Se depender de Jorge Hereda, o Grande ABC deixará de ser olhado em Brasília como terra eternamente rica que não precisa de ajuda do governo federal. O secretário Nacional de Habitação pode ser um dos elos do Lulacá Urgente!, expressão utilizada por LivreMercado para defender uma aliança efetiva entre Grande ABC e União. Não que Jorge Hereda vá incorporar o papel de lobista ou do padrinho político que tem a força da caneta nas mãos para privilegiar a região. A política do varejo está longe do perfil desse homem que conhece a realidade regional o suficiente para compreender que o sinal vermelho está piscando já há algum tempo.
Quase três meses à frente da Secretaria Nacional de Habitação, Jorge Hereda ainda não tem condições de dar notícias que fariam o Grande ABC comemorar, como a destinação de recursos para amenizar o déficit habitacional estimado em 100 mil moradias. Mas reconhece que até agora a região recebeu muito pouco do governo federal no setor habitacional e que essa discriminação vai acabar. “O Grande ABC terá tratamento proporcional ao tamanho do problema que enfrenta” — confirma o executivo público que já ocupou a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano de Diadema, a Secretaria de Desenvolvimento Sustentado de Ribeirão Pires, a presidência da Cohab São Paulo e a Secretaria de Serviços e Obras da Prefeitura de São Paulo.
A densidade do currículo é proporcional ao tamanho do desafio e ao volume de recursos que a Secretaria Nacional de Habitação terá de destinar para resolver um dos principais problemas do País. Aos R$ 5 bilhões/ano do FGTS e outros R$ 200 bilhões que os bancos privados teriam de aplicar em habitação, além de alguns empréstimos internacionais, contrapõem-se a falta de 6,6 milhões de casas, 15 milhões de moradias inadequadas e quatro milhões de domicílios vazios, sem qualquer uso. É dentro desse festival de contrastes que Jorge Hereda e equipe terão de encontrar habilidades para universalizar o acesso à casa própria e com ações políticas diferenciadas para as áreas metropolitanas e regiões menos adensadas do Brasil, a fim de cometer o mínimo possível de injustiças.
A habitação está entre as inúmeras carências sociais do Brasil. O governo Lula assumiu com o compromisso de mudanças, mas precisou fazer cortes no orçamento para adequar a sempre polêmica questão receita-despesa. Como o senhor encara o desafio de comandar a Secretaria Nacional de Habitação diante da crescente escassez de recursos públicos?
Jorge Hereda — Os cortes no orçamento podem ser revistos em função do comportamento da economia. O presidente Lula já anunciou a liberação de R$ 310 milhões para garantir a continuidade de 1.674 obras do Ministério das Cidades, além do programa de urbanização de favelas. Além disso, o Ministério das Cidades é o gestor da aplicação dos recursos do FGTS e coordena as ações do governo na área da habitação, contando com a Caixa Econômica Federal como agente operador. Somente no âmbito do FGTS existe a possibilidade de aplicarmos R$ 5 bilhões ao ano no setor. Também está em negociação com o Banco Mundial empréstimo de US$ 500 milhões para novos programas. Além disso, vamos desenvolver ações que tragam de volta o financiamento privado, principalmente com recursos do SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo)
Como o senhor desenha o quadro habitacional no Brasil hoje. A falta de moradia nos rincões mais afastados é tão grave quanto a registrada nas áreas metropolitanas?
Jorge Hereda — O déficit habitacional no País é de 6,6 milhões de moradias, das quais 5,3 milhões são urbanas e 1,3 milhão rural. Temos ainda 15 milhões de moradias inadequadas. Dessas, 10,2 milhões possuem deficiências no abastecimento de água, luz, esgoto e coleta de lixo; dois milhões encontram-se com adensamento excessivo, 1,5 milhão sofrem com problemas de regularização fundiária e 1,4 milhão não têm instalações sanitárias. A grande maioria desses domicílios pertence a famílias com renda de até três salários mínimos. Estima-se ainda que 80% das famílias que precisam de casa também ganhem até três salários mínimos e dois milhões concentram-se nas regiões metropolitanas. Há outros dados reveladores da situação de contrastes: 70% de nossas cidades são construídas por autogestão. É a população tendo de responder solitariamente por sua moradia. Com toda essa carência, há no Brasil quatro milhões de imóveis vazios, seja nas mãos de investidores, sejam casas que não estão locadas ou no aguardo de litígios de herança.
Mas as estatísticas apontam que 14 em cada 100 brasileiros não têm onde morar. Essa média cresce nas áreas de maior adensamento e leva o caos às regiões metropolitanas. Existe na SNH algum calendário de prioridades para atacar o festival de disparidades formado por favelas, cortiços e loteamentos clandestinos de toda espécie, como ocorre no Grande ABC?
Jorge Hereda — A Secretaria Nacional de Habitação deve caminhar em duas vertentes. A curto prazo vamos rever os programas existentes para garantir recursos que viabilizem montante significativo de contratos ainda este ano. Também está em curso a preparação da nova Política Nacional de Habitação integrada com outras políticas setoriais como transporte e saneamento. Essa política deverá ser abrangente para responder ao déficit tanto na produção de unidades novas via mercado formal como na regularização e urbanização de assentamentos precários. Será voltada prioritariamente à população de baixa renda. Como o Brasil possui realidades diferentes, essa política não poderá tratar igualmente os desiguais sob pena de aprofundar as desigualdades. Assim, temos de desenhar um programa para a Região Metropolitana de São Paulo e outro para a região amazônica e o Nordeste.
Como essa política vai definir a responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal no setor e como será o elo entre os três níveis de governo?
Jorge Hereda — O atendimento às necessidades de moradia é de responsabilidade da União, do Estado e dos municípios. As ações devem ser integradas e descentralizadas para colocar o Município no papel de executor, pois facilita a potencialização dos recursos e o atendimento ao cidadão. O Sistema Nacional de Habitação definirá o papel dos agentes públicos e privados e disciplinará o financiamento para o setor. Será feita ainda uma grande revisão na política de financiamentos público e privado abrangendo o Sistema Financeiro da Habitação e o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, além de mudanças na aplicação de recursos do FGTS. Tem-se pensado também em nova política de subsídios e de aval para os municípios.
Um dos principais entraves para o acesso à casa própria é justamente a falta de financiamento. No início do governo Lula chegou-se a cogitar maior integração do Ministério das Cidades com a Caixa Econômica Federal — principal agente financeiro da habitação no Brasil — para, justamente, facilitar a alocação de recursos à habitação popular. Existe mesmo a possibilidade dos financiamentos da CEF atingirem a baixa renda?
Jorge Hereda — A CEF e o Ministério das Cidades já trabalham em total sintonia. Acredito até que deve ser o momento de maior integração entre os dois órgãos de governo de todos os tempos. O companheiro Jorge Matoso, presidente da CEF, tem total clareza do papel fundamental que a instituição exerce como agente operador e principal agente financeiro do FGTS. A Secretaria da Habitação é responsável por propor e coordenar a política habitacional. Por isso, temos papéis complementares. Não existe política habitacional que funcione num país continental como o nosso sem a capacidade operacional da CEF; mas a CEF não define a política. Um banco não pode exercer esse papel. Daí a importância da criação do Ministério das Cidades. É possível, por exemplo, utilizarmos recursos do FGTS conjugados com subsídios do orçamento da União para atingir as faixas menores de renda.
Mas a manutenção da política de juros altos não dificulta esse tipo de ação?
Jorge Hereda — Tenho certeza de que a política de juros que herdamos mudará em breve e assim teremos condições de trazer também o setor privado para esse mix. Em breve vamos conversar com o mercado imobiliário sobre juros, financiamento, impostos da construção e outros assuntos que atormentam o setor.
Outra questão que promete ser polêmica é a da titularidade aos moradores de áreas invadidas. Como equacionar a cessão dos títulos de posse da propriedade sem que o benefício se torne ciclo vicioso capaz de estimular ainda mais as invasões?
Jorge Hereda — As ilegalidades fundiárias urbanas não são privilégio apenas da parcela mais pobre da sociedade. A companheira Ermínia Maricato costuma dizer que se a Justiça mandasse demolir todas as edificações irregulares nas cidades brasileiras, entre 50% e 70% de nossas cidades viriam abaixo. Convivemos com a cidade legal, com total infra-estrutura e com a cidade real, a cidade do morador que não tem acesso à terra urbana legalizada e ocupa as encostas, as áreas de risco e as áreas de proteção. Devemos tratar essa questão com todo cuidado, levando em conta os instrumentos legais como o Estatuto das Cidades e a Constituição Federal. Qualquer cidadão que ocupe um lote urbano com menos de 250 metros quadrados por mais de cinco anos, e que não tenha outro imóvel, tem direito ao usucapião urbano previsto na Constituição. O Estatuto da Cidade permite a concessão de terra pública para moradia.
A titularidade interessa sobremaneira ao Grande ABC, não só pela quantidade de invasões, mas porque a maioria das favelas ocupa áreas de mananciais. A questão da posse da terra será tratada de acordo com o tipo da área invadida ou a lei valerá para todos?
Jorge Hereda — Obviamente não se pode legalizar áreas de risco e de proteção ambiental e essa deve ser uma ação criteriosa, conduzida por Estados e municípios. O Ministério das Cidades, por meio da Secretaria de Projetos Urbanos, trabalha em programa de apoio aos municípios para a regularização fundiária. Esse programa faz parte daquele empréstimo que está em negociação com o Banco Mundial e deverá destinar recursos exclusivos para esse fim.
O déficit habitacional do Grande ABC gira em torno de 100 mil moradias. É maior que a média nacional e está entre as mais altas das regiões metropolitanas. O governo federal pensa em promover alguma ação específica para amenizar a crítica situação habitacional da região?
Jorge Hereda — A nova política habitacional vai levar em conta que o Brasil é um país com 80% da população vivendo nas cidades e com 50% da pobreza concentrada nas áreas urbanas. Grande parte dos brasileiros ocupa seis metrópoles, por isso a revisão dos programas tem de, necessariamente, contemplar esses aglomerados urbanos. Era comum adotarmos critérios aparentemente justos como, por exemplo, prioridade para os municípios com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) menor que a média nacional. Mas a realidade é que as grandes metrópoles convivem ao mesmo tempo com IDH de primeiro e terceiro mundos e a média nem sempre está abaixo da média nacional. Basta comparar o Jardim Ângela com o Morumbi, na cidade de São Paulo. A situação é a mesma em Santo André, em São Bernardo e outros municípios de porte semelhante. Por isso, o Grande ABC enquadra-se nesse exemplo de distorção.
Recentemente o Centro de Estudos das Metrópoles, da Universidade de São Paulo, estimou que seriam necessários investir R$ 3 bilhões para acabar com mais de dois mil núcleos de favelas da cidade de São Paulo. Desconhece-se estudo semelhante que mostre o quanto custaria desfavelizar o Grande ABC. De qualquer forma, o poder público municipal não tem esse dinheiro e deve buscar recursos da União. Quanto o governo federal terá disponível para investir em habitação popular e quanto desse total pode vir para o Grande ABC?
Jorge Hereda — Só do FGTS será possível investir entre R$ 4,5 e R$ 5 bilhões/ano nos próximos anos. Temos esperança de que, com a melhoria do cenário macroeconômico e as reformas já previstas, seja possível reduzir despesas e ganhar margem para novos investimentos.
O fato de o senhor estar à frente da Secretaria Nacional de Habitação pode facilitar a vinda de recursos para a região? Com um presidente e vários colaboradores oriundos do Grande ABC, Brasília finalmente deixará de tratar o Grande ABC como região rica?
Jorge Hereda — É preciso mudar a prática que fortalece o lobby e o compadrio com a implantação de critérios técnicos, objetivos e transparentes. O presidente Lula deixou claro aos prefeitos que marcharam até Brasília que o governo federal não discriminará nenhum Município. Como o Grande ABC convive com problemas habitacionais típicos das grandes metrópoles, merecerá atenção proporcional ao problema que enfrenta. Uma coisa é certa: pelo menos o Grande ABC não será discriminado como foi até agora. Com raras exceções, a região tem recebido muito pouco do governo federal na área habitacional.
Há algum projeto habitacional do Grande ABC que o senhor considera relevante e que possa tornar-se referência para outros locais do País?
Jorge Hereda — Diadema e Santo André levaram experiências bem-sucedidas para a Conferência da ONU — Habitat II, em Istambul, em 1996. Diadema particularmente pela sua política habitacional e de desenvolvimento urbano. Temos o exemplo de Santo André, considerada pela ONU como uma das 10 melhores práticas de inclusão e urbanização de favelas no mundo. Não é pouca coisa. A experiência de Santo André demonstra que se pode realizar um projeto que garanta moradia no conceito mais amplo, indo até a geração de trabalho e renda como o que ocorre no núcleo Tamarutaca.
E o inverso. Há alguma experiência em outras cidades brasileiras que pode ser reproduzida em larga escala no Grande ABC?
Jorge Hereda — Não acredito que seja possível combinarmos experiências de outros lugares para o Grande ABC ou qualquer região. Os exemplos são referência importante, mas cada região tem de discutir com seus cidadãos o melhor caminho a ser seguido. Ao governo federal cabe oferecer leque de programas que possam dar suporte às iniciativas locais. O Grande ABC tem de encarar a questão da habitação de maneira coletiva. Acho difícil uma cidade resolver os problemas habitacionais nos limites do próprio território. Proponho um Plano Regional de Habitação e Desenvolvimento Urbano com participação do Estado e da União como saída para equacionar o problema.
Que radiografia o senhor faz da realidade habitacional do Grande ABC?
Jorge Hereda — O Grande ABC é parte da maior metrópole brasileira e tem os mesmos problemas habitacionais das grandes cidades brasileiras. As cidades cresceram desordenadamente, em ritmo acelerado. Na década de 70, Diadema cresceu 20% ao ano, Mauá 10% e assim quase todos os outros municípios. Hoje sofrem com a dura realidade dos novos tempos de crise, principalmente do desemprego.
A renda média do brasileiro sofreu queda de 8,8% entre dezembro de 2001 e dezembro de 2002. O salário médio do brasileiro que pode comprovar renda não passa de R$ 900 e o teto mínimo exigido pelo mercado para financiar imóveis é, na maioria dos casos, 10 salários mínimos. O mercado imobiliário alega que não tem como construir para quem ganha menos, principalmente nos grandes centros, porque os custos da obra inviabilizam o negócio. Como compatibilizar essa equação, já que as variáveis renda e custo de vida insistem em caminhar em sentidos opostos?
Jorge Hereda — Entre 1994 e 1999 construiu-se no Brasil algo em torno de 4,5 milhões de habitações. Dessas, apenas 700 mil foram erguidas pelo mercado formal da construção. Os bancos em geral aplicam muito pouco no financiamento habitacional. Nem os recursos da poupança — mais de R$ 200 bilhões —, que por lei teriam de ser aplicados, o foram na proporção devida. A nova política deve reverter essa realidade e discutir com os agentes privados instrumentos para retomar esses financiamentos. Como governo federal, podemos agir para catalisar o setor. A construção civil é um setor muito importante para geração de renda e desenvolvimento no País e tem de ser tratada como parceira importante na nova política.
O senhor concorda com a tese do mercado imobiliário de que sem subsídios do governo federal a população que ganha menos de 10 salários mínimos dificilmente terá acesso à casa própria?
Jorge Hereda — Concordo que o governo federal deve ter uma política de subsídios que viabilize a atenção às populações mais carentes. Contudo, acredito ser possível ampliar a faixa de renda atendida pelo mercado para abaixo de 10 salários mínimos. Acho possível, com a intermediação do governo, chegar a faixas muito mais baixas.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira