Conforme o prometido, porque embasado numa relação de interesse público com um emissário que tratou do assunto, estamos publicando na íntegra o Parecer Jurídico que dinamita do ponto de vista técnico, ético e moral a tentativa ainda camuflada (mas nem tanto) da Federação Paulista de Futebol de transformar em ilegitimidade, abuso e tudo o mais a ocupação da 16ª vaga da Série A1 do Campeonato Paulista do ano que vem. Tudo porque o Red Bull se juntou ao Bragantino e não poderá disputar a competição.
O professor André Ramos Tavares é o autor dessa investigação minuciosa. O especialista em Direitos Constitucionais e Direitos Desportivos dispensaria apresentação fosse o futebol regido por normas de responsabilidade que não abrissem brechas a idiossincrasias e raciocínios turvos.
Tanto é verdade que tanto a mentira quanto a subjetividade permeiam o mundo esportivo que não faltam analfabetos jurídicos que veem na busca por legalidade a assombração em forma de conspiração contra a FPF.
Esses falseadores normativos preferem por razões nem sempre explicáveis o improviso e as limitações dos quadros técnicos da Federação Paulista de Futebol à especialização apavorantemente intocável de um profissional do Direito.
Com essa nova edição sobre o que chamo de “vaga da discórdia”, CapitalSocial dá sequência (quem disse que tudo acabou; afinal, tudo pode estar começando de fato?) a uma saga cuja única e exclusiva decisão está conectada a um bem intocável do jornalismo: o esclarecimento permanente, mesmo que a custa de reações de terceiros que ultrapassariam a diplomacia. Na sequência, apresentamos um currículo resumido do professor André Ramos Tavares (o currículo detalhado conta com mais de 100 páginas) e o Parecer Jurídico que tornam opositores reles interessados em contravenções esportivas e servilismo jornalístico.
Currículo do especialista
Professor Titular da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP
Professor Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Conselheiro da Comissão de Ética da Presidência da República do Brasil (mandato 2018-2020)
Membro titular do Comitê de Reformas do Futebol Brasileiro (CBF), em 2016, juntamente com Carlos Alberto Parreira, Carlos Alberto Torres, José Edmilson Gomes de Moraes, e Miraildes Maciel Mota (Formiga), dentre outros, que resultou na elaboração do Código de Ética do Futebol.
Integrante do Conselho Consultivo do CNJ (mandato 2018-2020);
Membro titular da Comissão de Estudos Constitucionais do CFOAB (mandato 2019-2021);
Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2004)
Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000)
Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998)
Titular da Academia Paulista de Letras Jurídicas
Membro do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de São Paulo
Coordenador Geral da Revista Brasileira de Estudos Constitucionais da Editora Fórum (atualmente no nº 32)
Autor de 21 livros, dentre os quais: Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 17ª edição, 2018; Nova Lei da Súmula Vinculante: Estudos e Comentários à Lei 11.417 de 19.12.2006. São Paulo: Editora Método, 3ª, edição, 2009 Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. Coleção Professor Gilmar Mendes, vol I. São Paulo: Editora Método, 2009 (PRÊMIO JABUTI 2006) Vade Mecum eleitoral integrado, ed. Fórum, 2. Ed., 2012, em coautoria com o Ministro E. R. Lewandowski.
Coautor de aproximadamente 100 livros coletivos
Coordenador de mais de 10 obras coletivas já publicadas
Autor de mais de 250 artigos publicados em mídia impressa (boletins, revistas, periódicos especializados e jornais);
Examinador em aproximadamente 400 bancas de qualificação, mestrado, doutorado, livre-docência e concursos públicos em todo o Brasil e no exterior;
Palestrante em aproximadamente 180 palestras e conferências, no Brasil e no exterior (África, Argentina, Espanha, EUA, Portugal, Rússia, Itália, França, Polônia e Rússia)
Elaborou mais de 50 prefácios e apresentações a obras jurídicas
Atuou como examinador em bancas examinadoras de diversos concursos para magistratura estadual e procuradorias municipais em todo o Brasil.
Foi Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (2013-2019)
Foi Diretor da Escola Nacional Judiciária Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (2010 a 2012)
Foi Pró-Reitor de Pós-Graduação “Stricto Sensu” da Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP (2008-2012)
Foi Presidente do Conselho Consultivo da Presidência do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2014-2015)
Foi Consultor da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (2014)
Foi integrante do Grupo de Trabalho Acadêmico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Foi Coordenador da Revista Estudos Eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral (2009 a 2011)
Foi Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais (2004 a 2006)
Foi Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais (2007 a 2009)
Foi Procurador Municipal concursado da Cidade de Cubatão - Área de Consultoria em Meio Ambiente (1999)
Foi Professor Permanente do Curso de Doutorado em Direito Universidade de Bari – Itália;
Foi Professor Visitante da Cardozo School of Law em Nova Iorque (2006), da Universidade Fordham em Nova Iorque (2007), da Universidade de Bologna – Itália (2012), da Universidade de São Petersburgo – Rússia (2012) e da Universidade de Glasgow – Escócia (2019).
Recebeu diversas medalhas e ordens de mérito, no Brasil e no exterior, como a mais alta comenda da Assembleia Legislativa de SP (Medalha da Rev. Constitucionalista) e a Medalha da Academia de Ciências da Itália – Seção Bolonha.
Parecer Jurídico demolidor
Visando à elaboração de Parecer Jurídico, fui consultado por pessoa atenta à necessidade de se respeitar a imperatividade e aplicação rigorosa dos Regulamentos da Série A1 e da Série A2, da Primeira Divisão, do Campeonato Paulista de Futebol Profissional, editados pela Federação Paulista de Futebol, de 2019. Essa consulente solicitou reserva sobre sua identidade e, exatamente por isso, concordou, desde logo, com a ampla divulgação dos resultados que viessem a ser alcançados com a presente pesquisa, posto que o intuito é o de colaborar com os envolvidos, com os responsáveis e com os interessados em geral, a fim de preservar a legitimidade das práticas esportivas, com total respeito ao sistema normativo estrito e próprio do futebol.
Constituem o cerne deste Parecer problemas que envolvem a sistemática própria das regras do Campeonato na Série A1, bem como o tema do acesso à Série A1, envolvendo-se, neste tópico específico, por força das regras tanto da Série A1 como da Série A2.
Para bem encaminhar esses assuntos é imprescindível uma análise ampla, a esclarecer (i) o pressuposto e significado de um Regulamento nas competições futebolísticas integrantes do sistema da Federação Paulista de Futebol - FPF; (ii) o caráter autônomo das normas do Regulamento da Série A1, quanto aos clubes que permanecerão na mesma Série em 2020, e (iii) o alcance e significado do acesso à Série A1 em 2020, previsto no Regulamento da Série A2, em especial no caso de não participação de algum de seus classificados.
Os encaminhamentos e conclusões deste estudo baseiam-se nas premissas normativas e circunstâncias, reais e hipotéticas, apresentadas expressamente ao longo do texto. Exatamente por isso são válidos nesses estritos limites, sendo certo que variações nos elementos assim fixados e apresentados podem alterar ou comprometer o resultado final.
É exatamente no campo referido que surgem as indagações centrais a esta Consulta, assim alinhavadas:
1. O Regulamento paulista da Série A1 de Futebol profissional, de 2019, indica como deve ocorrer o Campeonato de 2020, em virtude da desistência de um dos clubes classificados para a Série A1 (e dela integrante em 2019)?
2. As eventuais soluções que venham a ser cogitadas a partir de regras próprias e específicas do Regulamento da Série A2, pensadas e dirigidas para a Série A2, podem, legitimamente, ser impostas aos clubes da Série A1?
3. Quais os limites de atuação da Federação Paulista de Futebol no encaminhamento do tema?
I. CONTEXTO DO CASO CONCRETO
O campeonato da Série A1 da Primeira Divisão do Futebol paulista teve suas regras estabelecidas em Regulamento devidamente aprovado pela respectiva Federação de Futebol. Abordarei esse contexto normativo conjuntamente com o contexto fático do que ocorreu nesse campeonato, durante o ano de 2019, e do que se cogita que pode, ainda, vir a ocorrer, no mesmo plano fático (o que tratarei como situações concretas e, eventualmente, hipotéticas, a fim de elucidar as consequências jurídicas possíveis). A finalidade maior aqui é a de contribuir para a legitimidade dessa importante competição no cenário brasileiro.
Esse campeonato transcorreu regularmente durante o ano de 2019. Concorreram 16 (dezesseis) equipes (Clubes) na mencionada Divisão e Série específicas. É o que se encontra no art. 1º do referido Regulamento:
“Art. 1º - O Campeonato Paulista de Futebol Profissional da Primeira Divisão - Série A1 da temporada de 2019 será disputado pelos 16 (dezesseis) Clubes que obtiveram índice técnico para participar da Competição [...]” (original não grifado).
Os Clubes, devidamente nominados no Regulamento e ali caracterizados como “participantes”, nesse Regulamento também encontraram as regras do sistema de disputa que enfrentariam, de maneira detalhada e de forma a compor uma competição regrada. Esse conjunto de regras de uma competição é composto não apenas pelas regras aplicáveis dentro de campo, mas também pelas regras que formatam o sistema das competições dentro de cada Série, com regras sobre suas etapas, número de partidas, condições de jogo, registros de jogadores, composição dos resultados, critérios de desempate, modelo da bola, arbitragem, etc.. E foi assim que o referido campeonato se estabeleceu, por exemplo, com base em quatro grupos (art. 4º) compostos a partir da realização de sorteio (art. 5º) e com uma sistemática específica de competição, cujos termos iniciais encontram-se descritos da seguinte forma:
“Art. 9º - Na primeira fase os Clubes de um grupo jogarão com todos os Clubes dos demais grupos, em turno único, classificando-se para a fase de quartas de final os 02 (dois) Clubes com o maior número de pontos ganhos nesta fase, em cada um dos grupos [...]” (original não grifado)
Essa primeira fase é relevante, como se nota, em termos de classificação, dentre os participantes, para as quartas de final e, ainda, em termos de desclassificação, para fins de rebaixamento. Interessa, ao presente estudo, conhecer de maneira vertical o desenho regulamentar deste último tópico.
A dúvida tem se implantando a partir de cogitações acerca da abertura de uma vaga, digamos “adicional”, dentre os integrantes classificados, por força de futuro ato de um ou mais dos Clubes.
Primeiramente é preciso registrar que não há dúvida sobre movimentos e ações legítimas, por parte de clubes, acabarem por gerar consequências em sua existência jurídica e, portanto, impactarem no seu próprio desenlace em determinado Campeonato, alterando-se o primeiro resultado da aplicação seca do modelo de classificação da Série A1. E assim ocorrerá em hipóteses como a de encerramento de suas atividades ou em hipótese de fusão entre Clubes ou incorporação (absorção estatutária) de um Clube por outro. Estamos, aqui, no campo da licitude, lastreada na livre autonomia das entidades envolvidas, desde que, evidentemente, a liberdade individual não seja utilizada com fins fraudatórios.
No caso concreto, cogita-se de uma nova relação jurídica, que de resto seria perfeitamente legítima, entre o Red Bull Futebol e Entretenimento Ltda., de Campinas e o Clube Atlético Bragantino, de Bragança Paulista, este último integrante também da Serie A1. Assim, teríamos dois clubes (integrantes) da Série A1, de 2019, classificados para a mesma série A1, de 2020, mas que, por decisões soberanas de suas diretorias, podem se transformar, doravante, em um único clube, com a extinção do outro. Como se sabe, na incorporação, um dos Clubes desapareceria, mantendo-se apenas o outro, ampliado. Já na fusão, ambos clubes deixariam de existir para dar espaço a um terceiro e novo clube, resultante da somatória dos dois clubes originais. Evidentemente que, nesses termos, uma terceira equipe, de fora da Série A1, poderia também incorporar-se ao Red Bull, o que resultaria em um cenário diverso do que vou tratar adiante.
Assim é que neste estudo irei me cingir à dúvida que emerge da hipótese de se constatar, ao final, a existência de apenas 15 (quinze) classificados dentre os participantes na Série A1, para 2020. E o farei sob o pressuposto de essa situação inusual ocorrer em virtude de ato privado (legítimo) de algum ou alguns clube(s) participante(s) (de 2019) já classificado(s) (para 2020), em decisão adotada após o encerramento do campeonato esportivo.
Uma das propostas de leitura que chegou ao meu conhecimento vai no sentido de transpor o Regulamento próprio da Série A1 e concluir por indicar o terceiro colocado de outra Série como beneficiário dessa ocorrência da Série A1.
Antecipo, aqui, as conclusões finais, que explicitarei de maneira fundamentada ao longo do estudo, para advertir que não cabe, na atual quadra e no assunto “Regulamento”, o tipo de leitura, de um documento normativo, que se precipita, fantasiosamente, em adotar a conclusão acima, de um beneficiário espúrio à Série A1. Procurarei, então, explicar características inaceitáveis desse encaminhamento, a saber: a atipicidade (sem previsão regulamentar), a falta de organicidade (ignora as demais regras), o anacronismo metodológico (analogia inaceitável na atualidade da literatura jurídica e na melhor prática dos tribunais) e, como decorrência de tudo o quanto exposto, a parcialidade (porque parte de subjetivismo na escolha de normas heterônomas).
II. O REBAIXAMENTO NA SÉRIE A1
Do ponto de vista tanto do Regulamento da Série A1, quanto do Regulamento da Série A2, é inquestionável que a exigência é, no tema que nos interessa, de que haja possibilidade ascensional para Clubes não integrantes da referida Série A1.
Neste ponto, os Regulamentos realizam um movimento convergente, para regular a hipótese da abertura, quer dizer, de clubes que alteram posições seriais ou que deixem a Série à qual pertenciam.
Ao ascenderem a uma Série superior, os trânsfugas simbolizam a essência competitiva, seja a passada, seja a futura, estimulando que todos demais busquem esse mesmo resultado em campeonato posterior.
Para tanto, como sabemos, é necessário que haja a abertura das respectivas “vagas” na Série A1. Essas vagas, é certo, podem ocorrer pela desclassificação (e subsequente rebaixamento), mas também por outras ocorrências não-corriqueiras, mas igualmente legítimas.
No caso do Regulamento da Série A1, está contemplado o acesso de dois clubes da Série A2, pela abertura, que é impositiva nessa normativa, de duas vagas dentre os integrantes desse Campeonato em 2019.
A regra geral dessa abertura está no art. 9o, parágrafo único, que a assegura por meio do rebaixamento de dois clubes.
“Parágrafo Único - Concluída a primeira fase os 02 (dois) Clubes que obtiverem o menor número de pontos ganhos, independente do grupo, serão rebaixados à Primeira Divisão - Série A2 de 2020, observando-se, caso necessário, os critérios de desempate previstos neste REC.” (original não grifado).
É certo que qualquer compreensão do tema “rebaixamento” requer que se leve em consideração, como ponto de partida essencial, o quanto foi disposto nesse parágrafo único do art. 9º. Mas a leitura de uma norma jamais poderia ocorrer legitimamente de maneira isolacionista.
Essa norma, juntamente com outras que analisarei abaixo, está no centro da celeuma instaurada. Nela se fala do rebaixamento de dois clubes. Uma das soluções aventadas na grande mídia está conectada a uma leitura enviesada dessa norma.
Trata-se da tentativa de transformar o mencionado parágrafo único do art. 9º em regra superior quanto às demais e, concomitantemente, como regra que haveria de ser lida em esplendor isolacionista, como uma norma plena em si mesma, independentemente de outros acontecimentos e regras do mesmo Regulamento. Essa é uma proposta que não se coaduna com o próprio Regulamento, como veremos, e ignora a organicidade de um corpus próprio de regras.
Vou denominar essa vertente, aqui, como a de uma leitura unilateral, porque ela se comporta como se estivéssemos diante de um axioma de todo o Regulamento, localizado justamente no referido parágrafo único do art. 9º, a ser lido de maneira literal e isolacionista. Esse tipo de leitura anula todas as demais regras, suprimindo-se quaisquer outras ocorrências e excepcionalidades, que passariam a ser simplesmente ignoradas.
Além de não ser aceitável esse tipo de construção interpretativa unilateral, por redundar no colapso do próprio Regulamento, tendo sido de há muito superada pelo desenvolvimento científico, não há qualquer indício de que o Regulamento tenha erigido essa regra em especial para receber uma leitura desse porte, o que, apesar do anacronismo, poderia ter ocorrido. Mas o que tivemos foi exatamente contrário, como irei demonstrar, quer dizer, impede-se esse tipo de proposta interpretativa unilateral.
O telos dessa norma, quer dizer, seu propósito maior, não é propriamente o rebaixamento de um ou outro Clube da Série A1, mas sim o estabelecimento e garantia de um sistema de incentivos competitivos, para ascensão e queda, concomitantes, em determinada quantidade, para que se permaneça ou não em uma das Séries. Sobretudo, o que se quer é propiciar a entrada de dois novos players na Série A1, como veremos com mais atenção.
Efetivamente deve haver duas vagas na Série A1 da Primeira Divisão, de maneira a propiciar a almejada ascensão de dois clubes da Série A2. Isso só se compreende com uma leitura não isolada do parágrafo único do art. 9o, acima transcrito, porque, isoladamente, tornar-se-ia uma regra rígida que se bastaria a si própria. Mas o telos dessa norma está na mencionada fórmula de incentivos competitivos, que é amplamente adotada nos campeonatos de futebol, e que foi efetivamente adotada neste caso.
É por meio dessa fórmula que clubes de uma Série inferior podem ascender, pela sua qualidade técnica (aferida a partir de resultados), à Série imediatamente superior, para estar ao lado de clubes já qualificados nessa Série, sem alterar-se, com esse movimento, a quantidade de clubes na referida Série A1 da Primeira Divisão. A regra também estimula a competição na Série A1, porque a vitaliciedade na Série A1 seria um forte desestímulo competitivo, que restaria circunscrito a, eventualmente, e em caráter sazonal (conforme as conveniências e oportunidades de cada Clube em cada momento histórico), competir pelas primeiras colocações, afastada que estaria a hipótese mais temida, a do rebaixamento.
Também haveria forte desincentivo às competições e à busca pela melhoria técnica e melhores resultados se se adotasse o modelo de convites, escolhendo-se clubes para uma Série independentemente dos elementos competitivos.
Assim, em síntese deste primeiro tópico, temos que o parágrafo único do art. 9o acima transcrito não é regra que se possa isolar do restante contexto competitivo. Ela não basta em si mesma. Não é norma absoluta do sistema, mas sim uma norma integrada em um telos específico e inquestionável.
O objetivo do campeonato não é, necessariamente, rebaixar os dois últimos colocados integrantes da sua Primeira fase, mas sim o de abrir duas vagas, dentre os integrantes dessa Série, para que funcione o sistema de incentivos e a conexão mínima com a Série seguinte, a A2. Ou seja, é necessário que se abram duas vagas na Série A1. O parágrafo único traz apenas a hipótese mais comum de abertura dessas vagas, não impedindo a ocorrência de uma hipótese excepcional, desde que não atente contra os postulados do Regulamento (como seria o caso, por exemplo, de uma fraude ou de um “convite” para retirar-se).
Mais ainda, há uma regra de ouro para o caso presente, que fornece uma normativa expressa para soluções demandadas em face de hipóteses excepcionais. Ela está contida no art. 50 do Regulamento da Série A1:
“Art. 50 - Os casos não previstos neste REC serão interpretados pelo DCO, observando-se os termos do RGC, prevalecendo este REC sobre o RGC na existência de conflito.”
Nos termos expressos dessa regra de interpretação, os eventuais casos omissos do Regulamento em questão devem ser decididos pelo Departamento de Competições da FPF, mas este deve proceder com observância dos termos do Regulamento Geral das Competições, da FPF, e não conforme seus próprios juízos e convicções.
Assim, o art. 50 nos fornece dois comandos: i) previsão de que situações excepcionais (não previstas) podem ocorrer e foram consideradas pelo Regulamento; ii) a decisão, nesses casos, não está em ignorar os fatos novos, mas em aplicar as regras gerais e as diretrizes do sistema regulamentar.
Insisto no último ponto (ii) acima. Não se trata de permitir qualquer decisão ou interpretação por parte do referido Departamento. Está peremptoriamente afastada, como haveria mesmo de estar, qualquer arbitrariedade na composição dessas situações anômalas, que se entendam ser de omissão. Vejamos, então, o encaminhamento normativo do caso excepcional, aqui considerado como o caso de fato novo, superveniente, que altera o número de integrantes classificados da Série A1.
III. A SOLUÇÃO PARA O CASO
A primeira observação, aqui, diz respeito à fonte normativa a ser utilizada para as situações que vão além do referido parágrafo único do art. 9o. O Regulamento da Série A1 contempla, expressamente, como visto, quais fontes podem ser utilizadas para a solução de casos eventualmente não contemplados de maneira explícita em alguma de suas regras.
É o que se encontra no art. 50, já transcrito anteriormente, no que invoca o RGC, a ser utilizado “nos casos não previstos neste REC”. Porém, não é apenas esse art. 50 do REC que invoca o RGC. O art. 1o do REC já havia fixado desde logo que o Campeonato Paulista de Futebol da Série A1 da primeira divisão, deve obedecer:
“[...] o RGC da FPF, parte integrante e indissociável deste REC”.
O que está no art. 50 é uma solução engenhosa, mas bem conhecida do Direito, e que remonta, em nossa tradição jurídica ocidental, ao modelo estabelecido pelo Código de Napoleão, o Código Civil francês de 1804. No caso esportivo aqui em análise, há reforço de incidência das normas do RGC, tanto para i) fins de solução de casos de interpretação do RCE como para ii) fins de solução de casos não previstos no REC. Vejamos esta segunda parte mais de perto, novamente com a dicção do texto do Regulamento da Série A1, que está sob nossa análise:
“Art. 50 - Os casos não previstos neste REC serão interpretados [...] observando-se os termos do RGC [...]”
Assim, em conclusão, temos que o RGC pode ser utilizado para suprir lacunas do DCO, inclusive com o uso de suas normas mais gerais, mas nunca violando o DCO, especialmente as balizas destes (falo das balizas, dos grandes vetores do Regulamento, já que não haverá, nessa hipótese, norma específica capaz de ser violada).
Insisto neste último ponto com o registro de que tanto o REC como o RGC são peremptórios em afirmar que em caso de conflito deve sempre prevalecer a normativa do REC, por ser este o Regulamento mais específico. Adota-se, expressamente, o princípio da especificidade, que deve sempre reger e guiar o intérprete atento. O Regulamento Geral (RGC) reforça essa mesma precedência dos Regulamentos das Competições (mais específicos) para solucionar as questões específicas, fazendo-o em seu art. 4o, parágrafo único, no que é seguido pelo REC da Série A1 de 2019 em seu art. 50, como visto acima. A especificidade do Regulamento da Série A1 é característica incindível desse sistema de normas.
Ainda que esteja equacionada a questão sobre o uso do RGC, para melhor compreender sua incidência no caso sob análise neste estudo será preciso, ainda, realizar alguns esclarecimentos adicionais, por conta de outras normas que podem gerar certa estranheza no tema.
É que, indubitavelmente, há previsão de outras fontes de produção de normas, cujos poderes e limites cumpre compreender. Estou me referindo, especialmente, ao art. 33 do Regulamento Geral , que deve ser detidamente abordado a fim de esclarecer o que vai nele disposto:
“Art. 33 - Caberá ao DCO expedir instruções complementares necessárias à aplicação deste RGC, bem como resolver eventuais casos omissos.”
Observo que o art. 50 do REC e o art. 33 do RGC estão tratando de situações distintas. O art. 50 trata da interpretação (de resto, sempre necessária) a ser feita pelo DCO, impondo que se realize com estrita observância “[d] os termos do RGC”. É o que vínhamos falando e o quanto nos interessa. Já o art. 33 do RGC está reconhecendo uma capacidade normativa para o referido Departamento (DCO), que se distancia de nosso interesse. Vejamos o que esta significa, exatamente para espancar qualquer dúvida e afastá-la do presente caso.
O Departamento de Competições da FPF pode, nos termos regulamentares, expedir essas instruções, com base no art. 33 do RGC. Mas para editar essas instruções complementares, ainda que relacionadas a pontos omissos (do Regulamento Geral, como veremos), estas instruções i) devem ser prévias ao campeonato em questão e ii) devem respeitar aos pressupostos indicados no próprio Regulamento Geral, ou seja, estamos diante de uma normatização possível, mas secundária e limitada. Ela é secundária em relação ao Regulamento Geral, e a este se dirige exclusivamente.
Quanto ao primeiro item, é possível concluir que cada vez mais tem havido maior especificação e detalhamento das regras relacionadas às competições esportivas, como consequência de uma maior civilidade, como dizia Brugi e gerando melhor qualidade das competições. E, no atual estágio civilizatório, são inadmissíveis normas ex post factum a alterar modelos e resultados das competições.
O esporte é exercício de poder e, como tal, há de se adequar estritamente a regras jurídicas, ainda que próprias (autonomia do esporte em relação ao Estado), mas editadas com respeito à previsibilidade e segurança jurídicas, proibindo-se, assim, a surpresa. Como já assinalei a esse respeito, em lição de todo aproveitável para o caso específico aqui relatado:
“Como primeira densificação do princípio da segurança jurídica, tem-se: i) a necessidade de certeza, de conhecimento do Direito vigente, e de acesso ao conteúdo desse Direito; ii) a calculabilidade, quer dizer, a possibilidade de conhecer, de antemão, as consequências pelas atividades e pelos atos adotados; iii) a estabilidade da ordem jurídica” (André Ramos Tavares. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 646).
Em termos ainda conceituais, fala-se, recentemente, em direito à informação como um dever das entidades esportivas. Não pretendo ingressar nesse amplo campo temático, no qual há certos pontos de disputa, mas tenho por certo que é dever e interesse das entidades esportivas o cumprimento das obrigações regulamentares, especialmente as competitivas. Nesse sentido é que se conecta o direito à informação específica que abordo aqui, pois é prática de boa governança esportiva que se realizem sessões informativas aos interessados ou envolvidos, reforçando as regras em vigor.
Assim, quando o REC, de 2019, da Série A1, objeto de nosso interesse, refere-se ao DCO para abordar sua atividade interpretativa, e não sua atividade normativa (via instruções), temos como resultado inequívoco desta análise que as regras a serem adotadas em casos omissos são as regras do RGC, não as instruções do DCO sobre o Regulamento Geral, nem muito menos novas instruções, ainda que transvestidas de decisões interpretativas concretas.
As instruções do DCO podem resolver outras lacunas (as do próprio RGC), mas não as lacunas do REC. O assunto não impõe maiores resistências, e pode ser melhor visualizado em uma tabela.
Assim, afastada a incidência das eventuais instruções do DCO como rota de solução no caso presente, reforçada está a conclusão acima, acerca da aplicação dos estritos termos do REC e do RGC, para os fins aqui pretendidos, devemos, doravante, adentrar nesse mérito, indicando a solução e o fundamento jurídico para o caso que nos foi apresentado.
Qualquer solução (especialmente a oficial, a ser prolatada pela FPF) precisa respeitar uma das balizas mais fundamentais das competições, expressa em seu Regulamento Geral, por meio do dever de combater toda e qualquer “manipulação dos resultados” (art. 41). Trata-se de regra presente em todos os códigos esportivos atuais, como, v.g., o novo Código Disciplinar da FIFA, de 2019, em seu art. 18. Busca-se, de maneira unânime, expurgar qualquer possibilidade de manipulação, seja direta, seja indireta. Inevitável considerar a adulteração, como é o caso da modificação a posteriori das regras de uma competição, como atentatória aos princípios mais comezinhos em qualquer sistema baseado em resultados que se pretendem apenas técnicos, quer dizer, com critério meritório.
Nessa mesma linha temos o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, em seu art. 191, inc. III, que considera infração relativa à administração desportiva e às competições, deixar de cumprir ou dificultar o cumprimento de “regulamento, geral ou especial, de competições”.
Ademais, independentemente da aplicação de regras gerais para solucionar casos particulares da Série A1, o Regulamento Geral das Competições da FPF, de 2019, já contém determinação expressa e direta, quer dizer, específica para os RECs, sobre qual deve ser a diretriz destes sistemas jurídicos:
“Art. 7º - Os RECs fixarão normas a respeito de [...] forma de acesso e descenso, as quais obedecerão exclusivamente a critérios técnicos.”
Esta norma é um reforço do art. 41 e nos fornece a diretriz que norteou a construção das normas do Regimento da Série A1. O formato de termos uma norma a indicar o critério que norteia todo um encadeamento normativo posterior, quer dizer, do Regulamento A1, permite que possamos alcançar a base valorativa das normas deste, fazendo-o longe de disputas interpretativas. E essa base valorativa é, novamente, a base técnica, que deve ser diretriz interpretativa.
Aliás, essa norma-valor já se fazia presente no sistema, por força da Lei Pelé, que em seu art. 2º, inc. IX, expressamente adota como princípio do desporto nacional o princípio da qualidade, significando a valorização dos resultados esportivos.
Mais ainda, trata-se de direito do torcedor, expresso no Estatuto do Torcedor, nos seguintes termos peremptórios:
“Art. 10. É direito do torcedor que a participação das entidades de prática desportiva em competições organizadas pelas entidades de que trata o art. 5o seja exclusivamente em virtude de critério técnico previamente definido.”
Eis, portanto, a diretriz que deve preponderar na solução que se busca aqui, quando da compreensão do Regulamento da Série A1. Sabemos doravante, portanto, o pilar sobre o qual se pode legitimamente construir os encaminhamentos interpretativos dos quais necessitamos: o critério técnico.
Em assim sendo, cumpre agora aplicar, dentro do Regulamento da Série A1, o entendimento técnico, que qualifica o resultado esportivo, a fim de solucionar a hipótese omissiva aqui aventada, qual seja, o que ocorre um clube classificado da Série A1 desistir ou deixar de existir.
Essa resposta envolve, necessariamente, a própria compreensão de como se compõe a Série A1 com seus integrantes. O elemento técnico primário a ser respeitado decorre da forma como se desenhou essa Série especial, pressuposto de todo o campeonato e dos regulamentos manejados até agora: todos os 16 (dezesseis) clubes que iniciaram a competição na Série A1 em 2019 são considerados como portadores do mais alto nível técnico dentro desse campeonato. E a competição ocorrida em 2019 entre todos esses clubes da elite do futebol paulista só reforçou suas posições iniciais de técnica superior.
Trata-se de critério que está, inclusive, reafirmado por Lei. O mesmo Estatuto do Torcedor citado linhas atrás determina, em seu art. 10, na nova redação dada pela Lei 13.155, de 2015, que:
“§1º. [...] considera-se critério técnico a habilitação de entidade de prática desportiva em razão de
“I - colocação obtida em competição anterior”
É só assim que se compreende a razão pela qual os integrantes da Série A1, de 2019, pelo seu nível técnico, preservam uma série de posições (como o §1º do art. 5º), para 2020, justamente por já estarem na referida Série A1. Isso demonstra que esses clubes receberam, do ponto de vista normativo, o reconhecimento de seu mérito técnico sobre todos das demais Séries pelo simples fato de já integrarem na Série A1 em 2019.
Neste ponto é importante advertir que nenhum clube externo à Série A1 goza de qualquer direito, espaço ou posição, na Série A1. O Regulamento da Série A1 trata apenas da abertura de duas vagas, de maneira que assim se permita o acesso de dois novos clubes, a partir de 2020, e apenas de dois, a título de acesso.
Resta, assim, que há uma nítida e inequívoca preferência estabelecida, tanto pelo REC como pelo RGC, para aqueles clubes que já são considerados integrantes da Série A1. Essa é uma diretriz do sistema, lastreada no nível técnico dos clubes, que deve ser sempre utilizada, inclusive e especialmente para casos duvidosos ou de suposta omissão no Regulamento da Série A1. É solução inescapável para todos, reiterada, como visto, pelo próprio RGC.
Assim, caso ocorra, após a formação de um conjunto de clubes integrantes da Série A1 e classificados para 2020, o surgimento de uma vaga por razões legítimas e lícitas, não se pode pretender aplicar um sistema de pescaria na Série A2 para presentear qualquer de seus clubes com um imaginário direito de acesso, forjado arbitrariamente, após o campeonato e a latere das regras aplicáveis.
Se já existem clubes integrantes da Série A1 de 2019 que, somados os dois clubes vitoriosos da Série A2, compõem número suficiente para o próximo Campeonato, sequer surge a indagação sobre qual clube da Série A2 poderia também (um terceiro) ascender. Se não se pode fazer, legitimamente, a pergunta, tenho por certo que a resposta, por muitos cogitada, indicando o terceiro classificado da Série A2, é, nesse sentido, descabida e totalmente arbitrária. Ainda que se queira revesti-la de normatividade, tenho por certo que se trata de uma tentativa de contornar o que é vedado. Como sabemos, todo o sistema esportivo de competições e, especificamente, o Estatuto do Torcedor, vedam o ingresso em qualquer Série na forma de “convite”, quer dizer, violando as condições técnicas para integrar determinada campanha. Uma falsa normatividade não alterará a essência, nesse caso, que é a de um convite, atentatório ao modelo esportivo.
Mas vejamos a fonte que pode ter originado essa resposta espúria e sua rápida difusão no circuito esportivo e na mídia especializada, de maneira a afastar definitivamente qualquer resquício de dúvida que ainda possa permanecer.
IV. A CONFUSÃO ENTRE REGULAMENTOS
O Regulamento da Série A2 dispõe de maneira taxativa sobre a Série A1 na seguinte passagem:
“Art. 9º - Terão direito de acesso à Primeira Divisão - Série A1 de 2020 os 02 (dois) Clubes classificados para a fase final da competição.”
Observe-se, desde logo, que se trata de conexão única com a Série A1. Mas não apenas isso. É preciso acrescentar, desde logo, que, rigorosamente falando, conectam-se os clubes classificados para a fase final da Série A2 com a Série A1 de 2020, e não com a Série A1 de 2019, esta sim o único objeto de preocupação aqui.
Logo a seguir, em seu parágrafo único, determina-se, ainda, nesse mesmo Regulamento da Série A2, que:
“§ 1º - Em caso de não participação de algum Clube classificado para o Campeonato Paulista de Futebol Profissional - Primeira Divisão - Série A1 de 2020, terá também acesso o Clube que obtiver a 3ª melhor campanha no Campeonato Paulista de Futebol Profissional - Primeira Divisão - Série A2 de 2019, dentre os que disputaram a fase semifinal.”
É um os princípios mais comezinhos da Ciência do Direito o de que parágrafos e alíneas são elementos que especificam a cabeça do artigo, quer dizer, não são normas que tratam de temas diversos. Ainda que se possa cogitar de uma técnica legislativa grosseira, ou mesmo torpe, o certo é que ao operador do Direito resta trabalhar não com o eventual intuito equivocado de quem escreveu a norma, mas sim com o que nela resultou escrito, na forma como foi definitivamente grafado e aprovado.
Assim, pouco importa, para a compreensão do Direito, se houve qualquer tentativa enviesada de lançar uma norma conscientemente dúbia em seu sentido e alcance. Digo isso exatamente porque a expressão empregada “terá também acesso” poderia causar, sim, certa confusão mental, sobre ser um acesso para além dos dois acessos atribuídos aos clubes classificados para a final.
Mas a regra, rigorosamente, trata da não participação de clubes classificados na Série A2, única que é objeto das regras desse Regulamento e que foi expressamente endereçada na cabeça do artigo, como visto acima.
Ademais, ainda que uma palavra (“terá também”) possa ser compreendida como tendo sido empregada de maneira menos técnica ou menos assertiva, levando, em seus estertores, a uma dúvida aceitável já com grande esforço e por amor às ilações mais aleatórias, isso não significa que também se possa ignorar todo o restante do conjunto igualmente textual desse mesmo artigo e, adicionalmente, ignorar também o contexto em que está inserida a norma, o objeto desse Regulamento e seus objetivos, apenas porque uma palavra foi empregada de maneira que pode gerar, quando lida singularmente, uma dúvida interpretativa. Assim, a própria linguagem do restante dessa norma impede que se promova a leitura libertária que alguns mais incautos estão propondo.
Lembremos, aqui, que há lição praticamente unânime na Doutrina em considerar a linguagem um limite interpretativo, para além do qual temos apenas arbitrariedade. E, nesse sentido, considera-se que a linguagem do texto “inclui o que se pode inferir do texto, sua estrutura, organização e o relacionamento entre suas diferentes proposições”.
A norma contida nesse § 1º emprega expressamente o vocábulo “classificado”, igualmente contido no caput, e que se refere, neste, à Série A2. Outra orientação básica aos intérpretes, que nos aproveita imensamente, foi bem enunciada por Celso Bastos da seguinte forma: “a termos idênticos, utilizados por diversas normas, deve-se atribuir o mesmo significado”. Seria preciso romper radicalmente com essa lógica e com a conexão entre o caput e o parágrafo para estabelecer que o § 1º trata da Série A1 (já uma anomalia em si) e usa vocábulo impróprio (“classificado”) quando, “em verdade”, queria se referir a integrante dessa Série.
Seria inconcebível que uma palavra, ainda que nela seja aceitável mais de uma interpretação, permitisse a escolha livre de uma leitura que subverteria todo o resto da própria norma, do Regulamento em geral e, ainda, que de maneira inesperada e surpreendente atingisse o Regulamento de outra competição.
Em realidade, ao dispor que “também” terá acesso o clube classificado com a terceira melhor campanha, o parágrafo primeiro apenas admite o acesso (também) do terceiro colocado, com melhor campanha na Série A2, no caso de um dos dois primeiros colocados da Série A2 desistir do acesso. O que a norma está contemplando é o critério, igualmente técnico, de acesso do terceiro colocado, na falta de algum dos primeiros colocados da Série A2.
Assim, no campeonato de 2019, o Água Santa de Diadema tem em face de si a possibilidade, normativamente contemplada, de ascender sim, bastando para tanto que ou o Santo André ou Internacional de Limeira comuniquem algum fato relevante em relação ao respectivo Clube, como algum dos fatos que relatei hipoteticamente no início deste Parecer. Isso quer dizer um fato que implique a abertura legítima de uma vaga de acesso aberta na Série A2. Ademais, essa ocorrência precisa ser comunicada à Federação Paulista de Futebol previamente à reunião do Conselho Técnico. É o que resta inexorável a partir do § 2º do mesmo art. 9º do Regulamento da Série A2, in verbis:
“§ 2º - Este acesso somente será concedido quando a não participação do Clube classificado para o Campeonato Paulista de Futebol Profissional - Primeira Divisão - Série A1 de 2020 for oficializada antes da realização do respectivo Conselho Técnico.”
Assim, esse parágrafo é esclarecedor em relação à cabeça e ao primeiro parágrafo, como não poderia deixar de ser, perfazendo-se, no conjunto dessas normas, um encadeamento lógico e semântico inquebrantável. “Este acesso” remete ao §1º, e também ao caput do art. 9º. Deixa-se certo que todas normas se referem a um acesso que surge apenas e somente se ocorrer alguma eventualidade com os classificados primeiros colocados da Série A2, e desde que atendida a condicionante temporal transcrita acima.
O conjunto normativo assim explicitado deixar certo que na Série A2 apenas duas agremiações terão direito de acesso. Podemos cogitar de situações hipotéticas nas quais juntamente com o primeiro colocado acabe ascendendo o terceiro colocado, ou este com o segundo colocado, mas não três classificados. Se há apenas duas vagas de acesso, só podemos elucubrar sobre uma variação de nomes de dois clubes, não um acréscimo de terceiro, juntamente com os dois primeiros. O conjunto regulamentar veda essa pretensão, tratando-a como anticompetitiva e atécnica, nos termos que apresento neste estudo.
É inescapável a conclusão, pois, de que o parágrafo primeiro acima mencionado responde exatamente à seguinte pergunta, e exclusivamente a ela: o que acontece se se souber que algum (dois) clubes classificados para o Campeonato da Série A1, e, portanto, ainda não integrante dela, perder a condição de poder participar da Série A1 para a qual se classificou no curso da Série A2?
Essa é a típica questão que há de ser resolvida no âmbito do Regulamento da Série A2 e em nenhum outro. O critério para indicação do novo classificado é matéria atinente exclusivamente a esse Regulamento. Essa a justa expectativa de todos, devidamente atendida pelo art. 9º referido por último.
Seria proposta inusitada, para dizer apenas o mínimo, querer que o Regulamento da Série A2 resolvesse o problema da exclusão de um integrante classificado em outra Série (A1). Mais ainda. Teríamos um total descalabro se o Regulamento tratasse dessa questão de outro campeonato e silenciasse sobre a mesma questão para o seu Campeonato.
De qualquer forma, não foi isso o que ocorreu no Regulamento da Série A2. O § 1º nos fornece regras sobre o Campeonato A2, sobre o que ocorre se um dos dois primeiros classificados deixar de poder participar da Série A1, quer dizer, se deixarem de exercer o seu direito de acesso, o que pode ocorrer por diversos motivos, como o próprio desaparecimento do clube.
Como demonstrei ao longo do presente Parecer, não se deve utilizar qualquer outro Regulamento para sanar dúvidas de outra competição, sob pena de introduzir regras novas e arbitrárias, surpreendendo a todos participantes que se esforçaram e competiram com a certeza das regras que guiariam os resultados finais. O Regulamento da Série A2 do Campeonato paulista da Primeira Divisão atende a pressupostos e objetivos próprios, tem por objeto apenas a respectiva competição e clubes ali nominados e envolvidos (art. 3o). De seu conselho Técnico próprio resultou a forma final dessa competição (arts. 4o a 14), diversa, como se sabe, daquela forma adotada na Série A1. Trata-se, como disse antes, de retomar, aqui, observações muito basilares, mas que se tornaram essenciais para evitar um equívoco de imputação normativa.
Imaginar que parte essencial das regras da Série A1 esteve longe do alcance dos clubes da Série A1, escondida no Regulamento da Série A2, é tão equivocado quanto pretender aplicar leis, nacionais, estaduais ou municipais, que tratem de campeonato, competição ou concorrência públicas, simplesmente por conterem regra que, aos olhos de alguns, seria a melhor solução para um suposto problema surgido no campeonato paulista de Futebol na Série A1 da Primeira Divisão.
Nada há que sustente minimamente serem as regras da Série A2 as mais propícias e adequadas para eventualmente complementarem a Série A1, caso esse procedimento de recorrer a normas heterônomas fosse aceitável aqui. Pois tudo estaria ao alcance dos pseudo-legisladores de plantão: normas estrangeiras, de outros campeonatos em curso, de campeonatos anteriores, etc.. Seria necessário avançar para muito além daquele martírio competitivo, de que falava Nelson Rodrigues em uma de suas recorrentes crônicas de futebol , que comumente aceitamos como um mero “charme desesperador”. Seria, neste caso, apenas desesperador, para todos envolvidos, frustrarem-se as regras da competição.
Por fim, reitero que o Regulamento da Série A1 não se reporta ao Regulamento da Série A2 para solução de seus problemas interpretativos ou de omissão. E este é mais um ponto chave.
Porém, é possível que, conscientes dessas limitações, pretendesse alguém utilizar, ainda assim, uma regra da Série A2, mas invocando a falta de solução do Regulamento da Série A1 para um caso similar tratado naquela outra competição. Nesse caso, em realidade, estar-se-ia invocando a chamada analogia.
A analogia é operação mental que parte do pressuposto consciente de que a regra não foi desenhada para o caso ao qual se quer aplicá-la, mas entende que mesmo assim deve-se usar essa regra, por falta (omissão) de uma regra própria. Esse tipo de operação, porém, é absolutamente excepcional e só pode ocorrer legitimamente em determinadas condições. Vejamos quais são e se teria cabimento uma analogia no caso da Série A1 do Campeonato paulista de futebol.
IV.1. A APLICAÇÃO DE NORMAS JURÍDICAS NÃO-APLICÁVEIS
O problema de aplicação das normas heterônomas (ou extra-sistêmicas) se define como a tentativa de invocar ou utilizar uma norma exterior ao contexto ou aos sujeitos interessados, quer dizer, usar uma norma que, a princípio, é estranha às normas e razões que regem o sujeito ou a situação da vida. Essa operação é extremamente perigosa e delicada.
Assim, a título ilustrativo, podemos constatar esse tipo de ocorrência espúria quando se pretende aplicar aos vereadores as regras de impedimentos que são próprias e específicas de juízes (sujeitos diversos), ou pretender aplicar como indexador do pagamento de precatórios o indexador dos juros bancários (situações diversas regidas por normas diversas). É o que ocorreria se tentássemos aplicar, sem mais, regras da Série A2 para solucionar dúvidas ou casos excepcionais ocorridos na Série A1, sem a autorização prévia, para tanto, no próprio Regulamento da Série A1.
Em todos esses exemplos há uma pretensão de ampliar indevidamente o campo de incidência de uma norma, para alcançar pessoas ou situações não previstas inicialmente pelas normas em uso, sem que isso signifique que a norma deixará de ser aplicada às pessoas ou situações corretas.
Essa operação geralmente ocorre por simples erro de avaliação do aplicador da norma, de maneira involuntária (como achar que o Regulamento da Série A2 serve também para a Série A1). Mas também pode ocorrer por uma pretensão consciente de usar a norma de outro sistema de maneira analógica, para um sistema não abrangido por ela, considerando que no sistema para o qual se transporta a regra não há solução específica para o caso a ser solucionado.
No presente estudo parece haver, da parte de determinadas pessoas, um possível erro de avaliação sobre quais regras regem o caso, com leituras apressadas e desatentas. Mas também não descarto a tentativa, mais complexa, por parte de alguns - e que agora passo a analisar de maneira mais detida -, em invocar a analogia.
Aqui, abordo o tema “analogia” de maneira sintética, com o intuito específico de realçar seus contornos conceituais para, logo a seguir, aplicar essas premissas ao caso concreto. Vejamos.
O caso do uso de analogia não é, rigorosamente falando, uma interpretação equivocada, mas sim de aplicação inovadora das normas. Dito de outra forma, trata-se de aplicação de normas que, a princípio, sabe-se que não são aplicáveis ao caso concreto, como anunciei acima. Força-se uma solução normativa externa ao caso concreto, pela falta de normas para este e pela existência de normas para casos afins. Explico melhor essas situações.
A analogia ocorre onde uma interpretação mais lata ou extensiva, como se costuma falar, só por si, é insuficiente para alcançar o resultado pretendido, por mais que se possa considerar a interpretação como um processo aberto. No caso presente, porém, já pudemos definir, acima, a solução a partir da interpretação dos Regulamentos próprios (REC da Série A1 e RGC). Logo, só por isso é descabida a pretensão de realizar a operação analógica. Mas prossigo, aqui, no tema analogia, para também identificar outros impedimentos, desta sorte conceituais, que vedam seu uso no caso concreto deste Parecer.
O pensamento analógico é inovador por essência, ao passo que o pensamento interpretativo se circunscreve ao espaço de liberdade conteudística contido em cada norma. A analogia extrapola a normativa do caso concreto para usar outras normas, a princípio não aplicáveis ao caso concreto. A interpretação fixa-se exclusivamente nas normas aplicáveis ao caso concreto.
Exatamente por ser criativo, o pensamento analógico enfrenta restrições e condicionantes severas, sob pena de estabelecer-se a insegurança e imprevisibilidades sobre quais são as normas de conduta a serem seguidas, tornando insuportável a vida em sociedade e, no caso das competições, desacreditando a objetividade técnica do sistema. Já advertida Carlos Maximiliano que esse processo analógico “não é simples, destituído de perigos; facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador descuidado”.
É sabido que o uso arbitrário e subjetivo da analogia, especialmente contra legem, como no caso presente, permite alcançar qualquer resultado, já que basta ao operador das normas encontrar outras normas afinadas aos interesses concretos e objetivos que almeja, por mais distantes que possam estar em relação ao tema que se pretende resolver. Nesses casos de desvio no uso da analogia invocam-se falsos argumentos de uma pretensa proximidade de tema e de razões entre os casos (o caso supostamente não regulado por sua normativa própria e o caso afim, regulado por norma que se quer transplantar).
A decisão do STF no julgamento dos Mandados de Injunção n. 670, n. 708 e n. 712 é bastante emblemática e ilustrativa. Determinou-se a aplicação analógica da Lei de greve do setor privado para os servidores do setor público, no que couber. Trata-se de analogia autorizada pelo STF, para um caso extremo de omissão do legislador, do qual resultava prejuízo ao exercício de direitos constitucionais. Certamente esse contexto específico não ocorre no caso presente.
Por isso aproveito para insistir que quanto maior o distanciamento temático da lei a ser usada como parâmetro de decisão (analogicamente), mais próximos estaremos de certa arbitrariedade no uso da analogia. Os elementos de conexão entre o caso concreto e as razões e objeto da Lei a ser implementada analogicamente - como ocorreu na decisão do STF sobre greve de servidores públicos - são elos essenciais como medida de legitimidade. Mas não apenas isso. Pressupor, no caso concreto deste Parecer, que o Regulamento da Série A2 de 2019 é o conjunto de normas mais próximas da Série A1 demanda certo esforço argumentativo, já que as competições atendem, como visto, a objetivos e a modelos totalmente distintos. Não se trata de pressuposto simples ou automático. Poder-se-ia facilmente, nessa linha de liberdade, invocar também outros Regulamentos da Série de elite de outros campeonatos.
Por isso é preciso que o sistema próprio autorize o uso da analogia. Isso que ocorre no nosso sistema jurídico geral a partir da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, mas seu alcance são apenas as normas jurídicas produzidas pelo Estado.
No caso do Regulamento da Série A1 não há possibilidade de uso da analogia como solução regulamentar para os casos supostamente omissos. Há outras regras específicas dirigidas para os casos omissos, já analisadas, como o art. 50.
Por fim, relembro que a analogia é peremptoriamente vedada, no melhor entendimento doutrinário, quando seu uso pretende restringir direitos. No caso presente, nada mais restritivo do que cassar o direito de participar da Série superior do Campeonato paulista de futebol, expulsando um clube com base em regra não pensada e criada apenas para outra Série.
Em conclusão, teríamos que ignorar a diretriz específica do Regulamento próprio para fazer uso livre (arbitrário) de analogia, por supostamente oferecer uma solução considerada boa.
V. DAS CONCLUSÕES
As Federações atuam dentro de sua autonomia constitucional quando elaboram e impõem um conjunto de regras denominado Regulamento, a fim de reger as competições esportivas, especificando as regras de cada uma das séries em corpus jurídico próprio.
A não-aplicação do respectivo Regulamento é ato que retira da competição o seu caráter esportivo, de qualificação dos clubes e seus atletas pelos seus méritos, como se requer em uma competição esportiva. Ignorar o Regulamento próprio e seus integrantes já qualificados significa transformar uma competição esportiva em um espaço para decisões imperiais, ressuscitando práticas que ficaram nos escombros da História, como o uso de convites para fins classificatórios.
Analisados, de maneira sintética, os pontos centrais deste Parecer, passo a responder os quesitos formulados, de maneira mais direta, a partir e nos termos de tudo o quando restou exposto neste Parecer:
1. Sim. O Regulamento paulista da Série A1 de Futebol profissional, de 2019, indica como deve ocorrer o Campeonato de 2020, em virtude da desistência de um dos clubes classificados para a Série A1 (e dela integrante em 2019), pelo recurso às regras gerais do RGC, especialmente o elemento técnico, nos termos que foi apresentado neste parecer. Não há espaço para criacionismo jurídico fora dos regulamentos que regem o caso concreto excepcional que venha a ocorrer.
2. Soluções para a Série A1 que venham a ser cogitadas a partir de regras próprias e específicas do Regulamento da Série A2, são espúrias ao nosso modelo em vigor e, por isso, constituem práticas vedadas.
3. Há responsabilidade da FPF em não se desviar de suas regras, nem permitir esse desvio. Embora não esteja obrigada a seguir normas competitivas de cunho estatal na elaboração de seus regulamentos, tendo ampla autonomia normativa, fica absolutamente vinculada àquelas que houver livremente estabelecido, nos termos aqui expostos.
É a minha convicção.
São Paulo, 2 de Setembro de 2019.
André Ramos Tavares
O.A.B./S.P. 132.765
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