Entrevista Especial

Filantropia não
é capital social

VERA GUAZZELLI - 05/09/2003

Antes mesmo do termo responsabilidade social ser amplamente utilizado para fortalecer a imagem das empresas, a publicitária Ana Claudia Govatto decidiu embrenhar-se por esse assunto recheado de polêmicas. Inúmeras vezes chamada de Alice no País das Maravilhas por acreditar que a atuação responsável da atividade produtiva iria, cedo ou tarde, extrapolar a sede física das empresas, Ana Cláudia seguiu firme no propósito de difundir um conceito que ainda é confundido com filantropia, pura e simples. Nada, no entanto, que a faça declinar do importante papel de estimuladora das transformações. 

Depois de trabalhar entre 1988 e 1999 em agências de publicidade e de tornar-se professora universitária dos cursos de publicidade, jornalismo e rádio e TV do Imes de São Caetano, Ana Claudia Govatto acaba de concluir mais um desafio. Devidamente subsidiada pelas experiências profissional e acadêmica, inseriu a responsabilidade social em recém-encerrada tese de mestrado que abordou as contradições de um mercado publicitário quase sempre dividido entre o marketing de guerra e a necessidade de manter a imagem ética das marcas e dos produtos. O trabalho analisou a existência ou não de capital social nas relações de consumo por meio dos anúncios de 59 corporações, entre as quais Natura, Nestlé, Ford, Fiat, Coca-Cola, Nokia e Motorola. 

"Nenhuma empresa será capaz, sozinha, de atingir patamares favoráveis de responsabilidade social na comunicação sem oferecer qualidade de informação que permita ao próprio consumidor exercer o papel de avaliador dessa conduta" -- concluiu a profissional ao término de um estudo de quase 200 páginas. Casada, 37 anos e mãe de uma menina de 11, Ana Claudia Govatto já coordenou quatro simpósios sobre responsabilidade social na região e realizou inúmeros trabalhos na área, muitos dos quais não remunerados. Sempre ciente de que já se tornou referência, acaba de integrar o projeto voluntário de profissionalização e captação de recursos que está sendo formatado para Nossas Madres Terezas pelo Sebrae regional. As 19 agentes sociais homenageadas por LivreMercado aprenderão com Ana Claudia, entre outras coisas, como combinar causas comunitárias com roupagem mercadológica.  

Responsabilidade social virou moda e muitas empresas utilizam indiscriminadamente o termo como ferramenta de marketing. Como a senhora enxerga a aplicação equivocada de um conceito que vai muito além das ações pontuais? 

Ana Claudia Govatto -- Toda nova técnica, método ou conceito empresarial sempre corre o risco de ser mal utilizado no começo e isso é até normal em fase de aprendizado. O problema é quando o uso indiscriminado decorre da má fé. É verdade que empresas (e não são poucas) utilizam-se da responsabilidade social apenas como rótulo de marketing, uma forma de constituir a imagem por meio de apoio a projetos sociais que muitas vezes não estão coerentes com a política adotada para os negócios. 

É a clássica dualidade entre o discurso e a prática?

Ana Claudia Govatto -- Há empresas que se dizem cidadãs, porém não cumprem leis, sonegam impostos e não dão boas condições de trabalho aos funcionários. A ética na condução dos negócios antecede e é balizadora da responsabilidade social empresarial. Para ser socialmente responsável, a empresa deve se perguntar: "Somos éticos na condução dos negócios? Se a sociedade e o meio ambiente oferecem condições para a produção, estamos realmente devolvendo algo de valor?" 

Qual o grau de entendimento das empresas em relação à necessidade de construir o capital social e em que estágio de inserção encontram-se no processo?  

Ana Claudia Govatto -- A importância que a sociedade moderna -- movida pela informação -- dá às novas posturas dos cidadãos e das empresas fortalece o conceito de que a responsabilidade social empresarial é fundamental para a sustentabilidade dos negócios. O setor empresarial é detentor de conhecimento suficiente para saber das vantagens da responsabilidade social e só não avança mais porque algumas equações próprias dos negócios são difíceis de ser resolvidas. O objetivo de qualquer empresa é lucrar e sem o lucro não há razão de uma empresa existir. O pensamento empresarial, portanto, está voltado para a qualidade desses negócios, mas essa qualidade deve incluir, além do resultado financeiro, também o resultado social e os impactos positivos e negativos que o negócio poderá provocar. 

As demissões estariam entre as ações que muitas vezes não podem ser evitadas, mas que comprometem sobremaneira a imagem de responsabilidade das corporações?

Ana Claudia Govatto -- Pode-se tomar como exemplo a reformulação da indústria automobilística. As montadoras precisam reduzir custos e despesas e estão num mercado realmente competitivo. O centro da questão é: será que antes de decidirem pela demissão, as empresas adotaram estratégias eficientes de redução de custos e despesas que nem sempre são tão rápidas? Não seria também o caso de repensar as margens de lucro?  Então, demitir, às vezes, é mais fácil do que encontrar caminhos para administrar bem e combater o desperdício. Agora, se a empresa já fez tudo isso e o mercado não reage ou se existem funcionários desconectados do processo produtivo, a coisa é diferente. Também não podemos achar que as empresas são instituições de caridade. 

Sob essa ótica, parece inegável que as condições macroeconômicas interferem diretamente no grau de responsabilidade social das empresas?

Ana Claudia Govatto -- O grau de aplicação dos conceitos da responsabilidade social está fortemente atrelado ao momento de mercado de cada atividade empresarial. Momento ruim, responsabilidade social frágil, apesar de não ser a conduta mais correta. É importante dizer também que o investimento social privado é impactado de acordo com a situação econômica do país. Quanto menor o faturamento, menos recursos são destinados a projetos sociais. No final do ano passado previa-se ampliar em 20% os investimentos em projetos sociais, mas com o agravamento do quadro econômico brasileiro, muitas empresas recuaram e revisaram as expectativas. 

Já existem dados de pesquisas sobre os valores que as empresas brasileiras investem em ações capazes de valorizar o capital social?

Ana Claudia Govatto -- Segundo o Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), há pelo menos 30 grandes organizações privadas no Brasil, as chamadas grantmarkers segundo os americanos, que destinam cerca de R$ 200 milhões anualmente para projetos sociais de ONGs e indivíduos. Dados divulgados em 1998 apresentavam a gigantesca soma de R$ 12 bilhões investidos por empresas em projetos destinados a comunidades fora do ambiente interno. Os investimentos são ainda maiores quando somados a outros aplicados em programas para os funcionários, mas ainda faltam dados consistentes sobre o assunto. É certo que com a adoção da publicação do Balanço Social -- ferramenta de diagnóstico, reflexão e divulgação do investimento social privado -- as organizações privadas estarão fornecendo dados mais consistentes sobre a questão. Por enquanto, ficamos com o que é levantado por entidades e associações empresariais que coletam dados especificamente dos associados.

A senhora acredita que muitas corporações ainda vivem a dualidade de praticar responsabilidade social apenas da porta para fora? Ou seja, confundem capital social com filantropia?  

Ana Claudia Govatto -- Isso acontece mais do que podemos imaginar. A gestão da responsabilidade social dá trabalho porque exige diálogo, compreensão das diversidades, sinergia e comprometimento. Às vezes fica mais fácil adotar a política do prático e conveniente. Apenas um alerta: todo investimento social privado está de alguma forma beneficiando pessoas que podem de uma hora para outra ficar em situação pior, caso a empresa suspenda o auxílio. Por isso é bom deixar claro que engajamento é mais do que filantropia e assistencialismo, bastante válidas como ações paliativas, porém pouco transformadoras. 

Sua tese de mestrado aborda justamente as contradições na esfera da responsabilidade social. E escolheu a propaganda para mostrar os frequentes deslizes provocados pela necessidade de vender frente à dificuldade de manter a postura ética. Num mundo tão competitivo, é possível encontrar o ponto de equilíbrio? 

Ana Claudia Govatto -- A motivação para desenvolver o estudo foi a percepção de que mesmo empresas que hoje são exemplos de negócios éticos e bem conduzidos deparam-se com dilemas quanto ao mercadologicamente necessário e o socialmente correto. É bom ressaltar que marketing e comunicação são ferramentas fundamentais da economia e devem privilegiar o ético. Essa história de que propaganda é somente o reflexo da sociedade é coisa do passado e contribuiu para reforçar o conceito de que a publicidade é a grande vilã do consumismo. Pode-se perfeitamente fazer publicidade considerando e respeitando os valores sociais, a formação das gerações, o estímulo à cidadania e às atitudes responsáveis sem agredir valores ou estimular comportamentos negativos para chamar a atenção do consumidor. 

Nesse caso, a propaganda também tem a tarefa de despertar para a construção da responsabilidade social?

Ana Claudia Govatto -- A propaganda tem a tarefa de promover o consumerismo, ou o consumo responsável numa expressão mais atual para denominarmos o exercício dos direitos e deveres nas relações de compra e venda. Toda vez que assisto, leio ou ouço anúncios criativos procuro observar se além de engraçados, inteligentes do ponto de vista da sacada ou do argumento, consideram o impacto que estarão exercendo sobre os consumidores. Por exemplo: é de relevância social um comercial que reforça a beleza física como fator decisivo para a felicidade? Qual a contribuição positiva do anúncio que estimula a criança a mexer no fogão ou abrir uma garrafa de bebida alcoólica? Em outro aspecto importante do estudo, as 59 empresas que fizeram parte da amostra foram analisadas também sob as regras do Código de Defesa do Consumidor e do Conar (Conselho Nacional de Regulamentação Publicitária). Surpreendentemente, os dois foram descumpridos em vários pontos.  Conversando com algumas empresas sobre os resultados, muitas confirmaram o que tínhamos detectado: o marketing de guerra muitas vezes não dá espaço para a ética. 

Como o brasileiro é considerado um povo de memória curta, há algum tipo de prejuízo a médio e longo prazo para as corporações que optam quase sempre pelo chamado marketing de guerra? 

Ana Claudia Govatto -- Sempre há riscos para quem se omite ou se expõe. O mundo está assim: se não fazemos é porque não fazemos e se fazemos é porque fizemos errado. Em responsabilidade social é melhor errar do que não ter tentado. O povo brasileiro tem memória curta, mas é incrível a capacidade para punir empresas que lhe proporcionaram uma má experiência. Não à toa, os serviços de atendimento ao consumidor expandem-se e é grande o número de organizações que implantam a figura do ombudsman. Punir ou privilegiar uma empresa, no entanto, depende muito do grau de informação e entendimento que o consumidor detém. Em tese, as classes A e B teriam mais condições de promover o consumo consciente comparativamente às classes C, D e E, que carecem de instrumentos para analisar o que as empresas fazem. O analfabetismo, por exemplo, é um dos grandes entraves para a cidadania. Observe a quantidade de informações que o setor varejista precisa passar em apenas 30 segundos de anúncio na televisão. Será possível o consumidor estar bem informado sobre preços, prazos e quantidades ofertadas em meio a tantas informações e imagens? Acho difícil. 

E como fica a correlação responsabilidade social e fortalecimento da marca?

Ana Claudia Govatto -- Fica prejudicada no médio e longo prazo quando a gestão da responsabilidade não contempla uma conduta bem definida de marketing e comunicação. Fortalecem-se marcas com práticas e discursos condizentes. Se as empresas querem estabelecer relacionamentos com os consumidores, precisam apoiar-se na transparência e no respeito aos valores, aos interesses e à sustentabilidade da sociedade. Costumo fazer a seguinte analogia: um casamento pode sobreviver sem dinheiro, sem lazer, sem filhos e até sem sexo, porém não sobrevive sem respeito mútuo. Uma vez quebrada a confiança e tendo outras opções batendo à porta, nenhum consumidor ficará fiel a uma marca que o desrespeitou.

Esse tipo de comportamento não estaria mais adequado aos países europeus, onde as condições econômicas e culturais são totalmente diferentes? No Brasil, onde o desemprego cresce, a renda cai e os consumidores vivem atrás de preço baixo, há espaço para, por exemplo, preocupar-se com as boas práticas de fabricação?   

Ana Claudia Govatto -- Ética e responsabilidade social nos negócios assumem características diferenciadas por influência cultural. Um país como o Brasil, acostumado a procurar vantagens econômicas seja por necessidade ou por oportunismo, certamente privilegia muitas coisas antes de considerar a atuação responsável de uma organização. Porém, como estamos em plena evolução nesse campo e muito se deve à importação de conceitos e metodologias dos Estados Unidos e de países europeus, principalmente a Inglaterra, é óbvio que estamos passando por um processo de aprendizagem. Houve época em que combater o tabagismo, por exemplo, era no mínimo um ato suicida. Enfrentava-se críticas porque fumar estava na moda. Também há algum tempo falar de ética ou ser ético era quase impossível e assumir a ética publicamente, então, era chamar para si uma grande briga. Eu mesma fui apelidada de Alice no País das Maravilhas várias vezes e resisti por acreditar que o Brasil poderia ser mais sério e justo. Bons exemplos sempre contribuem para a mudança significativa de atitudes. 

A senhora acredita mesmo que a discussão sobre ética já chegou ao ponto de ser dissociada da demagogia? 

Ana Claudia Govatto -- Gosto de lançar a discussão sobre ética nos negócios em sala de aula. Você se surpreenderia ao ouvir as crenças dos jovens de hoje. A grande maioria, felizmente, acredita ser possível conduzir eticamente uma empresa e discute essas possibilidades, algo que na década de 80, por exemplo, era inaceitável. No ano passado, quando abordava o assunto no curso de jornalismo, ouvi de um aluno que é fácil falar em ética quando se tem carro do ano e dinheiro para comer em restaurante. Além de assistir toda a classe rebater a colocação com argumentos, tive a certeza de que nós, professores e consultores, somos referência para muitos jovens.



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