Administração Pública

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o tempo perdido

VERA GUAZZELLI - 05/09/2003

O Grande ABC passou agosto mergulhado num mar de debates para realizar as conferências municipais que antecedem a Conferência Nacional das Cidades, programada para outubro próximo pelo Ministério das Cidades, em Brasília. Apesar da convocação do governo federal ter mobilizado os sete municípios, a discussão chegou à região com pelo menos duas décadas de atraso em relação ao caos urbano agravado pela combinação entre desindustrialização, explosão demográfica e crescimento da exclusão social. A iniciativa, no entanto, contempla necessidade tardia de direcionar investimentos para uma macropolítica urbana capaz de diminuir a romaria dos municípios aos gabinetes ministeriais em busca de dinheiro para frear a queda da qualidade vida, sobretudo nas áreas metropolitanas.

É como se a Conferência das Cidades integrasse a primeira etapa de renegociação de uma dívida antiga cuja quitação aponta para o longo prazo. Ao fechar a pauta nos temas Habitação, Saneamento, Meio Ambiente, Transporte e Mobilidade Urbana, o governo federal pré-diagnosticou o volume das demandas diante da histórica falta de planejamento dos governos locais, da frágil conexão entre as esferas de poder e dos crescentes pedidos de maior transferência de recursos da União para Estados e municípios. O próprio Grande ABC é retrato emblemático desse quadro. A região se fez na riqueza industrial, perdeu a pujança econômica, mas pouco tem sensibilizado os gabinetes de Brasília sobre a atual realidade.

"Essas discussões são o início de um processo que deveria ter começado há pelo menos 20 anos" -- entende o secretário de Orçamento e Planejamento Participativo de Santo André, Maurício Mindrisz. "Realmente chega com atraso, mas é preciso aproveitar a oportunidade ao máximo" -- emenda o secretário de Desenvolvimento Econômico de Ribeirão Pires, Luciano Roda. Os dois executivos públicos foram os responsáveis pela coordenação das conferências em suas cidades e se valeram da experiência de participação popular do PI para facilitar o debate proposto pelo governo central para que haja ampla participação da comunidade.

Desde 1999, Santo André reúne poder público e sociedade civil no Cidade Futuro, projeto que busca diagnosticar ações de médio e longo prazo para restabelecer o crescimento minado pela perda de atividade industrial e consequente queda de receita tributária. Também desde 1999, Ribeirão Pires trabalha na mesma linha com a Agenda 21, ferramenta de planejamento construída entre Prefeitura e comunidade para os próximos 20 anos. As outras cidades do Grande ABC têm experiência participativa semelhante, o que facilitou o arredondamento do documento municipal que deverá ser enviado à Brasília para subsidiar as diretrizes da nova política urbana nacional a serem traçadas a partir do resultado da macroconferência.  

Todos os municípios brasileiros foram convidados a participar e as normas estabelecidas pelo decreto federal que institucionalizou as conferências não deixam dúvidas. As cidades que declinaram do processo correm grande risco de ficar de fora da lista dos investimentos da União em obras de habitação e infra-estrutura nos próximos anos. Além de elaborar o documento-base, as conferências locais elegeram os delegados com direito a voto -- 249 no Grande ABC. Esses representantes estão automaticamente credenciados para a etapa estadual programada para 26 e 27 de setembro e são os candidatos naturais a compor o grupo com poder de decisão que vai até Brasília. O Estado de São Paulo enviará 222 delegados. 


Debate regional -- O decreto também abriu a possibilidade das conferências serem realizadas regionalmente, mas até a metade de agosto apenas 900 cidades entre as 2.935 que atenderam o chamado federal agruparam-se em 60 encontros. A maioria preferiu individualizar a conversa justamente pela ausência de histórico de integração. Mesmo o Grande ABC, acostumado a alardear uma institucionalidade regional mais teórica do que prática, optou pelo local. De qualquer forma e apesar do curto espaço de tempo -- Mauá realizou a conferência em 30 agosto --, os sete municípios ainda pretendem reunir todos os delegados em encontro regional. 

"Apesar das cidades terem discutido demandas localizadas, é importante afinar o discurso" -- analisa a coordenadora de Participação Popular de Diadema, Maria de Fátima Queiróz. "A visão regional fortalece o debate" -- concorda o coordenador da conferência de São Caetano, Ênio Moro Junior. Caso se confirme, a reunião do Grande ABC chega com atraso em relação à iniciativa da Emplasa (Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano), que realizou conferências com caráter metropolitano na Grande São Paulo, Baixada Santista e região de Campinas no final de agosto.

A relevância que a questão metropolitana assumirá no contexto da Conferência Nacional das Cidades é inquestionável porque 40% da população brasileira espremem-se em 2% do território nacional. Diante dessa realidade, a tarefa de priorizar investimentos assume dimensão gigantesca frente à escassez de recursos públicos. O PSH (Programa de Subsídio à Habitação) do governo federal é um dos exemplos dessa dificuldade. O programa dispõe de R$ 350 milhões para construir casas populares em todo o País. Se o valor fosse igualmente dividido apenas entre os 39 municípios da Grande São Paulo, seria suficiente para construir não mais que 300 unidades em cada um, número sem qualquer expressão para aliviar o déficit habitacional. Somente na cidade de São Paulo 1,16 milhão de moradores ocupam as favelas. No Grande ABC, o déficit é estimado pelo governo federal em 110 mil moradias. 

"Não basta construir casas. É preciso também investir em redes de água e esgoto, no transporte público e na preservação do meio ambiente" -- pondera o secretário de Habitação de Mauá, Cláudio Scalli. O executivo utiliza a própria cidade para exemplificar as dificuldades de contemplar esse conceito ampliado de moradia que leva à efetiva melhoria da qualidade de vida. Cerca de 20% dos 390 mil moradores de Mauá estão em favelas e outros 50% ocupam imóveis clandestinos ou irregulares. Como a cidade tem dívida pública correspondente a quase quatro orçamentos anuais, a capacidade de investimento é insuficiente para dar conta de obras de grande porte.  

A situação é praticamente a mesma em todas as cidades do Grande ABC. Independente da dívida pública ser maior ou menor do que em Mauá, a maioria vive o dilema de conciliar perda de receitas com aumento de demanda por serviços públicos. Diadema abriga 33% da população em favelas urbanizados e não urbanizadas. Já São Bernardo tem mais de 150 mil moradores ocupando as áreas de mananciais. "O ideal é que o Município fosse sempre o executor dessas políticas urbanas" -- sugere o secretário de Habitação de São Bernardo, Osmar Mendonça, sob a lógica de que a sobreposição de ações faz os poucos recursos disponíveis ficarem ainda mais escassos. 

Em busca de respostas para solucionar equações tão complexas, o Grande ABC nutre expectativas positivas com relação aos resultados da Conferência Nacional das Cidades. A própria criação do Ministério das Cidades é vista pelos secretários locais como importante ponto de partida, já que a pasta tornou-se endereço de questões urbanas antes pulverizadas por vários ministérios. "A grande expectativa é que a nova postura contribua para otimizar recursos" -- espera Luciano Roda, de Ribeirão Pires. 

A formulação dessa política urbana nacional, no entanto, deve extrapolar as questões de prioridade e finanças para esbarrar nas causas político-partidárias, sempre alimentadas pela velha prática do toma-lá-dá-cá que vincula liberação de verbas ao cronograma eleitoral. A recente recusa da União em dividir com os Estados parte da receita da CPMF, a grita dos municípios com a queda nos repasses do Fundo de Participação, o lobby da Confederação Nacional dos Municípios para alterar a regra de distribuição do ICMS em benefício das pequenas cidades e o contra-ataque dos que perderiam receita são pequena mostra do conflito de interesses que vem pela frente.


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