outro lado, e de maneira preocupante, o número de 40 mortes em 2000 foi maior que as 37 registradas em 1994, quando ainda não havia o novo código de trânsito nem parafernálias eletrônicas. Pode-se argumentar que a frota de veículos na cidade aumentou, mas isso não impede que os números sejam preocupantes, sobretudo porque a proporção de vítimas fatais em relação ao total de acidentes é maior. Em 94, aconteceram 9,8 mil acidentes de trânsito na cidade, contra os 6,1 mil de 2000. São Bernardo concentra um dos mais altos índices de veículos do País -- 330 mil automóveis, um terço da frota de 936 mil carros do Grande ABC cadastrados no Detran, segundo dados deste início de 2002. A frota na região tem crescido 5% ao ano, em média.


Leia mais matérias desta seção: Administração Pública

Total de 813 matérias | Página 1

15/10/2024 SÃO BERNARDO DÁ UMA SURRA EM SANTO ANDRÉ
30/09/2024 Quem é o melhor entre prefeitos reeleitos? (5)
27/09/2024 Quem é o melhor entre prefeitos reeleitos? (4)
26/09/2024 Quem é o melhor entre prefeitos reeleitos? (3)
25/09/2024 Quem é o melhor entre prefeitos reeleitos? (2)
24/09/2024 Quem é o melhor entre prefeitos reeleitos? (1)
19/09/2024 Indicadores implacáveis de uma Santo André real
05/09/2024 Por que estamos tão mal no Ranking de Eficiência?
03/09/2024 São Caetano lidera em Gestão Social
27/08/2024 São Bernardo lidera em Gestão Fiscal na região
26/08/2024 Santo André ainda pior no Ranking Econômico
23/08/2024 Propaganda não segura fracasso de Santo André
22/08/2024 Santo André apanha de novo em competitividade
06/05/2024 Só viaduto é pouco na Avenida dos Estados
30/04/2024 Paulinho Serra, bom de voto e ruim de governo (14)
24/04/2024 Paulinho Serra segue com efeitos especiais
22/04/2024 Paulinho Serra, bom de voto e ruim de governo (13)
10/04/2024 Caso André do Viva: MP requer mais três prisões
08/04/2024 Marketing do atraso na festa de Santo André