Administração Pública

De que lado
eles vão ficar?

WALTER VENTURINI - 05/03/2002

Até pouco tempo atrás, morar na favela Naval, ícone da violência urbana no Brasil, ter entre 14 e 17 anos e tomar conta de carros em estacionamento de supermercado era o passaporte carimbado para uma vida marginal, seja no exército do crime organizado ou na multidão de desempregados que recheia a periferia dos grandes centros. Jovens dessa e de outras favelas de Diadema tentam agora dizer não à marginalidade com o projeto Adolescente Aprendiz, parceria da Prefeitura com empresas da cidade para mostrar a possibilidade de dar vida digna a quem até agora teve pela frente somente o exemplo do narcotráfico, de roubos e outros delitos. Mais de mil jovens vivem hoje a rotina de locais de trabalho, recebem R$ 130 de bolsa-aprendizado e começam a descobrir um mundo muito diferente do universo de miséria com o qual tiveram contato até agora. Até o final do ano, a Prefeitura pretende que pelo menos dois mil adolescentes participem do projeto e, assim, comecem a vencer a disputa decisiva da influência do crime.

Dermeval Sanchez, gerente de Relações Humanas da Autometal, autopeças com 800 funcionários, não acreditou no pedido que recebeu no final do ano passado: três jovens não queriam sair de férias coletivas que a empresa tradicionalmente concede em dezembro. Os garotos fazem parte do projeto Adolescente Aprendiz e estavam entusiasmados com as tarefas na empresa. Queriam trabalhar ao invés de fazer o que todo jovem adora, isto é, aproveitar o verão e as férias escolares. "A Naval ficou com triste fama a partir do episódio da violência policial e era necessário resolver o problema dessa garotada" -- afirma Dermeval Sanchez. A vontade de aprender impressionou o executivo da Autometal, empresa que já admitiu seis jovens e contribui com o valor de 10 bolsas-aprendizado. As quatro vagas restantes serão preenchidas por garotos que terão de passar primeiro por um curso de alfabetização.

Foi a morte de uma colega dos três rapazes aprendizes da Autometal que motivou o prefeito de Diadema, José de Filippi Junior, a criar o projeto Adolescente Aprendiz. Eliana tinha 14 anos, vivia na favela Naval e estava fora da escola. O envolvimento com o narcotráfico está entre os motivos apontados pela Polícia para explicar a morte da jovem, ocorrida em março do ano passado. O crime não passou despercebido do prefeito de Diadema, que logo na posse, em janeiro de 2001, havia montado a Coordenadoria de Defesa Social para ser abastecido de relatórios sobre as principais ocorrências da cidade. Na época, Filippi também lia o livro Meu Casaco de General (Companhia das Letras), do ex-coordenador de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares. "Ele fala que a sociedade tinha de disputar com o narcotráfico a influência sobre os adolescentes. Mas o que existia aqui era somente um projeto do governo estadual para jovens maiores de 16 anos. Aí me deu um estalo: e os adolescentes de 14 e 15 anos?" -- lembra o prefeito, que também conhecia as restrições do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para o trabalho de menores de 16 anos. 

Para disputar com o narcotráfico o futuro de milhares de jovens, José de Filippi Junior fez nova leitura da legislação, que indica a condição de aprendiz para a faixa de 14 e 15 anos.  O prefeito conta que, ao contrário do projeto do governo do Estado, que escolhe os jovens mais preparados, o Adolescente Aprendiz quer todos, mas principalmente os piores, aqueles em situação de exclusão, de risco, a um passo da criminalidade. 

O novo projeto apontava para uma intervenção mais profunda nas áreas de maior risco, para atingir quem tem maior envolvimento com a violência, num contato muito próximo com o tráfico de drogas, alcoolismo, roubos e outros subprodutos da miséria. O passo seguinte foi buscar o apoio da sociedade. Do Banco do Brasil, o prefeito conseguiu a viabilização de cartão personalizado para pagamento da bolsa-aprendizado de R$ 130 mensais. Num País onde a maioria da população não dispõe de conta bancária, o cartão representa elemento importante de cidadania. "É um dinheiro que vem de forma mais digna do que uma ajuda e muitas vezes é a única renda da família, na qual todos os outros estão desempregados" -- revela a pedagoga Sylvia Antonietta Gasparini, coordenadora-geral do Adolescente Aprendiz. Outra ajuda veio da Associação Desportiva Classista Mercedes-Benz, o Clube da Mercedes, que cedeu as instalações para atividades esportivas e culturais do projeto. Mas a principal contribuição é das empresas, que devem tanto aceitar os adolescentes para estágio como pagar a bolsa-aprendizado.


Adesões -- O prefeito José de Filippi confessa que ainda não conseguiu a adesão que pretendia: apenas 16 empresas da cidade apóiam o projeto e bancam 100 das atuais 1.180 bolsas. Outras 100 bolsas são mantidas pela Saned (Saneamento de Diadema), empresa de economia mista ligada à Prefeitura. "A adesão ainda está tímida. Não fosse o Poder Público, o projeto não teria essa dimensão. Precisamos e queremos o apoio dos empresários" -- declara o prefeito. Participam do projeto Aero Mack, Autometal, Dana Nakata, Faparmas, Imbras Indústria Química, Kapp Tec, Legas Metal, Metaltork, Prensas Schuller, Sintefina, SMS Tecnologia Eletrônica, TRW, Toro, Papaiz, Byk Química e Farmacêutica e Saned. O Adolescente Aprendiz conta hoje com 35 funcionários de várias secretarias da Prefeitura. Para atender dois mil jovens até o final do ano, a estrutura terá de ser ampliada para mais de 100 pessoas, na avaliação da coordenadora Sylvia Gasparini.

Trabalhar com os piores pode não ser inicialmente atraente para as empresas, mas o investimento social é de médio e longo prazo. "Fomos na favela da Coca-Cola, cadastramos 230 jovens e descobrimos que 17 nem estavam na escola. Imagine o que esses adolescentes seriam daqui a dois anos" -- instiga o prefeito. Assistentes sociais da Prefeitura foram até a casa de cada um dos 17 jovens, conversaram com as famílias e providenciaram a matrícula de todos na escola, além de integrá-los ao projeto. Mesmo os que estão formalmente matriculados na rede de ensino, entretanto, não têm aproveitamento próximo do aceitável, o que obriga a Prefeitura a dar formação básica, como curso de alfabetização, para iniciar as aulas regulares do Adolescente Aprendiz. "Acho absurdo um menino cursar a 5ª série do Ensino Fundamental e não saber ler. Pior do que a violência com a qual ele está envolvido é o Estado deixá-lo na ignorância" -- critica Sylvia Gasparini. Tantos os piores como os melhores vivem o processo de descoberta de uma nova vida. "Na Naval, havia um menino cujo sonho era ter um ferro-velho como o pai. Outro queria ser piloto de fuga para assaltos e outro pretendia ter uma boca-de-fumo. Vamos abrir outras portas para termos mudança de postura dessa molecada" -- assegura a coordenadora.


Cidadania -- Trabalhar o imaginário do jovem das favelas de Diadema exige tempo e o projeto Adolescente Aprendiz dispõe de um ano para apresentar uma nova vida para rapazes e moças carentes. Durante esse período, o jovem complementa a jornada de estudos e aprendizado. Caso a coordenação do projeto avalie, poderá ter a participação prorrogada por mais um ano. Se as aulas regulares são pela manhã, à tarde o adolescente vai para o projeto, e vice-versa. Durante dois dias da semana, o aluno tem noções de trabalho e cidadania e passa a conviver com conceitos como família, comunidade, escola, mundo, sexualidade e drogas. No outros dois dias, frequenta aulas da disciplina Habilidade Específica e passa a conviver com noções e técnicas de escritório. A Fundação Florestan Fernandes, entidade de formação profissional ligada à Prefeitura, participa dessa fase com monitores que vão às escolas onde o projeto se desenvolve, sempre próximas da moradia dos alunos. O quinto dia da semana é reservado para atividades de cultura, esporte e lazer. 

No segundo semestre o jovem vai para o aprendizado durante dois dias da semana. Nos outros ele continua estudando e com atividades esportivo-culturais. Sylvia Gasparini é enfática quando fala da necessidade de ocupar o tempo dos jovens de famílias carentes. "A maioria diz que filho de pobre não pode estudar num período e ficar à toa em outro. Tem de trabalhar. Nas famílias mais abastadas, quando o filho opta pelo vício, podem pagar um tratamento. Os pobres não têm essa possibilidade" -- declara.

A possibilidade foi abraçada com determinação por 339 jovens que compõem a primeira turma do projeto, iniciado em junho de 2001. A Naval, favela que inspirou o prefeito, teve 50 jovens matriculados. Outra área crítica, o Morro do Samba, entrou com 60 adolescentes inscritos. Outros 229 rapazes e moças da favela Nova Conquista completaram a primeira turma. O segundo contingente começou este ano, com 141 jovens do Bairro Eldorado, 222 do Núcleo Habitacional Celite, 261 da Vila Olinda e 218 do Jardim Inamar. 

Buscar cooptar o adolescente em situação de risco para a vida em sociedade requer abnegação. O exemplo ocorreu com três alunos do projeto que fugiram das aulas para fumar maconha perto da escola e acabaram presos pela polícia. "A professora foi com eles até a delegacia. Os jovens, então, começaram a perceber que havia alguém preocupado com eles" -- revela Sylvia Gasparini, que começou a trabalhar com jovens na Pastoral do Menor em 1981, quando fez parte do primeiro grupo de rua montado pela Igreja Católica. Alguns alunos são autores de atos infracionais e passam por medidas socioeducativas -- a liberdade assistida com prestação de serviços à comunidade. "Há empresas que até querem contribuir com a bolsa-aprendizado, mas não querem que os meninos entrem na fábrica. Insistimos para que eles aceitem, porque os jovens precisam se sentir respeitados" -- conta Sylvia Gasparini. "Sem as empresas, o projeto não caminha, não só por causa do dinheiro, mas pela questão da cidadania, dos jovens se encaixarem na sociedade, com a empresa mostrando uma visão diferente de mundo" -- explica o pedagogo Luiz Antonio Rodrigues dos Santos, assistente de coordenação do projeto.


Sonhos -- Diadema tem 207 núcleos favelados, onde moram 120 mil pessoas, ou um terço da população total. Não há ainda estimativa de quantos tenham entre 14 e 15 anos. Mas sem dúvida a maior conquista do Adolescente Aprendiz seja trocar os sonhos desses garotos, fazê-los descobrir outro tipo de vida. Até mesmo desejos de consumo podem ajudar a afastar os adolescentes da marginalidade. É o caso dos três garotos que começaram a fazer o aprendizado na Autometal. Erison José da Silva, 15 anos, Ezequiel Pereira Lima, 16 anos, e Magno Alves dos Santos, 15 anos, moram na Naval. Antes de entrarem no projeto, ocupavam o tempo guardando carro no estacionamento do supermercado Makro, próximo à favela. Hoje, os três vestem roupas esportivas, usam tênis novos e fazem questão da chamada boa aparência. 

"Com o dinheiro, ajudo minha mãe e compro roupa para mim" -- conta Erison, estudante da 1ª série do Ensino Médio, que mora com pai, mãe e três irmãos. Antes do projeto, queria ser motorista. Agora sonha em trabalhar no escritório da Autometal. "Aqui você aprende alguma coisa, uma profissão" -- aposta Ezequiel, aluno da 8ª série do Fundamental, que vive com seis irmãos, mãe e pai, para quem entrega parte da bolsa-aprendizado, já descontado o gasto com roupas e sapatos.

Magno também está entusiasmado com o projeto. Estuda na 8ª série e mora com mãe, pai e dois irmãos. Além de nova perspectiva de vida, Magno agora pode treinar mais como goleiro de futebol-society. "Antes não tinha quadra para jogar" -- diz o jovem. Todos eles foram estimulados a adotar outro padrão de vida, só possível com trabalho e estudo. Tudo indica que a opção agradou os adolescentes da Naval, pois os três garotos dizem que outros colegas os procuraram para se inscrever no projeto.


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