Um golpe de mestre contra o PT nacional, estadual e municipal. Eis a melhor definição para a denúncia de arrecadação paralela na Prefeitura de Santo André para abastecer os cofres da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Quem conhece os bastidores da política de Santo André tinha a informação de que um petardo Exocet estava sendo preparado para atingir o Paço Municipal. O alvo era triplo: as eleições municipais de 2004, o candidato petista José Genoíno na campanha ao governo do Estado e, principalmente, Lula da Silva na disputa presidencial. Beneficiários: Duilio Pisaneschi, Geraldo Alckmin e José Serra, pela ordem.
A maestria do golpe está no porta-voz treinado para atingir o PT: João Francisco Daniel, irmão do prefeito Celso Daniel, assassinado em janeiro último. Não interessava aos formuladores da denúncia inicial se de fato João Daniel e Celso Daniel eram tão semelhantes quanto Bruna Lombardi e Zezé Macedo. O sobrenome famoso indicaria o contrário e tornaria as denúncias um caso nacional. Dito e feito.
Quem estaria por trás da estocada que fere forte o PT? Em nível municipal, as maiores suspeitas recaem sobre o deputado federal Duilio Pisaneschi, ex-sócio e amigo da família Gabrilli, proprietária de uma das viações que teriam sido vítimas de extorsão por representantes do Paço. Duilio é candidatíssimo à Prefeitura de Santo André em 2004 e lhe interessaria por demais a desmoralização do PT. Além disso, em nível federal, há quem o coloque como eventual ministeriável num governo de José Serra, cargo que lhe daria visibilidade suficiente para encarar a disputa municipal com amplas condições de êxito.
Rebater a versão de que estaria indiretamente envolvido com as manobras que colocaram o PT num corredor polonês de desconfiança não é algo sustentável a Duilio Pisaneschi. Em plena catarse da morte de Celso Daniel, o deputado federal deu entrevista a uma rede nacional de televisão lançando dúvidas sobre a acidentalidade do sequestro, relacionando a suspeita às ações do grupo que cercava o então prefeito e cujas influências estariam concentradas na área de transporte e limpeza pública, dois dos setores devassados pela força-tarefa do Ministério Público do Estado.
A escolha de João Daniel para produzir a denúncia no Ministério Público Estadual teria sido engendrada porque o nome familiar e as circunstâncias da morte de Celso Daniel confeririam o necessário teor explosivo. Celso e João Daniel eram antíteses político-ideológicas, embora semelhantes fisicamente. Celso Daniel sempre enveredou pela esquerda e João Daniel, mesmo sem filiação partidária, jamais escondeu vocação direitista, numa linhagem ocupada por Duilio Pisaneschi e Newton Brandão, ex-triprefeito de Santo André. Brandão, como Duilio, também é envolvido nas especulações de que teria colocado assessores para enriquecer de detalhes e informações as denúncias que não se esgotaram na suposta propina no setor de transporte urbano.
A cúpula do Partido dos Trabalhadores em Santo André jamais dormiu em paz diante da possibilidade de João Daniel deixar de ser apenas um oftalmologista. Os rumores de que poderia candidatar-se numa chapa liderada por Newton Brandão à Prefeitura, em 2004, foram desdenhados por alguns e preocuparam outros integrantes do Paço.
Havia também quem se mostrasse mais cauteloso quando o nome de João Daniel era mencionado no Paço. Fala-se que ele era uma bomba-relógio porque estaria inconformado com o destino de suposta caixinha eleitoral do irmão à disputa de uma candidatura não confirmada ao Senado. Essa possibilidade foi cogitada no ano passado, antes de Celso Daniel aceitar o cargo para conduzir o programa econômico de Lula da Silva -- o tal programa aprovado em assembléia nacional em dezembro no Recife e que, ao se referir às mudanças necessárias no País, usou terminologia forte demais para os costumes político-administrativos. Com isso, provocou tantos problemas ao PT nos últimos meses, com doses cavalares de terrorismo do governo federal, a ponto de exigir reformatação. Uma linguagem mais suave substitui expressões como "rupturas necessárias" deixadas por Celso Daniel.
Supostamente insatisfeito por não ter tido acesso à parte dos recursos da comentada caixinha, João Daniel teria se voltado definitivamente contra a direção petista. Oficialmente, essa informação não é assumida por qualquer membro do PT de Santo André, até porque não há provas materiais. O fato é que João Daniel, sempre distante de Celso Daniel e do PT nos tempos em que a família contava com um proeminente gerenciador público no Grande ABC, afastou-se de vez dos antigos companheiros políticos e administrativos do irmão. Até reaparecer nas manchetes dos jornais com a denúncia de propina na administração pública de Santo André.
Instrumento tático -- O que reforça a suspeita petista de que João Daniel foi simplesmente um instrumento tático e estratégico dos oposicionistas de Santo André e dos situacionistas do governo do Estado e do governo federal é que o longo depoimento que prestou aos membros do Ministério Público Estadual não condiz com seu histórico de informações sobre a administração pública em Santo André. Em resumo: são denúncias amplas e detalhadas demais para quem se mantinha afastado do irmão prefeito e também de seus opositores políticos. Até que Celso Daniel foi assassinado.
Entre as declarações de João Daniel que mais irritaram o Paço de Santo André está a possibilidade de que o então prefeito foi vítima de queima de arquivo. Isso porque estaria decidido a desarticular a suposta estrutura paralela de arrecadação de fundos partidários por meio de propinas de empresários, irritado com desvios de recursos para os bolsos de alguns membros do governo municipal. A tipologia de crime urbano que atingiu Celso Daniel foi confirmada após demoradas e complexas investigações que envolveram extensa quadrilha de marginais. Fosse um único envolvido no sequestro que terminou com o assassinato do prefeito, a possibilidade de fraude seria mais factível.
Quanto a eventual desgaste de Celso Daniel com o grupo denunciado por João Daniel, as indicações vão em sentido diametralmente oposto. Tanto que o agora ex-secretário de Serviços Municipais, Klinger Sousa, era espécie de discípulo predileto do prefeito. Klinger renunciou no final do ano passado de concorrer à Assembléia Legislativa porque Celso Daniel lhe atribuiu novas tarefas: ele acumularia a Secretaria de Serviços Municipais com o cargo extra-oficial de supersecretário, ocupando espaços que o prefeito deixaria durante o período em que estaria engajado na campanha presidencial de Lula da Silva. Além disso, Klinger Sousa participaria das ações estruturais da campanha de Lula da Silva e seria o principal condutor das conflitivas negociações previstas para este ano que visam esquadrinhar o IPTU (Imposto sobre Propriedade Territorial e Urbana) num modelo diferenciado de aplicação de progressividade.
Duas vertentes -- A melhor explicação para o denuncismo de João Daniel reúne duas vertentes lógicas: ciente de que ao se tornar porta-voz de grupos oposicionistas ele se tornaria algoz da imagem do próprio irmão, escolheu a alternativa compensatória de contrariedade de Celso Daniel com o suposto esquema de propina. Assim, preservaria a imagem da estrela da família.
O estrondoso caso que colocou Santo André no noticiário internacional sugere duas linhas de interpretação. A primeira considera que o PT de Santo André desconsiderou todas as possibilidades de tornar-se vitrine vulnerável a estilhaços eleitorais e cometeu erros primários no gerenciamento técnico-burocrático durante a segunda e parte da terceira gestão Celso Daniel. Tanto teria errado que chegou ao ponto de tornar-se refém de uma montanha de irregularidades. A segunda leva em conta que o PT de Santo André dirigiu técnico-burocraticamente o Paço Municipal conforme padrões de flexibilidade usuais que a legislação permite e só foi exposto publicamente como possível ninho de ratos porque há subjetividades tão pronunciadas na administração pública que interpretações danosas são fogos de artifícios. O que interessaria, sob esse prisma, é capitalizar o máximo de efeito midiático, porque o denunciado tem muito mais força que o desmentido.
As denúncias do Ministério Público Estadual começaram no gabinete do prefeito e atingiram as secretarias de Governo, Comunicação, Serviços Municipais, Assuntos Jurídicos, Inclusão Social e Habitação, Administração e Educação/Formação Profissional. Trata-se, como se observa, de devassa que penetra em toda a estrutura administrativa da Prefeitura de Santo André.
Dúvida à parte que a ação lubrifica, parece evidente que a finalidade eleitoral é extraordinariamente inegável, porque há muito não se via na história da administração pública nacional o deslocamento de tantos rastreadores do Poder Judiciário. Tudo indica que se Lula insistir em liderar as pesquisas, mais chumbo grosso estaria sendo preparado. Quem sabe os matadores de Celso Daniel de repente se declarem cúmplices dos petistas?
Total de 193 matérias | Página 1
11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP