Se não estivessem encapsulados dentro dos anos dourados da economia regional, dirigentes do Grande ABC teriam modificado os rumos que levaram à quebra da competitividade da região. Um projeto estratégico estabelecido há 30 anos e agindo sobre fatores como impostos municipais crescentes, custos da mão-de-obra e queda da qualidade de vida teria se antecipado aos atuais problemas de evasão industrial, omissão empresarial e baixa representatividade política.
É com essa metralhadora acionada que a Gráfica Bandeirantes está deixando o Grande ABC, após 49 anos de atividades. Precisa dar sobrevivência aos negócios e o novo endereço passa a ser Guarulhos, após estudo detalhado sobre logística e operacionalidade. As críticas do diretor Mário César de Camargo não são para cuspir no prato que comeu. São, antes de tudo, para alertar agentes locais de que é possível requalificar o Grande ABC, onde continua morando. "Não tenho visto resultados concretos da atuação dessas agências no sentido de minimizar o esvaziamento econômico da região" -- lamenta, sobre os vários órgãos institucionais, públicos e sociais, criados para repensar o Grande ABC. Dos 76 municípios que a Simonsen & Associados mapeou para a competitividade da Gráfica Bandeirantes, nenhum é da região.
Mário César de Camargo chega a brincar sobre o Complexo de Gata Borralheira do Grande ABC em relação ao poderio econômico e político da Capital e emenda que também temos Síndrome de Caim e Abel. "Nossas diferenças bairristas impedem-nos de ver o quadro maior e todos perdemos" -- alfineta.
Se dependesse da consultoria prestada pela Simonsen & Associados, a Gráfica Bandeirantes iria para Mairiporã, Atibaia ou Franco da Rocha. O que esses três municípios oferecem de vantagens estratégicas para o setor gráfico que o Grande ABC não tem?
Mário César de Camargo -- O estudo leva em consideração o CGP (Centro Geográfico Ponderado), extraído da matriz de insumo-produto da Gráfica Bandeirantes. Ou seja, o levantamento considera os recebimentos de materiais e a saída de produtos acabados, ponderados pelos respectivos valores. O CGP para nosso ambiente fornecedores-clientes é Franco da Rocha. A partir daí, foram classificados 76 municípios segundo os conceitos de facilidades operacionais, qualidade de vida e incentivos fiscais. Classificados segundo critérios técnicos, sociais, políticos, ambientais e financeiros, os municípios receberam notas. Na sequência, Mairiporã, Itatiba, Monte Mor, Paulínia, Nova Odessa e Guararema receberam as maiores notas. Curioso notar é que todos fazem parte do trecho norte do Anel Rodoviário. As principais vantagens são, pela ordem: salários menores, incentivos municipais (cessão de terreno, isenções municipais) e custos de transporte, fator derivado da distância do Rodoanel.
Quais pontos positivos o Grande ABC ainda oferece para sua atividade, detectados pela Simonsen Consultores, e que poderiam levar a reverter num futuro qualquer a desativação da fábrica em São Bernardo?
Mário César de Camargo -- Nenhum Município do Grande ABC foi recomendado nessa fase inicial do estudo. O resultado mostrou que 3/4 da economia viriam da junção das três fábricas, onde quer que ocorresse, pela óbvia sinergia. Portanto, o estudo está inacabado, necessitando de refinamento, conforme a própria consultoria recomendou. Estamos consolidando em Guarulhos porque é a única fábrica que pode acomodar as outras duas. Retomaremos o estudo tão logo nos consolidemos em Guarulhos. A partir daí serão qualificados os pontos positivos de cada cidade, ponderados pela realidade da Gráfica Bandeirantes. Para exemplificar: os salários foram tomados como média industrial das respectivas regiões, que não reflete as condições específicas da nossa empresa. Mas, à exceção dos salários, os dois outros fatores dependem da interferência municipal: incentivos e transportes.
Portanto, são esses dois fatores, da alçada decisória municipal, que podem reconduzir a Bandeirantes de volta ao Grande ABC. Se os municípios cuidarem disso, dos salários cuidaremos nós.
Devido às dificuldades de o Grande ABC patrocinar qualquer coisa que ao menos lembre guerra fiscal setorial para manter as indústrias que são seduzidas por propostas de transferências, qual o futuro que se reserva para a região? Haverá cada vez menos empresários dispostos a correr o risco de perder mercado por estarem em desvantagem competitiva diante de concorrentes instalados em outras regiões?
Mário César de Camargo -- O Grande ABC ainda tem um diferencial interessante na mão-de-obra qualificada. Essa força de trabalho foi treinada em processos, técnicas, equipamentos e qualidade por empresas da região. Obviamente não estamos falando da mão-de-obra analfabeta funcionalmente, mas é lamentável ver tanto investimento em gente técnica desperdiçado no subemprego ou deslocado da região. Esse fator, entretanto, tem sido contrabalanceado por ofertas tentadoras de outros municípios, ávidos por investimento produtivo, na concessão de áreas e isenções temporárias. Como empresa, temos de oferecer aos clientes relação custo-benefício adequada, não importa onde seja impresso o produto.
Tanto é verdade que, após 13 anos de atividades, estamos fechando a unidade de Campinas. Os clientes da região buscam alternativas em São Paulo, sem qualquer concessão adicional de preço, pela proximidade geográfica. Como nós, nenhum empresário pode se dar ao luxo de ignorar a competitividade de custos, sob pena de falência.
Caberá ao Grande ABC escolher, dentre as empresas que se dispuserem a estabelecer-se na região, as que trazem maior valor agregado, as que incorporarem mais tecnologia, maior retorno em impostos estaduais e federais, as mais limpas, com a maior folha de pagamento ou número de funcionários. Um bom exemplo é Hong Kong, uma cidade-Estado que exporta seis vezes mais produtos gráficos do que o Brasil. Com espaço limitado, eles preferem agregar US$ 1.250 à tonelada do papel branco, exportando livros a US$ 2 mil a tonelada, do que fabricar papel, importado a US$ 700 inclusive do Brasil. Até porque uma fábrica de papel ocuparia todo o território da ex-colônia britânica.
Como se sente a família Camargo, uma tradição no Grande ABC não só em empreendedorismo mas também em participação social, tendo de decidir pela transferência da fábrica para Guarulhos? O que significam os 50 quilômetros que distanciam a fábrica de São Bernardo da unidade de Guarulhos não em termos geográficos, mas de afastamento das questões regionais?
Mário César de Camargo -- Sou daqueles andreenses que sabem cantar o hino da cidade; do tempo em que havia vestibulinho para o Américo Brasiliense. Se tiver que me mudar daqui, provavelmente terei de separar-me da Denise, minha mulher. Seria mais fácil arrancar os eucaliptos do Parque Celso Daniel do que tirá-la daqui. Não pretendo afastar-me das questões do ABC, até pela presença contínua no Rotary Club de Santo André e outras instituições da região. Mas certamente aumentarei minha milhagem no circuito Aricanduva-Anhaia Melo-Avenida dos Estados.
Observando-se a economia do Grande ABC sob o ponto de vista crítico e em perspectiva histórica, o que o senhor colocaria como principais elementos da quebra de competitividade como região? Quais foram os fatores que determinaram nossas dificuldades atuais? Estariam relacionadas a responsabilidades locais ou pesam mais significativamente as esferas estaduais e federais?
Mário César de Camargo -- Processo semelhante ocorreu com Detroit, meca das montadoras norte-americanas. As fábricas da BMW e Mercedes nos EUA, construídas na década passada, passaram longe do Estado de Michigan, culminando num processo de descentralização fabril que começou na década de 50. Nossos dirigentes poderiam ter-se espelhado na péssima experiência americana, para citar uma, e agir preventivamente, diversificando nosso parque industrial. Um exemplo de desenvolvimento induzido ocorreu na Carolina do Norte, região de Raleigh, chamada de Research Triangle Park. Quarenta anos atrás, era um pântano. O governador do Estado concedeu incentivos às empresas de tecnologia que se instalassem na região, atraídas pela mão-de-obra fornecida pelas Duke University, North Carolina State e uma terceira de que não me lembro. Hoje, aglutina empresas como IBM e Ericsson, além de centenas de outras empresas inteligentes.
Acho que os principais fatores da quebra de competitividade foram:
1) No nível municipal, os custos da mão-de-obra, a ação do sindicalismo na década de 80 (que amadureceu desde então, mas ficou estigmatizado), o alto custo de vida, os impostos municipais crescentes, a queda na qualidade de vida e a especulação imobiliária -- parece-me que todo proprietário quer vender seu terreno para o Carrefour. Um projeto estratégico regional, estabelecido 30 anos atrás, teria talvez modificado o rumo da região, agindo sobre esses fatores antecipadamente.
2) É inegável a responsabilidade estadual e federal, as duas omissas em relação ao Grande ABC. Para esses governos, o ABC foi, e continua sendo, uma vaca leiteira, com empresas organizadas e visíveis, alvos prediletos do confisco arrecadatório que é a marca da política industrial do governo FHC. Não me recordo de governo, de direita ou esquerda, que tivesse aumentado a carga tributária em 40% sobre o PIB, de 25% para 35%, que tivesse onerado a produção com juros estratosféricos, que tivesse promovido a desnacionalização acelerada do parque industrial, tudo simultaneamente. Houve o ganho da estabilidade monetária, mas uma tremenda transferência de renda para o setor financeiro em detrimento de toda a sociedade.
Historicamente como foi o perfil do relacionamento da direção da Gráfica Bandeirantes com o sindicalismo? Houve contratempos?
Mário César de Camargo -- Muitos. Mas acima de tudo houve um processo de amadurecimento mútuo, na medida em que a satanização dos atores do capital e do trabalho esmorecia, ao sentarem à mesa. Aprendi com o Isaías Karrara, presidente do sindicato dos trabalhadores, a enxergar a Bandeirantes como um tecido complexo, acima dos meus orçamentos e planilhas. Ao mesmo tempo, acho que eles aprenderam também que alguns empresários estão mais interessados no desenvolvimento da empresa, do mercado e do produto do que na compra de fazenda ou de helicóptero. Nossa relação hoje é de respeito, de consulta permanente, de negociação direta, às vezes até contra as orientações do sindicato patronal local, que congrega interesses conflitantes de empresas de diferentes tamanhos e segmentos.
Como o senhor analisa o quadro institucional regional quando se observa que Consórcio de Prefeitos, Câmara Regional, Fórum da Cidadania e Agência de Desenvolvimento Econômico não conseguem estabelecer relação de forças políticas que provoquem pressões tanto no governo do Estado quanto no governo federal para ações públicas mais compatíveis com o esvaziamento econômico.
Mário César de Camargo -- O Grande ABC não precisa de políticos, mas de estadistas. Pelo menos um, que paire acima dos interesses pessoais imediatos. Parecia-me que Celso Daniel caminhava nessa direção. A mesma situação que caracteriza São Paulo em relação à federação acontece com o ABC em relação ao Estado: sub-representatividade. Nosso poder político é ridículo face à nossa atividade econômica, ainda que combalida pela evasão industrial.
Não tenho visto resultados concretos da atuação dessas agências no sentido de minimizar o esvaziamento econômico da região. Entretanto, é importante a articulação das forças produtivas em torno de entidades parceiras com os governos nos diversos níveis, até para influir na pauta desses organismos, corrigindo a rota e tornando essas instâncias mais objetivas. A omissão empresarial vai continuar custando caro à região.
Recentemente, o presidente do Sindicato do Comércio Varejista do Grande ABC, José Carlos Buchala, nestas mesmas páginas de entrevista, afirmou que as lideranças empresariais da região sempre se mantiveram distantes e pouco participativas das grandes questões regionais. Como o senhor avalia as instituições empresariais que atuam na região tendo como eventual referência a Associação Brasileira da Indústria Gráfica, da qual é presidente?
Mário César de Camargo -- O Buchala está correto na afirmação. O empresariado da região, no qual me incluo, sempre esteve mais preocupado com as questões empresariais do que as regionais. Parecemos envergonhados, até, de defendermos uma região considerada tão rica por parceiros de outras localidades. Acabo de presidir a 36ª Assembléia da Abigraf nacional, em Pernambuco. Os gráficos locais defendem ardorosamente a adoção de políticas redistributivas de renda em favor do Nordeste, com a continuidade dos subsídios e subvenções federais, apesar dos resultados pífios que o País teve com essa política nas últimas décadas. Nós, por outro lado, simplesmente pagamos a conta de boa parte da incompetência federal, sem protestar.
A atuação das entidades sindicais patronais é limitada à negociação com os trabalhadores. Pouco se faz além disso e duvido da continuidade de boa parte dessas entidades com a provável extinção da contribuição compulsória, aliás uma excrescência confortável da ditadura, à qual patrões e sindicalistas agarram-se como o tronco salvador no dilúvio. Como primeiro gráfico do ABC a exercer a presidência da Abigraf nacional em 37 anos, paradoxalmente sem o apoio do empresariado gráfico da região, temos um desafio de tornar a entidade auto-sustentável, sem a dependência de taxas compulsórias, mas prestando serviços ao associado, atuando mercadologicamente e fazendo lobby político transparente.
Como o senhor avalia o que chamamos de Complexo de Gata Borralheira, que consiste, de maneira geral, do sentimento de inferioridade em relação à Capital tão próxima, agravado pelo divisionismo interno de protagonistas municipais, sobretudo na esfera pública, de baixa regionalidade? Teremos um dia respostas positivas para esse sentimento de arrebalde?
Mário César de Camargo -- Além do Complexo de Gata Borralheira, sofremos também da Síndrome de Caim e Abel, ou seja, nossas diferenças bairristas impedem-nos de ver o quadro maior, e todos perdemos. O exemplo que citei da Abigraf no parágrafo anterior é emblemático. Acho que as respostas positivas surgirão da crise, da ameaça externa e comum, mas com novas lideranças. Se as lideranças atuais tivessem sido eficazes, a região não estaria nessa situação.
O que a abertura econômica do Brasil nos anos 90 representou para o setor gráfico? Verifica-se na entidade representativa o fenômeno de se comemorar a venda de uma empresa para o capital internacional, dadas as dificuldades de manter-se competitivo?
Mário César de Camargo -- Está claro hoje que a abertura econômica do Brasil foi executada deploravelmente, na década de 90. Nosso PIB elevou-se em 8% de 1994 a 2001, enquanto o PIB da China, único país emergente a atrair mais investimentos produtivos do que o Brasil no período, cresceu 199%. Por que nossos negociadores rebaixaram as alíquotas de importação de bens finais sem nada pedir em troca? E com dólar subsidiado?
O setor gráfico passou dois momentos distintos: primeiro, sofreu as consequências da abertura aumentando o déficit na balança comercial setorial, pois saímos do equilíbrio em 1993 para US$ 425 milhões negativos em 1997. Foi o período em que víamos boa parte das revistas brasileiras impressas no Chile e Argentina, basicamente em função do dólar subsidiado e do atraso tecnológico do parque gráfico brasileiro, com altos custos e baixa qualidade. A partir de 1997, começaram a surtir efeito os investimentos em modernização, que se acumulavam em US$ 4,65 bilhões desde 1992 até 1997, reduzindo preços e aumentando a qualidade. O déficit comercial setorial declinou para US$ 89 milhões no ano passado, mas ficou a amortização da dívida, contraída majoritariamente em dólares. Investimos com dólar de Gustavo Franco, a R$ 1 e estamos pagando com dólar de Armínio Fraga, a R$ 2,66, acrescidos de juros e das taxas de risco Brasil.
As empresas nacionais estão descapitalizadas, presas fáceis para os conglomerados internacionais, que já colocaram o pé aqui: a Donnelley comprou a Hamburg e o Círculo do Livro, a Quebecor comprou a Melhoramentos, a QuadGraphics associou-se à Folha de São Paulo na Plural. Não sei se as empresas foram ven-didas ou ven-dadas, mas o fato é que as condições macroeconômicas brasileiras e nossa inexistente política industrial de proteção do mercado interno, aliadas às facilidades e taxas de juros internacionais às quais os grandes grupos têm acesso, facilitam a aniquilação da empresa nacional.
Que avaliação o senhor faz a respeito do governo Fernando Henrique Cardoso, independente da trajetória setorial?
Mário César de Camargo -- Formado em Administração pela FGV, estudei nos livros de FHC. Era da diretoria do Centro Acadêmico da escola quando, na década de 70, o presidente reapareceu para a intelligentsia brasileira, como coadjuvante do astro maior Celso Furtado, num evento promovido pela FGV. Ainda bem que ele ressalvou, quando assumiu, que nada do que ele havia escrito deveria ser lembrado. O governo dele teve o mérito da estabilidade monetária, da redução dos índices de mortalidade infantil, do aumento da taxa de alfabetizados e da distribuição do livro escolar. Mas os números bons param por aí: a dívida externa duplicou, ainda que parte seja de empresas privadas; a dívida pública decuplicou; o desemprego bate recordes sucessivos; a renda média da classe trabalhadora caiu e para a indústria nacional o efeito foi devastador. Esperávamos competição, abertura, aumento da eficiência. Os empresários conscientes fizeram a lição de casa e investiram, modernizaram, qualificaram sua gente. O governo, que deveria ser parceiro da iniciativa privada, rifou as empresas estatais e alavancou os impostos. No lugar de onerar a especulação financeira e o patrimônio improdutivo, taxou a produção. Na minha avaliação, o saldo dessa administração é medíocre, comparada às expectativas do início da gestão.
Que Brasil emergirá depois das eleições à Presidência da República? Melhor ou pior do que o atual?
Mário César de Camargo -- Melhor. Estive no seminário da CNI em Brasília com os presidenciáveis e todos seguiram aproximadamente as mesmas linhas-mestras para a política econômica. Se entre o discurso e a prática houver coerência, o que não tem acontecido no cenário político brasileiro, estaremos melhor. Ainda que os candidatos não tenham divulgado seus programas pormenorizadamente, três prioridades parecem ter consenso: reformas na estrutura tributária, uma política de redistribuição de renda e a redução induzida dos juros de financiamento produtivo. Se uma vez eleitos essas linhas permanecerão perante a banca internacional, é outra história. Mas o caminho do incentivo à produção e à exportação soa como música aos ouvidos de quem, nos últimos anos, sofreu mais tiroteio do que o goleiro da Arábia Saudita jogando contra a Alemanha.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira