Caso Celso Daniel

Vale-tudo macula a
memória de Celso

DANIEL LIMA - 05/02/2003

A comovente e nada discreta solenidade que marcou o primeiro aniversário da morte do maior prefeito da história do Grande ABC — dia 20 de janeiro — e o comportamento da mídia sempre que se refere ao caso que abalou o Brasil não deixam margem a dúvidas: o desaparecimento de Celso Daniel continua sendo tratado como caso policial em aberto. Afinal de contas, por que tanto para os familiares como para boa parte da imprensa vale a pena insistir numa tecla desqualificada pelas minuciosas investigações e peremptórias declarações policiais? 

Por que tanta insistência em negar que Celso Daniel foi mais uma vítima da assustadora escalada de crimes urbanos? Por que subestimar a ocasionalidade do assassinato de Celso Daniel num contexto comprovadamente crítico da segurança pública no Estado, a ponto de levar o governo paulista a planejar e operacionalizar logo depois várias ações de desbaratamento das quadrilhas de sequestradores? 

Se são abundantes as provas materiais e testemunhais de que o prefeito foi colhido pelo destino, por que irmãos e mídia insistem em martelar cenários virtuais que desconsideram as próprias informações em sentido contrário? 

As dúvidas de familiares de Celso Daniel têm dupla personalidade. Primeiro, a industrialização de versões veiculadas pela imprensa acionou o dispositivo automático da desconfiança generalizada que transforma cada leitor, ouvinte ou telespectador em pretenso especialista em criminalidade. A essa desconfiança se misturou a solidariedade consanguínea. Segundo, havia uma antiga e doída dívida de relacionamento entre os irmãos e o então prefeito de Santo André que precisava ser reparada. Como não foi em vida, a psicologia explica por que se deu ou se pretende dar no pós-vida. 

Quanto à mídia, é fácil explicar. Trata-se, como no caso da Escola Base e de tantos outros eventos, do que poderia ser chamado de síndrome da versão de pensamento único. Que deformidade ética é essa na área de comunicação? Simples: as versões sobrepõem-se aos fatos, por mais evidentes que sejam as provas em contrário. Torna-se constrangedor para a mídia ouvir um outro lado suficientemente capaz de deslocar o eixo da cobertura previamente direcionada para romancear rocambolescos atalhos que, em acontecimentos envolvendo celebridades, são alimentados por fontes suspeitas travestidas de especialistas ou testemunhos. 

A suspeição se instalou no seio da imprensa desde que o corpo de Celso Daniel foi encontrado numa estrada vicinal de Juquitiba, na Grande São Paulo, na manhã de 20 de janeiro do ano passado. Havia o que se julgava indício de uma ação coordenada pela extrema direita política, que teria feito do então prefeito de Campinas, Antonio da Costa Santos, o Toninho do PT, vítima fatal poucos meses antes, em 11 de setembro. A subsequente contra-ofensiva dos adversários do PT, relacionando o crime à queima de arquivo, foi compulsória. E ganhou muito mais força depois que denúncias de propinas envolvendo o Paço Municipal e alguns dos amigos do prefeito se confundiram com o calendário eleitoral de 2002.

Como se recorda, foi o próprio primeiro-irmão de Celso Daniel, João Francisco Daniel, quem se colocou como denunciador dos supostos escândalos. Como se sabe, também, João Francisco Daniel foi instrumentalizado politicamente por opositores do PT em Santo André para tentar dinamitar o edifício de respeitabilidade que o prefeito construiu em três mandados. Pateticamente, João Francisco talvez tenha imaginado que se apresentando como denunciador de supostos usos e abusos no gerenciamento público de Santo André, para atingir profissionais de confiança do prefeito morto, manteria intacta a honra do irmão famoso. Como se fosse possível, portanto, fazer omeletes sem quebrar ovos. 

Celso Daniel tornou-se pauta preferida do noticiário policial e político. Reputações que se lixassem. Era e ainda é preciso sustentar versões porque a historiografia política garante que vai ser sempre possível sacá-las em momentos cruciais. Principalmente em anos eleitorais. A credibilidade que de maneira geral a mídia detém dos consumidores de informação garante que versões repetidas mil vezes sejam muito mais verossímeis do que os fatos. Com o assassinato de Celso Daniel não é diferente. Virou palavra de ordem a decisão subliminar de que a fatalidade não fazia parte do enredo — e, portanto, o assassinato teria de virar alvo de fantasias especulativas. Por isso, qualquer contraposição seria minimizada ou desclassificada do roteiro. 


Fonte desprezada — O mais espantoso em toda a trajetória de idiossincrasias que marca o assassinato do prefeito que mais defendeu um Grande ABC unificado institucionalmente é que, além do desprezo às conclusões policiais, atirou-se ao sumário esquecimento provavelmente a mais bem preparada fonte de informações sobre Celso Daniel. A socióloga e educadora Ivone Santana, viúva do prefeito, é uma das principais vítimas dessa avalanche de especulações disseminada pelos meios de comunicação com extrema malícia ou insuperável despreparo. 

Exatamente porque não constava da pauta jornalística ouvir a sensatez do contraponto, Ivone Santana foi marginalizada. Quando lembrada, nas raras ocasiões em que provavelmente se baixou a guarda do pensamento único, as declarações da mulher que viveu com Celso Daniel nos últimos seis anos passaram por filtragem. Nem com o respeito do tratamento de mulher de fato e de direito do prefeito assassinado — o Novo Código Civil configura a relação como casamento — Ivone Santana contou. É simplesmente a ex-companheira, a ex-namorada. Até mesmo para parcela significativa dos chamados companheiros petistas do Paço de Santo André. 

Ainda abalada com a morte do prefeito, a família Daniel não perde oportunidade para expor o descontentamento com os resultados das investigações. Depois da fase de João Francisco Daniel com denúncias sob encomenda de amigos empresários de ônibus, agora é a vez de Bruno José Daniel Filho aparecer em cena. Ele aproveitou o culto ecumênico realizado em memória de Celso Daniel para protestar. Equivocadamente instalado na tribuna num evento que se pretendia exclusivamente religioso, Bruno Daniel Filho classificou como portadores de má fé todos aqueles que consideram a conclusão do inquérito policial o ponto final de um caso exclusivo de criminalidade urbana. 

Bruno Daniel Filho constrangeu vários integrantes da cúpula do PT em Santo André e até mesmo Gilberto Carvalho, do círculo íntimo de amigos de Celso Daniel e hoje chefe de gabinete do presidente Lula da Silva. Também Ivone Santana, a viúva renegada dos irmãos Daniel, não conseguiu esconder o golpe. Sentiu-se traída e discriminada, seja pela politização do ato, transformado por decreto em Dia de Combate à Violência, seja porque sequer foi convidada ao microfone como membro da família.

“Além de tiros, Celso morreu em decorrência de traumatismo craniano. Houve tortura. É bom que todos saibam disso” — discursou Bruno Daniel. Implacável, atacou todos que vinculam os protestos da família à dor da perda de Celso Daniel. “Têm má fé também aqueles que dizem que a família não aceita a versão comum por causa da dor que sente. Apesar da dor, a família busca a verdade, seja qual for. Nenhum motivo justifica esconder a verdade” — declarou. Ao encerrar o discurso, foi aplaudido por um ginásio de esportes completamente lotado. A massificação de dúvidas sobre a morte do irmão Celso Daniel está aparentemente consolidada. Pelo menos até que a mídia deixe o sensacionalismo fácil de lado e não seja ferramenta dócil ou induzida do jogo político eleitoral. 


Bandidos — O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, indicado pela cúpula do PT para acompanhar minuto a minuto a apuração do caso, não tem dúvida alguma: o prefeito Celso Daniel foi morto por bandidos acostumados a sequestrar. Ele acompanhou as investigações e o trabalho da perícia. Foram 176 horas de depoimentos de acusados e testemunhas. Foram 62 dias de dedicação exclusiva a um assunto sobre o qual amadores de ocasião e vendedores de ilusão lambuzam-se atabalhoadamente.

“Prometi ao Celso que iria até o fim. E ia parar somente com os assassinos na prisão” — afirmou Greenhalgh ao jornal O Estado de São Paulo um dia antes da solenidade em Santo André. 

Greenhalgh também participou do culto ecumênico realizado em Santo André. E saiu do Parque Celso Daniel irritado com Bruno Daniel Filho. No momento em que deixava o local, o irmão mais novo do prefeito foi chamado ao microfone e fez as declarações emocionais que os organizadores do evento poderiam ter evitado se acompanhassem o noticiário dos dias imediatamente anteriores, quando Bruno Daniel Filho declarava enfaticamente suas desconfianças. 

Se o culto a Celso Daniel não virasse tribuna política e contestatória, Luiz Eduardo Greenhalgh e suas conclusões não seriam desautorizados. “Senti vontade de voltar ao palco e empunhar o microfone para contestá-lo, mas acabei deixando para lá. Estou muito triste com a falta de respeito à memória do Celso Daniel. Acompanhei o caso sem me preocupar com possíveis consequências. Investiguei tudo, inclusive as pessoas que eram apontadas como eventuais mandantes do sequestro, e absolutamente nada foi constatado, exceto a certeza absoluta de que tivemos um crime urbano ocasional” — afirma o advogado-deputado a LivreMercado.

O petista não contemporiza com o Ministério Público, que continua apurando a morte do prefeito como crime político: “Os promotores se aproveitam do caso para estar em evidência. Eles têm certeza de que é um crime comum”. Para Greenhalgh, tratou-se de uma fatalidade. “Eles queriam o diretor da Ceagesp. Como não conseguiram, pegaram o primeiro que apareceu num carro importado”. O petista acusa especificamente promotores públicos de Santo André de vincular a morte de Celso Daniel a razões políticas: “Eles queriam saber de contratos de Santo André, mas quando as investigações caminharam para uma ocorrência comum, com o delegado Edson Santi, do Deic, identificando os acusados, os promotores sumiram” — afirma Greenhalgh. 

Nem mesmo o procurador-geral de Justiça, Luiz Antonio Guimarães Marrey, escapa das críticas do deputado: “Ele demonstrou exacerbação na investigação. Entrou no jogo político-eleitoral. Levou pessoalmente para Brasília a denúncia do irmão do Celso Daniel contra o José Dirceu sobre uma mala de dinheiro que jamais existiu. O Brindeiro (procurador-geral da República Geraldo Brindeiro) mandou para o Jobim (ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal), que arquivou o processo” — lembra. 

O delegado Edison Remigio de Santi, titular da 2ª Delegacia Especializada de Crimes contra o Patrimônio do Deic (Departamento de Investigações sobre Crime Organizado), também não tem dúvidas sobre o assassinato: “O prefeito foi morto por criminosos comuns, mas é difícil convencer a família porque eles têm o direito de questionar” — afirmou ao Diário do Grande ABC de 19 de janeiro. O delegado apurou que a quadrilha era formada por amadores e quase todos usuários de drogas. “O sequestrador amador não tem estrutura financeira para manter a pessoa por muito tempo em cativeiro. O amador pode também se abalar com a qualidade da vida. O sequestrador profissional, ao contrário, vai procurar a vítima qualificada e não a elimina” — explica o titular do Deic. 

A vinculação da morte do prefeito a denúncias até agora não provadas de propinas no Paço de Santo André foi estratégia que oposicionistas políticos do PT souberam amalgamar, mas os resultados eleitorais foram desastrosos. Ao acreditar que a força do sobrenome Daniel que João Francisco ostenta teria o poder de consolidar tanto um manancial de dúvidas sobre o crime quanto de implosão do PT em Santo André, os adversários políticos subestimaram a capacidade de os consumidores de informações separarem um caso do outro. 

Se, de fato, João Francisco Daniel colocou muitos tijolos e argamassa no aparentemente indestrutível templo de maledicências que envolvem a morte do irmão, por outro lado toda essa suposta estrutura de dupla utilidade ruiu tanto no primeiro quanto no segundo turno eleitoral. No primeiro com a fragorosa derrota de aliados de ocasião do irmão tardiamente famoso, caso do deputado federal Duilio Pisaneschi, que não se reelegeu. No segundo, com a vitória do petista Lula da Silva com mais de 60% dos votos no Grande ABC. 

O inapelável nocaute da teoria de assassinato encomendado devido a acordos supostamente desfeitos ou contrariados com companheiros de partido e de gestão é admitido inclusive pelo Ministério Público de Santo André. Em entrevista ao Diário do Grande ABC de 19 de janeiro o promotor Reinaldo Guimarães Carneiro confessa: “Não encontramos nada que possa fazer qualquer tipo de ligação entre os dois casos. Não queremos falar nisso” — disse. 

Nem por isso, entretanto, a força-tarefa do MP desiste da idéia fixa de que há caroço sob o angu das investigações policiais. “Estamos trabalhando com a própria polícia, com o mesmo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), em cima de outras possibilidades. A gente ainda não tem resposta para tudo que envolve o caso e existem dúvidas absolutamente procedentes” — disse Reinaldo. 

Para os promotores públicos, um laudo ressalta as diferenças entre a versão do menor que teria disparado contra o prefeito Celso Daniel e os ferimentos no corpo. “Esse documento, assim como os outros, está sob sigilo e deverá ser anexado ao processo” — disse Guimarães Carneiro. 

Luiz Eduardo Greenhalgh espeta os promotores públicos ao afirmar que continuam tomando depoimentos de membros da quadrilha que assassinou o prefeito sem, entretanto, chegar às conclusões que gostariam. “Os depoimentos dos assassinos que constam do inquérito policial foram tomados em momentos e lugares diferentes e todos estão conectados numa rede de informações que tornam a situação muito clara: Celso Daniel foi vítima de um crime urbano, sem qualquer relação política ou administrativa” — assegura Greenhalgh. 


Ópera-bufa — A frustração por não ter chegado às conclusões imaginadas não está restrita a representantes do Ministério Público. A ópera-bufa que o assassinato de Celso Daniel desencadeou começou no dia seguinte ao sequestro, em 19 de janeiro do ano passado, quando a cúpula nacional petista invadiu o Paço Municipal de Santo André e armou um circo político de denúncias nitidamente eleitorais. A chegada dos petistas mais graduados do País e o domínio de cena do Paço contrariaram parte dos dirigentes e militantes do PT de Santo André. Na madrugada do mesmo sábado, primeiras horas depois do sequestro do prefeito, o Paço reunia as cabeças mais coroadas da administração municipal e também algumas das estrelas estaduais e nacionais do partido, casos de Marta Suplicy, José Genoino e José Dirceu. 

Os debates foram centralizados na postura do partido quando o sol raiasse e quando toda a mídia nacional se deslocaria para Santo André. A alternativa de não politizar o caso foi voto vencido, principalmente porque a prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, escolheu o governo do Estado como alvo prioritário de sua ira. Outros petistas não pretendiam esquadrinhar as declarações no mesmo diagrama do então irresolvido caso de Toninho do PT, prefeito de Campinas. Fracassou a tentativa de tratar o caso Celso Daniel como chaga criminal de uma Região Metropolitana empesteada de sequestradores com ampla liberdade de atuação. Não demorou o contragolpe ao denuncismo político-eleitoral com roupagem de segurança pública idealizado pelas lideranças nacionais do Partido dos Trabalhadores. Oposicionistas nacionais de partidos situacionistas, a partir do Palácio do Planalto e também do Palácio dos Bandeirantes, moveram peças de enxadrismo igualmente denunciatório para descaracterizar a ocasionalidade do sequestro seguido de morte. Celso Daniel virou uma peça no tabuleiro de informações e contra-informações. Inocular dúvidas num caso comprovadamente circunstancial foi a contra-ofensiva imediata. 

Como todo crime de gente famosa, valem mais as versões. Juntou-se a fome do assassinato à vontade de comer do requentamento de denúncias adormecidas no Ministério Público e eis a confusão formada. 

Um tiroteio que, entretanto, não consegue chamuscar a imagem de Celso Daniel. Está muito acima do sensacionalismo seu legado como o gerenciador público que mais se empenhou para transformar o Grande ABC numa região de fato — não uma metáfora geográfica subdividida em sete partes distintas e geralmente rivais.


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