Não foi apenas Celso Daniel quem morreu após o sequestro de 19 de janeiro de 2001. Moralmente, também foram assassinados o amigo de infância Sérgio Gomes da Silva, que dirigia o carro na fatídica noite, o então secretário de Serviços Municipais e aliado de primeira hora na gestão pública de Santo André Klinger Sousa, além da viúva Ivone Santana. Esse balanço criminal quem faz é a própria Ivone Santana, que viveu minuto a minuto os últimos seis anos com Celso Daniel, mas foi solenemente ignorada pela imprensa, pelo clã Daniel e pela polícia como membro da família que pudesse oferecer detalhes importantes para desvendar o crime.
Pior que isso, calou fundo mesmo o acostamento em que foi colocada pelo PT, que ajudou a fundar, no culto em homenagem ao primeiro aniversário de morte do prefeito. Além de marginalizada dos preparativos e do cerimonial de um ato que acabou mais político do que de celebração, Ivone viu ocupar a tribuna e o microfone dos discursos um dos desafetos do Partido dos Trabalhadores no caso Celso Daniel, o irmão Bruno Daniel. O caçula voltou à versão sempre esburacada da família de que o crime é um fato político, não policial, e atacou quem advoga em contrário, entre os quais a viúva. Mãe de Liora, de 17 anos, e Gabriel, de sete, de seus dois primeiros casamentos, Ivone desqualifica qualquer julgamento dos irmãos Daniel, que há pelo menos 10 anos estavam rompidos com Celso. Ela revela detalhes inéditos dos últimos dias com o prefeito e da noite do sequestro — em cujo jantar iria com o filho, mas desistiu na última hora.
Um ano depois da morte do prefeito de Santo André, a socióloga, educadora e militante da causa da cidadania confessa que não consegue arquivar as lágrimas e resolveu atirar em várias direções: contra o PT municipal, que para ela foi árido no apoio a Klinger Sousa e Sérgio Gomes nas denúncias de extorsão na Prefeitura; contra a imprensa, que teria selado o destino de Celso Daniel ao anunciar o sequestro e acabado com a reputação de amigos com noticiários instrumentalizados; e contra a família Daniel, da qual reivindica na Justiça o espólio intelectual e material do marido.
Como você analisa o tratamento que parte da imprensa lhe dá, praticamente sonegando sua condição de ex-mulher de Celso Daniel depois de viver tantos anos com ele?
Ivone Santana — Isso nunca foi problema para mim enquanto o Celso estava aqui. Nunca fiz questão de ter papel de primeira-dama. Ninguém nos discriminava quando o Celso era vivo. Todos nos recebiam normalmente como marido e mulher, inclusive nas viagens internacionais que fazíamos a trabalho para tratar da questão da regionalidade. Acho que a situação tem a ver também com o fato de o Celso ser uma pessoa absolutamente reservada. Além de poucos saberem da nossa vida, nunca tive necessidade de me firmar em cima de títulos.
Depois da morte dele, não imaginei que tudo mudaria. A própria imprensa contribui porque, ao não me nomear como esposa, acha que Celso tinha uma mulher oficial e eu era apenas namorada. O estilo de vida da gente acabou colaborando na medida em que cada um tinha sua casa e independência. Apesar de hábitos e tarefas parecidos com o dele, eu tinha a peculiaridade de morar com meus filhos. Na minha casa era outra coisa, com muito entra e sai, pagode e ambiente típico de onde moram uma criança de sete anos e uma adolescente de 17. O Celso se divertia muito com eles, só que também queria preservar seu espaço próprio para estudos e trabalho.
Quanto tempo Celso Daniel conviveu com seus filhos?
Ivone Santana — Desde sempre. Celso sempre gostou das crianças e mesmo no primeiro casamento (com Miriam Belchior) minha filha passava os finais de semana na casa dele. No nosso grupo de amigos, com meu ritmo de trabalho 24 horas, eu era a única que levava as crianças em praticamente todos os lugares. O Gabriel, com sete anos, conviveu com Celso desde um ano de idade — mais do que com o próprio pai.
E como as crianças tratavam Celso?
Ivone Santana — Gabriel o chamava de Dani fofinho. Essa intimidade chegou a desconcertar o Celso de início, já que ele não tinha esse traquejo todo. Na posse do segundo mandato, Gabriel quebrou todo o protocolo ao ficar se enroscando nas pernas de Celso durante o cerimonial.
Parentes e a imprensa sempre a chamaram de companheira de Celso. Se nós a tratarmos como viúva, como você se sentirá?
Ivone Santana — Meu sentimento de perda não vai diminuir em função da denominação que se dê. Tenho minha dor e é a mesma que uma viúva tem, como expliquei inclusive para o Gabriel quando ele fez essa pergunta: “Mãe, você é viúva”.
Que planos vocês tinham para o futuro?
Ivone Santana — Sempre tive vontade de ter mais filhos. O Celso preocupava-se muito com a questão da educação que daria. Era um homem casado com a política e temia não ter muito tempo para se dedicar a isso. Nos finais de semana nem marcávamos compromissos para poder ficar juntos. Nem sempre podia colocar meus filhos na programação. Minha filha Liora e a mãe dele (dona Clélia) até se encaixavam nos passeios, porque elas também gostam de cinema.
Como foi seu relacionamento com a família Daniel antes e depois do assassinato?
Ivone Santana — Uma coisa que falei publicada na Imprensa acabou me criando problemas depois. Pelo menos desde 1996 — quando passei a conviver diariamente com o Celso — posso assegurar que o relacionamento familiar do Celso era distante. A família se encontrava basicamente em 8 de dezembro, no aniversário da mãe, e eventualmente em algum outro aniversário. Particularmente, eu tinha muita vontade de resgatar a história da família. Programamos, então, uma viagem para a região de Avelino, em Nápoles, Itália, e insisti muito para ele convidar o irmão mais velho. Tinha muita afinidade com a mulher do João, a Marguerita, e me relacionava profissionalmente com o irmão caçula, Bruno, que foi meu professor. A verdade mesmo, no entanto, é que Celso e Bruno já não se relacionavam havia mais de 10 anos.
Qual a diferença política e ideológica entre eles?
Ivone Santana — Posso falar apenas a partir do momento em que houve a ruptura. Antes, desconheço. Quando a Marilena Nakano, esposa do Bruno, foi secretária de Educação no primeiro mandato do Celso, em 1989, e houve uma divergência política da qual não me recordo, ela saiu do governo e eles passaram a não se falar mais. O Celso não era sequer convidado para as festas dos sobrinhos, que eram um dos poucos pontos de contato entre eles.
Você se surpreendeu com a fala do Bruno Daniel no culto do primeiro ano da morte do irmão, dia 20 de janeiro no Parque Celso Daniel?
Ivone Santana — Nada me agride mais. Como eles podem me conhecer se sequer sabiam da vida do Celso? Quem sabe, mas que tem dificuldades de lembrar dos fatos mais recentes, é a mãe. Dona Clélia tem boa memória para coisas mais antigas. Até viajamos juntas para Veneza e minha filha nos acompanhou porque ela não podia ficar sozinha no quarto. De minha parte sempre houve esforço de integração. O próprio Celso dizia, no entanto, que seria difícil mudar a relação da família. Nos últimos anos viajamos muito e ele só se despedia da mãe.
No culto, o Bruno mencionou coisas de 25 anos atrás. Quando jogavam bola, quando fizeram mestrado, mas nada do que aconteceu nos últimos 10 anos. Simplesmente porque ele sequer cumprimentava o Celso.
Por esse comportamento, a atitude do Bruno no culto denota duas situações: primeiro, uma culpa psicológica de quem estava há tanto tempo afastado do irmão; depois, uma tentativa de exorcizar essa culpa. Insistir na tese de crime político é a maneira que a família encontrou de buscar culpados?
Ivone Santana — Acho que sim. Até considero admissível uma família que perdeu um membro nessas circunstâncias colocar um advogado e buscar esclarecer pontos de dúvida. Eu, particularmente, não tenho justificativas para fazer isso. Não tenho acesso aos autos e as pessoas que têm acesso legal não socializaram informações comigo que me permitissem partilhar de seus pontos de vista.
O Bruno teria interesses políticos futuros para fazer isso?
Ivone Santana — Não acredito. Ele não se exporia a tanto.
Que paralelos você destacaria entre Bruno e Celso?
Ivone Santana — ... (pensativa) Não vejo nada parecido entre os dois. Assim como não vejo ninguém comparável ao Celso.
Você não se sentiu agredida pelo pronunciamento do Bruno no culto, mas não estranhou a atitude dele?
Ivone Santana — Estranhei. Ele mencionou duas coisas: primeiro que não gostou da famigerada entrevista à imprensa em que falei que ele não se relacionava com a família. Embora tenha sido um extrato não contextualizado pelo repórter, em essência isso é verdade. Depois, voltou com aquela hipótese maluca de que Celso foi eliminado porque havia descoberto um esquema de extorsão na Prefeitura. Respondi que, como convivia 24 horas com o Celso, com certeza saberia se houvesse qualquer coisa que o preocupasse. Em nenhum momento questionei ou mensurei a dor que provavelmente eles sentem. Eles não gostaram dessa resposta.
Como você encara a insistência da mídia, alimentada pela família, de que o crime foi político, de queima de arquivo?
Ivone Santana — Acho leviandade e um desrespeito muito grande. Parei inclusive de acompanhar o noticiário porque estava enlouquecendo com tantas informações desencontradas. Começando pelas investigações diferentes das três polícias, passando pelo meu interrogatório com suspeita de que o crime fosse passional, sem falar na invasão do apartamento do Celso pela Polícia Federal. Tudo me chocou muito.
Você acha que o empenho da Polícia e do Ministério Público em esgotar essas linhas de investigação teria, por trás, um sentido de descobrir alguma coisa de Celso Daniel de qualquer maneira?
Ivone Santana — Acho que sim. Aproveitaram a oportunidade para dar uma vasculhada na vida dele. E houve frustração porque não chegaram onde queriam. Aliás, seria muito legal se tivesse sido fotografado o rosto constrangido de um dos policiais federais que invadiram o apartamento. O local não correspondia à expectativa que eles tinham pela simplicidade em contraste com a projeção do Celso.
O que a deixa tão certa de que se tratou de um crime de violência urbana?
Ivone Santana — Sempre me senti segura porque havia o Greenhalgh (Luiz Eduardo, advogado e deputado federal do PT) acompanhando tudo. Por desencontro de horário, não fui ao IML. Vi o corpo já no caixão. Não posso avaliar se havia sinais de tortura como alega a família. Mas não tenho por quê duvidar da negativa do Greenhalgh nesse sentido.
Repito que não vejo motivos para um crime político. Celso não tinha adversários políticos ou inimigos com ira suficiente para fazer o que fizeram nem tenho qualquer evidência de que houve complô para queima de arquivo. Para mim, isso é totalmente fora de questão. Eu acredito nas pessoas com quem convivo. Além do que, por essa hipótese, até eu virei suspeita, o que é absurdo.
Também me chama a atenção a coincidência dos depoimentos dos criminosos. Todos foram presos em momentos e locais diferentes, mas as versões são todas casadas. Li todos os depoimentos sobre como foi operacionalizado o crime, quem deu a ordem, como tudo ocorreu. Eles realmente não sabiam quem tinham sequestrado. O Greenhalgh acompanhou todos os depoimentos e não há, realmente, contradições.
O prefeito era uma pessoa preocupada com as proporções que a violência atingiu nas metrópoles?
Ivone Santana — Era uma pessoa absolutamente tranquila. Eu é que insistia para ter mais cuidados. Num seminário em Santo André em novembro de 2001, o Lula estava na mesa e falou para ele: “Celsinho, você precisa andar com segurança. Tudo bem, você não gosta de vela para ir ao cinema, mas precisa ter cobertura para outros compromissos públicos”.
De tanto a gente insistir, ele aceitou quando voltou a jogar basquete quase todas as noites, com horário determinado e com todo mundo sabendo que ele estava no Parque Duque de Caxias. Mas era meio informal. O motorista o buscava e o deixava em casa, ele pegava o carro e ia para minha casa, sozinho. Nessa época, acho que em 2001 mesmo, ele chegou a ter uma experiência de se sentir inseguro quando parou num semáforo assim que saiu de casa, na Rua Santo André, e achou que seria abordado. Acelerou rápido e fugiu. Não era, porém, um assunto que o preocupava tremendamente. Com os outros, sim. Ele sempre perguntava da minha filha Liora sobre os horários que retornava à noite. Mas só. Era uma pessoa muito metódica, tinha horários certos para cada atividade. O motorista estava sempre lá, às 10 para as oito da manhã para levá-lo ao trabalho. Quer dizer: era um alvo fácil se alguém quisesse tentar qualquer coisa. Por isso insistíamos na segurança.
Você acha que o caso teria tomado outro rumo não fosse o alerta dado pela imprensa de que o prefeito havia sido sequestrado, rompendo estranhamente um código de ética da mídia de não dar essas notícias antes do elucidamento?
Ivone Santana — Isso me intriga. Gostaria de saber como a Rede Globo deu a notícia em tão pouco tempo. Acho que isso realmente selou o destino do Celso. Algo precisa ser feito a esse respeito.
A imprensa que você imaginava antes do assassinato era diferente da que você passou a conhecer como consumidora de informação?
Ivone Santana — Meu julgamento é que a imprensa no geral prestou um grande desserviço, pois desestruturou a vida de muitas pessoas. Programas policiais da TV e noticiários impressos que são verdadeiros caça-níqueis horrorizaram os telespectadores. Ainda não parei para pensar detalhadamente, mas acho que o cidadão comum atingido por noticiários assim está absolutamente desassistido no Brasil. Tanto em relação à mídia como para recorrer à Assistência Judiciária pública. Para entrar com ação na Justiça com advogado particular pagar-se no mínimo R$ 15 mil só para começar a questionar procedimentos. Por exemplo: foi vergonhoso o tratamento que a polícia deu ao porteiro do prédio do Celso, insinuando que se ele quisesse continuar empregado tinha que colaborar.
Você acha que a polícia foi lá para politizar o crime?
Ivone Santana — Em dado momento, sim. Houve muita pressão e desencontros. Veja o episódio da calça jeans que o Celso vestia. O Sérgio (Gomes, amigo que dirigia a Pajero no momento do sequestro) disse que era da cor bege. Se fosse uma mulher, que é mais observadora, até acreditaria. Mas eu sabia que era jeans.
Como?
Ivone Santana — Eu e meu filho Gabriel íamos jantar com eles naquela noite. Celso e eu estávamos viajando fora do País desde novembro até 7 de janeiro. Tinha ficado pouco tempo com meu filho nas férias e combinamos de sair juntos naquela sexta-feira aproveitando que o Sérgio estava em São Paulo, o que também era raro desde que ele foi para o Nordeste. Como no sábado (dia seguinte ao sequestro) eu participaria de um seminário de dia inteiro sobre o programa de governo do José Genoino (candidato do PT ao governo do Estado) num evento na Frei Caneca, na Capital, acabei desistindo de sair e fiquei com o Gabriel. O Celso me ligou à tarde, mas não falei que não iria. Ele comentou que passaria na Blockbuster para alugar umas fitas e me pegaria na Escola de Governo, na Rua Santo André, à noite. Quando ele chegou com o Sérgio falei que não ia mais, conversamos um pouco e vi que ele estava exatamente com a roupa com a qual o encontraram depois.
Porque isso não foi noticiado nesses detalhes?
Ivone Santana — Porque ninguém falou comigo. A polícia preferiu ouvir uma diarista que sequer via o Celso quando trabalhava no apartamento — porque não ia quando ele estava descansando ou escrevendo. Ela teria declarado que Celso jamais usaria o tipo de sapato que calçava. Coitada! Não o conhecia e acho que no imaginário dela um prefeito deve vestir sei lá o que.
Você já havia jantado alguma vez com o Celso e o Sérgio no Rubayat?
Ivone Santana — Muitas vezes. Gostávamos de ir porque é próximo do ABC.
Voltavam sempre pelo caminho dos Três Tombos?
Ivone Santana — Não. O Sérgio sempre mudava o trajeto. Ele se acautelava. O Celso fazia o mesmo caminho pela Vergueiro. Mas geralmente era o Sérgio quem dirigia quando estávamos juntos.
Toda a polêmica da roupa, então, foi descabida?
Ivone Santana — Totalmente. Outra coisa absurda aconteceu com a secretária eletrônica. No sábado do sequestro tentei ligar para a casa do Celso e a secretária não estava no jeito normal dela. Não estava registrando mensagens. Comentei com o Klinger (Sousa, então secretário de Serviços Municipais) que isso era estranho e pedi para me acompanhar. Eu estava em pânico, não conseguia dirigir. Quando chegamos avisei o porteiro sobre o porquê de eu estar subindo no apartamento com o Klinger e eu havia notado a imprensa na calçada em frente ao prédio. Uma repórter da Rádio ABC acabou tumultuando tudo, declarando depois que não era eu porque ela me conhecia, o cabelo não era aquele e tudo o mais. Aí envolveu o Klinger, esparramando insinuações sobre a ida dele ao apartamento do Celso. Ninguém dessa rádio veio me ouvir para esclarecer o fato.
É por isso que você acha que a imprensa mais desserviu do que ajudou? Além da morte física do Celso, outras pessoas teriam sido assassinadas moralmente?
Ivone Santana — Sim. Em vários momentos tentou-se fazer uso político do caso. Eu, particularmente, me senti atingida por nunca ter sido ouvida enquanto família. Com o Sérgio (Gomes da Silva) houve o lamentável preconceito sobre o fato de ser moreno e ser o motorista, além de insinuações sobre a amizade com o Celso. Acho que também o Klinger foi prejudicado com a tentativa de vincular a todo momento o crime à denúncia de suposta arrecadação de propina em Santo André para campanhas do PT. Foi leviano demais para com todas essas pessoas, que são as mais próximas e leais ao Celso. O Gilberto Carvalho (chefe de Gabinete) também acabou envolvido, justo o Gilberto que era de absoluta confiança do Celso.
Desse grupo próximo, quem foi mais atingido?
Ivone Santana — O Klinger, sem dúvida. Foi uma vergonha. O episódio deu oportunidade para as maldades de pessoas que têm inveja deslavada do Klinger, gente inclusive do PT, gente que acabou jogando por terra todo o trabalho de pacificação do partido feito pelo Celso.
O que o prefeito pensava do Klinger?
Ivone Santana — Vou contar o que conversei com ele na última semana, a do sequestro. Celso se preocupava com o andamento da administração pública em Santo André em virtude do afastamento para trabalhar na campanha do Lula e um provável convite para o novo governo. Ele tinha certeza da vitória do PT. Sempre me falava: “O Lula vai ganhar. Ele está no ponto como nunca”. Klinger e eu fomos destacados para encontrar em São Paulo uma sede para o partido trabalhar no programa de governo. O Celsinho (Celso Luiz de Almeida, diretor municipal de Esportes) também estava ajudando a encontrar um endereço. A proximidade entre Celso e Klinger era muito grande. Tenho certeza de que o Klinger seria chamado para ajudar o Celso no programa da Presidência. O Klinger tem um jeito meio moleque, irreverente, e eles tinham uma cumplicidade muito grande. O Celso foi orientador da tese acadêmica do Klinger, por isso também se respeitavam muito.
Naquela semana, o Celso me confidenciou que o Klinger sofria muita injustiça — seja pelo jeito intempestivo dele, seja pela falta de clareza das pessoas em não ter enxergado a grandeza do gesto do Klinger em renunciar à candidatura a deputado para continuar na Prefeitura. Ninguém imagina o que isso poupou o Celso de trabalho na Prefeitura. Repito palavras do Celso: “A renúncia vai ser boa para o Klinger, porque assim ele amadurece como político, e para mim foi uma prova de confiança. Para poucas pessoas eu pediria o que pedi ao Klinger”.
Klinger Sousa era considerado o sucessor potencial de Celso Daniel na Prefeitura. Se o prefeito pedisse para que ele esperasse mais um pouco, ele esperaria?
Ivone Santana — Tenho certeza que esperaria. Não sei se Klinger era o escolhido de Celso, até porque não houve condição alguma no pedido para que abrisse mão da candidatura a deputado e permanecesse no secretariado, nem havia qualquer atitude de superproteção por parte do Celso. Também não acredito na tese de herdeiros naturais à sucessão. Celso sempre dizia ao Klinger que era muito importante, em política, passar pelo crivo eleitoral. Não adiantava ser um bom nome. Era preciso testar as urnas. Foi quando Klinger se candidatou e foi o vereador mais votado do PT. Celso pediu para ele ficar no secretariado porque poucos têm a capacidade de gestão, de gerência pública e de articulação que o Klinger exercita.
Como você vê o afastamento do Klinger da administração?
Ivone Santana — Pelos rumos que as coisas tomaram, foi melhor ele voltar para a Câmara de Vereadores. Se pudesse opinar naquele momento, eu não teria concordado com a saída. Entendo a justificativa de se afastar até que as coisas se esclareçam totalmente, mas não concordo. Veja o exemplo do Lula: manteve o ministro dos Transportes, Anderson Adauto, enquanto corriam as suspeitas (de desvios na Prefeitura de Iturama, MG). Por que você acha que o Celso se dava ao luxo de ter um perfil de secretários mais acadêmicos? Porque tinha gente competente que fazia a necessária articulação política. Ele confiava muito na presença constante de Klinger no Paço.
O prefeito falava muito disso com você?
Ivone Santana — O Celso estava preparando todo o secretariado para a ida dele a Brasília. Ele já estava fazendo várias reuniões para definir o planejamento estratégico, as limitações financeiras, as ações de governo de cada secretário, porque sabia que estaria menos presente em Santo André. Com certeza o pedido pessoal para o Klinger ficar na Prefeitura foi um indicador para todos sobre o papel que ele teria. Não era novidade para ninguém.
Celso Daniel morreu frustrado por causa do afastamento da família?
Ivone Santana — Celso nunca foi pessoa de fazer julgamentos. Eu sou mais crítica. Mas ele pensava, inclusive sobre gente do governo, que nem todo mundo tem o perfil ideal. Celso não concordava nem discordava de um julgamento. O que se via nele, de fazer mediação, não era concessão. Era o jeito dele mesmo.
Dizem que o prefeito nunca tomava uma decisão na hora. Sempre ganhava tempo para mensurar uma situação.
Ivone Santana — Isso fazia parte dele. Ouvia todo mundo, amadurecia, não era intempestivo para tomar decisões. Para ele, era sempre o meio termo: nem tanto ao mar nem tanto a terra, como sempre brincava parafraseando sua mãe dona Clélia.
Que tipo de disputa judicial você decidiu travar com a família Daniel?
Ivone Santana — Celso tem uma biblioteca enorme, um legado manuscrito das aulas e das idéias como administrador público e eu não posso concordar que tudo isso fique com a família. Decidi disputar esse legado intelectual a partir do momento em que o diálogo não foi mais possível com os irmãos. Como não existe na Justiça a figura do espólio intelectual, tive que incluir na ação os bens patrimoniais, o que me causou grande constrangimento. Até demorei para tomar essa decisão, mas foi uma tarefa que ele me confiou em 1997, quando assumi a Escola de Governo.
Quando ocorreu a decisão de ir à Justiça?
Ivone Santana — Em meados do ano passado. Isso, apesar de no próprio dia do velório o João Daniel ter me abordado pedindo a chave do apartamento do Celso. Não queria acreditar naquilo... Estávamos ao lado do caixão do Celso e eu ainda argumentei: “João Francisco, a única vez que você entrou no apartamento foi quando eu abri a porta para você ver seu irmão que havia feito cirurgia no joelho. Tenho muita dúvida se devo te dar as chaves, mas com certeza não vai ser agora”.
Por que ele queria as chaves?
Ivone Santana — Ele só dizia: “Precisamos conversar, precisamos conversar. Está muito nebulosa essa coisa toda”. Respondi que àquela altura não sabia o que havia acontecido exatamente, com quem ele (João Francisco) andava conversando, mas que o apartamento continuaria sob minha guarda. O que havia lá dentro, qualquer implicação que houvesse, era responsabilidade minha. Eu habitava ali. Ele constituiu advogado. Tentei conversar com a família, em vão.
Qual é o patrimônio de Celso Daniel?
Ivone Santana — A família achava que ele tinha um senhor patrimônio. É só um apartamento na Vila Assunção e um Gol 1997. Eu, que tenho poucos bens, tenho mais que ele.
Quando João Francisco a abordou sem respeitar sequer o velório, você sentiu que teria uma relação difícil a partir dali?
Ivone Santana — Senti. Ele queria ir ao apartamento porque achava que tinham plantado coisas (forjado provas).
Você sentiu nele uma curiosidade policial ou que ele queria tomar posse do apartamento?
Ivone Santana — As duas coisas.
Isso quer dizer que não te surpreenderam as denúncias que ele fez de que se tratava de um crime político?
Ivone Santana — Logo em seguida ao enterro, João Francisco me ligou para uma reunião. Ainda tinha todo aquele clima de consternação, meus filhos também abalados, minha filha pronta para embarcar para a Alemanha, e ele queria uma reunião. Respondi: “Dá licença que estou de luto”. E aí houve a cisão.
Voltando ao culto, o que achou do cerimonial? Você pareceu um tanto deslocada.
Ivone Santana — E estava deslocada mesmo. Me telefonaram convidando e fiquei em dúvida. Primeiro imaginei uma celebração mais reservada, pois não acho que a morte de Celso Daniel deva ser um ato político. No aniversário dele em 16 de abril vamos fazer totalmente diferente, uma homenagem apenas, de perfil cultural, como ele gostava. Segundo, quando Bruno (Daniel) falou, eu estava absolutamente desprevenida. O discurso dele foi político — não de irmão que perdeu irmão.
O que mudou na sua vida depois do assassinato?
Ivone Santana — Tanto minha vida afetiva quanto profissional era muito vinculada ao Celso. A ONG Escola de Governo, a qual coordeno, foi criada por ele para replicar na região políticas públicas como inclusão, desenvolvimento, sustentabilidade etc. Tudo ficou muito difícil, até porque Celso era a estrela do curso. Pensei muito se deveria continuar sozinha, inclusive porque não trabalhamos com nenhuma Prefeitura do PT. Sempre fizemos parcerias com ONU, Bird e outras instituições. A ONG capta dinheiro e faz o trabalho para a Prefeitura. Era questão de honra para o Celso. Mas decidi continuar. O João (Avamileno) conversou comigo e me encorajou. Achei bacana isso. A escola vai continuar através da Fundação Celso Daniel que estamos criando. Estamos trabalhando em dois projetos hoje.
Na vida pessoal, estou me fortalecendo para sobreviver e brigar pelas coisas que acredito. Infelizmente do outro lado podem estar a família do Celso ou o próprio PT.
Qual era o sonho do Celso Daniel político: um Ministério, o Senado, ser governador do Estado?
Ivone Santana — Ele sempre foi muito modesto. Celso nunca foi de fazer tipo. Algumas vezes nós do grupo mais próximo o provocávamos para sair candidato a governador. Dizíamos que aqui a coisa está dada: em âmbito regional ele trabalhou o que podia, mas a integração estava empacada, estava difícil. Sugerimos que disputasse a indicação do partido com o Genoino (candidato ao governo do Estado em 2002) para ficar mais conhecido dentro do PT e no Estado. Verdade seja dita, o PT não reconhecia o trabalho do Celso. O reconhecimento é bem recente. Ele conquistou espaço com verdadeiro trabalho de formiguinha.
O prefeito fez sucesso no Congresso de Fortaleza em 2001, quando houve o pré-lançamento da campanha de Lula. Foi ali que ele demarcou sua imagem?
Ivone Santana — Isso mesmo. O Celso tinha manuscrito, item por item, todas as idéias e planos de ação. Ele encheu vários cadernos universitários, cujas capas estão caindo, mas as páginas estão intactas. Tenho tudo guardado, assim como as aulas da Escola de Governo, da PUC e da GV (Fundação Getúlio Vargas).
Voltando aos vôos políticos...
Ivone Santana — Celso torcia o nariz, dizia que não queria sair de Santo André e voltar, temia sobre o que as pessoas pensariam porque havia sido eleito para quatro anos, essas coisas. A possibilidade de coordenar a campanha de Lula foi algo maravilhoso para ele. Poderia levar sua bagagem acadêmica e de governo e, se Lula não se elegesse, poderia voltar à Prefeitura. Lula gostava muito do jeito ponderado do Celso, da maneira como resolvia as ações públicas como a questão dos perueiros em Santo André, inclusive sugerindo que passasse os aprendizados para as demais prefeituras do PT.
É difícil ver Antonio Palocci no noticiário e não associar imediatamente Celso Daniel ao Ministério da Fazenda. Isso acontece com você?
Ivone Santana — Comigo e com muitos, inclusive fora do Brasil. Recebo muitos e-mails sobre isso. Mas acho que o Palocci está surpreendendo e isso é uma coisa boa para o Lula.
As informações eram de que Celso Daniel iria para o Planejamento, que seria o superministério de Lula. Com a morte, a Fazenda voltou à linha de frente com o Palocci.
Ivone Santana — O Celso tinha esse perfil de planejar, de trazer a discussão do plano acadêmico e intelectual para o prático. Além disso, a dedicação 24 horas dele era fantástica. Onde quer que fosse, inclusive nas viagens particulares, tudo ele transportava para a administração pública. Tudo o que chamava a atenção, ele dizia: “Puxa, preciso conversar com o Irineu (Bagnariolli, secretário de Desenvolvimento Urbano). Me lembre de falar sobre isso para o Klinger (Serviços Municipais)”. Celso adorava voltar para Santo André e discutir a aplicação de idéias que via fora.
Você acha que a qualificação e a notoriedade de Celso Daniel acabaram fazendo sombra aos demais prefeitos do Grande ABC e isso desarticulou a integração regional que tanto ele almejava?
Ivone Santana — Acho que não. É um privilégio para qualquer instância ter um Celso Daniel como participante. Acho que a integração é difícil porque precisa de tempo mesmo. Ele acreditava nisso. Dizia que o Grande ABC tem os elementos necessários para uma grande aliança. Lá fora foi assim também. Conhecemos várias experiências européias e a articulação conjunta só veio depois de muito tempo. Onde tem seres humanos tem vaidade, tem egocentrismo. Acho que no Grande ABC é questão de tempo. Sem o Celso vai demorar muito mais, mas a regionalidade virá. Pelos nossos filhos, pelos nossos netos.
Se fosse da área estrategista do governo João Avamileno, você usaria o espólio intelectual e administrativo de Celso Daniel para a campanha municipal de 2004?
Ivone Santana — Esse espólio já está sendo utilizado no governo federal, como as idéias de cidadania, de inclusão social. O próprio Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Lula é uma réplica do Santo André - Cidade Futuro. O orçamento participativo e outras experiências de cidadania em Santo André foram muito ofuscados por Porto Alegre, embora nós sejamos um celeiro de idéias inovadoras e algumas não tão premiadas.
Particularmente imagino que numa eventual campanha do João o legado do Celso vai ser utilizado. Não tenho opinião fechada sobre isso. Não sei o que está acontecendo na administração do João Avamileno.
Você está afastada?
Ivone Santana — É natural. Eu fazia parte do núcleo de confiança do Celso, sou militante antiga, trabalhei em todas as campanhas do PT, daí tinha outro envolvimento partidário com a administração. Só fiquei fora, em Natal (RN), no tempo em que o Celso não foi prefeito em Santo André.
Há antagonismos entre vocês?
Ivone Santana — Não. O João quer imprimir a marca dele e é natural que inclua gente do seu círculo. Vieram fazer intriga comigo quando tiraram o painel do Celso do Paço. Para mim tem valor a lembrança que ficou. Até comentei com minha filha que a foto não foi minimamente pixada nesse um ano em que ficou lá, em público. Isso se chama respeito. Por mim, a foto ficaria até o final deste governo. Seria bom para firmar a lembrança do Celso. Mas respeito a decisão.
Por que você diz que vai brigar com o PT?
Ivone Santana — Já trabalhei muito dentro do partido a questão de gênero. Você discute a tolerância, a discriminação, a igualdade. Que moral o PT tem para advogar determinadas causas no palanque e internamente discriminar uma militante como eu em nome de formalismos. Aquela frase do Maquiavel é absolutamente atual: É melhor ser temido do que amado. Nunca usei minha condição junto ao Celso para me impor ou me favorecer.
Você está se sentindo desrespeitada como viúva de Celso Daniel? Se pudesse voltar atrás, mudaria e se imporia como primeira-dama?
Ivone Santana — Nunca agi assim e não mudaria meu jeito de ser. Quem mudou foram os outros. Vou brigar com o PT para ser coerente no discurso e na prática. Se houvesse respeito pela minha condição, no mínimo me consultariam sobre o culto. Não quero tapete vermelho, mas transformar aquilo num ato político... Vou fazer minha própria homenagem ao Celso dia 16 abril, no seu aniversário, e vou convidar as pessoas da nossa estima.
O Celso mudou muitos nos últimos anos. Não era mais durão. Ele chorou na festa da Epifania a que fomos no começo de janeiro no Mosteiro dos Gerônimos, em Portugal. No filme da Tata Amaral sobre hip-hop, se emocionou com o depoimento de um garoto de periferia, delegado do orçamento participativo, a respeito da inclusão cidadã pela arte e porque podia falar e ser ouvido pelo prefeito de Santo André. Foi no auditório do Semasa. Tinha poucas pessoas. O Celso chorou.
O que o fez mudar?
Ivone Santana — O tempo, o amadurecimento. Na primeira gestão ele ia a todas as assembléias do partido, a todos os eventos sociais. Foi ficando mais seletivo, a ponto de não marcar mais nada nos fins de semana. Ficava em casa estudando, lendo, assistindo aos campeonatos da NBA (todos os possíveis e imagináveis) e aos jogos do Corinthians. Detestava quando o Corinthians perdia. Ficava muito mal humorado. Em épocas em que estava mais estressado, ele preferia não ver os jogos do Corinthians.
Tudo isso faz falta?
Ivone Santana — Muito. Ainda o tenho presente. Não vejo mais os jogos da NBA e não tenho suportado ir ao D’Brescia, onde almoçávamos toda segunda-feira.
Total de 193 matérias | Página 1
11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP