Caso Celso Daniel

Sérgio Gomes morreu com
a verdade para salvar o PT

DANIEL LIMA - 28/10/2019

Sérgio Gomes da Silva morreu há três anos. Uma doença devastadora o levou embora com um segredo que vou revelar agora. Revelar segredo é um ato que tanto pode ser constrangedor como libertador.  Demorei para chegar à conclusão de que o sigilo da fonte, inegociável no jornalismo, pode ter um ramal de exceção. Acima de regras convencionais que traduzem usos e costumes a serem preservados a todo custo existe humanitarismo. É disso que se trata.

Sérgio Gomes morreu com um segredo público que salvou o PT devastado mais tarde pela Operação Lava Jato, depois de abalado pelo Mensalão. Sérgio Gomes foi tão importante ao PT quanto se tornou proibitivo ao PT, sempre do ponto de vista de imagem pública.

Da mesma forma que segurou as pontas da campanha de Lula da Silva rumo à primeira vitória eleitoral em 2002 para a presidência da República, segurou o repuxo ante as tentativas do Ministério Público Estadual de que revelasse as entranhas de financiamento eleitoral.

Evitando uma Lava Jato

Sérgio Gomes jamais foi abandonado pelo PT. Distante disso. Intramuros era respeitado. Foi um soldado obediente. Foi a nocaute muito antes de baixar à sepultura. Mas jamais entregou o partido. Como queriam os tucanos e o MP.

Sérgio Gomes foi assassinado em vida como mandante do sequestro seguido de morte do amigo que seria um dos ministros estelares de Lula da Silva em janeiro do ano seguinte. Sérgio Gomes morreu abandonado por quase todos. Definhou num quarto de hospital. A Operação Lava Jato causava estragos que seriam antecipados no tempo se Sérgio Gomes da Silva fraquejasse como petista e amigo do prefeito de Santo André.   Foi esse peso que fez de Sérgio Gomes refém permanente da versão falaciosa do Ministério Público Estadual em Santo André.

Para não deixar os leitores em agonia sobre o grande segredo de Sérgio Gomes, vou antecipar o que poderia estender ao longo deste texto: o PT naquele começo de 2002 de disputa presidencial temia que se revelassem detalhes da operação de arrecadação do grande caixa dois que abastecia a campanha do presidente Lula da Silva em Santo André. Dinheiro sobretudo das empresas de transporte coletivo, freguesas de cadernetas de grande parcela dos administradores públicos brasileiros.

Sérgio Gomes era o homem de confiança de Celso Daniel nas tratativas impostas pelo partido para chegar à presidência da República. Há duas décadas o transporte coletivo era uma fonte inesgotável de dinheiro e poder. O baronato das concessionárias sempre nadou de braçadas nos paços municipais. Como ainda nadam nestes tempos.  

Quem ousar dizer que transporte público dependente de licença municipal (principalmente municipal, mas não só municipal) é uma atividade que deveria concorrer a qualquer premiação que consagre transparência e pureza de relações entre os agentes envolvidos deveria ser encaminhado a alguma casa de transtornos mentais.

Irregularidades clássicas

Por isso, não acreditem além da conta do ceticismo em quem quer que seja que defenda lisura nos negócios de transporte público. Era assim muito antes de o PT dominar as prefeituras do Grande ABC, a partir da metade dos anos 1990. Não seria o PT, ávido pela presidência da República, diferente.

Sérgio Gomes da Silva merece que o traia. É uma traição justa, paradoxalmente justa. É uma traição que o reabilita nestes tempos de carnificina dos extremos ideológicos, enquanto o centro amorfo apenas degusta desgraças da vizinhança política de um lado e de outro que controla a audiência corrosiva nacional.

A reportagem de capa da revista Veja desta semana é um desses casos escabrosos de direcionamento fermentado pela imprecisão combinada com o malabarismo semântico associado ao oportunismo.

A Veja deu ouvidos a ilações de um delator em desespero. A legitimidade de Marcos Valério, operador de propinas multipartidárias, não está preliminarmente jogada às baratas por conta da ficha corrida. Um marginal da política tem todo o direito de ser ouvido. Mais que isso: deve ser ouvido. Só não pode ser incontestável.

Jornalismo em xeque

A revista Veja se junta a tantas outras publicações e blogs que, à falta de reflexão e de ir a campo, de pesquisar, de confrontar informações, de tudo que se recomenda à prática de jornalismo isento, preferem a especulação direcionada. A cegueira prevaleceu mais uma vez porque o alvo é o ex-presidente Lula da Silva.

Imputam ao ex-presidente o mando do crime. Marcos Valério transfere uma informação em forma de fofoca e essa fofoca vira capa da maior revista brasileira. Fake news da pior qualidade. Para a alegria dos oportunistas de sempre. Daquela gente que raciocina com fígado partidário. Que detesta o contraditório esclarecedor. Gente que não se reconhece no ridículo de formular teorias conspiratórias. Descrevem-nas com a sapiência dos insensatos e imprecisos, quando não fantasiosos. São marias-vão-com-as-outras.

As redes sociais estão coalhadas de gente assim. No Grande ABC, então, é uma farra.  Não bastassem os derivativos de interpretação do caso Celso Daniel em si, tem-se também o componente político-eleitoral presente. Mais que presente: antecipadamente presente em relação ao calendário do ano que vem.

O peso do contexto

Para que o entendimento da verdade dos fatos que envolveu Sérgio Gomes da Silva não seja jogado na vala comum dos detratores de sempre, é preciso entender o contexto do assassinato de Celso Daniel.

Não pretendo esmiuçar mais uma vez os inúmeros pontos desvendados por três investigações da Polícia Civil de São Paulo (sob a gestão tucana) e uma da Policia Federal (sob o governo Fernando Henrique Cardoso) que me levaram a contestar ao longo dos anos a versão orquestrada pela força-tarefa do Ministério Público Estadual de Santo André. Tudo isso já está mais que consolidado.

Revelo o que ouvi de Sérgio Gomes da Silva nas inúmeras vezes em que o encontrei em sua residência, em Santo André, e em alguns encontros em restaurantes. Sérgio Gomes não constava de minha lista de interlocução mesmo que eventual antes daquele 18 de janeiro de 2002, quando Celso Daniel foi sequestrado nos Três Tombos, em São Paulo, após o jantar fatídico num restaurante fino da Capital.

Ou seja: não usufruí da companhia de Sérgio Gomes da Silva durante os anos dourados em que ele pertencia ao grupo de elite da Administração de Celso Daniel. Sei que os céticos vão contestar. Sérgio Gomes da Silva era um homem de partido, inteligente, contestador, desbravador de novas searas administrativas. Não era por acaso de confiança total de Celso Daniel. Ou alguém que não mantivesse estreita relação com o prefeito então indicado para coordenar a campanha presidencial de Lula da Silva jantaria com Celso Daniel naquela noite fatídica de 18 de janeiro de 2002?

Convivência importante

Passei a conviver com Sérgio Gomes depois de ele ser solto.

Foram oito meses de prisão. Tornamo-nos amigos. Ele me reconheceu como profissional comprometido com a verdade dos fatos durante todo o período de investigações. Escrevia tanto para a então newsletter Capital Social Online como para a revista LivreMercado. A quase totalidade da mídia fez de Sérgio Gomes um facínora. Eram tempos ainda primários no uso da Internet.

Não consigo imaginar o que seria do caso Celso Daniel se a Internet e as mídias sociais fossem em 2002 o que são hoje. Provavelmente o Ministério Público Estadual instalado em forma de três promotores criminais de um grupo específico de atuação não teria sustentado o silêncio do outro lado durante quase cinco anos. Explico: os policiais que cristalizaram o assassinato como consequência de crime comum foram proibidos de dar declarações à imprensa. Praticou-se durante todo esse tempo um jogo em que somente as forças interessadas em criminalizar Sérgio Gomes e o PT podiam se manifestar.

Fanfarra do MP

Jamais integrei a fanfarra barulhenta do Ministério Público Estadual que fez do caso Celso Daniel campo de batalha contra o Partido dos Trabalhadores. O mesmo Partido dos Trabalhadores que, no dia seguinte ao sequestro do prefeito, partiu açodadamente para responsabilizar o governador Geraldo Alckmin pelo sucateamento de políticas de Segurança Pública no Estado.

A Grande São Paulo era um enxame de sequestradores. O terror estava em cada bairro, em casa esquina. De classe média, de classe rica, dos pobres. A metrópole sob a proteção da política de Direitos Humanos do governador Mário Covas, que morrera pouco antes, era um paraíso da bandidagem.

Por isso, e por nenhum outro motivo, tudo o que se passou pós-morte de Celso Daniel encaminhou compulsoriamente as investigações para o campo criminal no âmbito das policias destacadas. Jamais houve qualquer ramal que remete a questões administrativas. As linhas jamais se cruzaram. Foram forças-tarefas de vários departamentos. Os policiais atuaram em sincronia. Já os promotores criminais (e isso se constatou mais tarde) recebiam informações do delegado Romeu Tuminha, inimigo dos petistas.

A fonte de informações dos promotores criminais dependia das trapalhadas de Romeu Tuminha. Foi Tuminha quem criou invencionices que constam de um livro em que mergulha em vários casos criminais. Do caso Celso Daniel ele não entende absolutamente nada. É um desinformado a serviço de uma versão fraudulenta.  

Ordem do Bandeirantes

A ordem política aos representantes do Ministério Público em forma de acusação a Sérgio Gomes da Silva emergiu no Palácio dos Bandeirantes e centrou fogo na tentativa de caracterizar o ocorrido como desdobramento do então suposto esquema de corrupção na Prefeitura de Santo André.

O MP dos primeiros dias (leiam os jornais, leiam os jornais) declarou que Celso Daniel fora vítima fatal porque rebelara-se contra o caixa-dois partidários. Nada é mais hilário. Então Celso Daniel, escolhido um dos homens de ouro da campanha do presidenciável Lula da Silva, opunha-se à arrecadação paralela?

Mais tarde, à falta de sustentação da tese inicial, o MP divulgou que Celso Daniel tolerava o esquema, mas se revoltou por causa de desvios a bolsos individuais. Em seguida, de novo o MP caiu em contradição: encontraram sacos de dinheiro no apartamento do prefeito de Santo André. Não foi preciso esperar o estouro do Mensalão e, principalmente, da Lava Jato, para aquelas avaliações virarem pó. O futuro só confirmou o absurdo do passado.

Bunker contra governador

Não esqueçam que o ano era 2002. Haveria eleições presidenciais e ao governo do Estado nove meses depois. No sábado de manhã, 19 de janeiro, com Celso Daniel sequestrado e desaparecido, a cúpula nacional do PT fez do Paço Municipal de Santo André um bunker de esperança por notícias, mas, sobretudo, artilharia pesada contra o governador Geraldo Alckmin, candidato à reeleição.

A pauta jornalística mudou na medida em que mais se consolidava o resultado óbvio de que Celso Daniel fora vítima de um crime de ocasião – como as investigações fartamente documentaram.

Os jornais trocaram os editorais críticos à fragilidade da atuação da Secretaria de Segurança Pública na medida em que vazamentos e declarações dos promotores criminais escalados pelo governo do Estado começaram a ganhar espaço. Os tucanos se mostraram mais competentes na arte da guerra de versões. Até porque, tinham mais peças a manejar.

Retirar o assassinato da esfera criminal, deslocando-o à associação pecaminosa de gestão pública e corrupção, foi o pulo do gato dos tucanos. Mas não foi essa a única manobra dissuasiva à ideia de crime ocasional. Calar declarações e esclarecimentos da Polícia Civil durante cinco anos, após o encerramento da primeira investigação, que constatou a ocasionalidade do crime, foi uma medida rigorosa.

A opinião pública passou a ser doutrinada pelo martelar único dos representantes do Ministério Público. Criou-se o ambiente que jamais se desfez: o crime foi preparado friamente por um petista que se revoltou com a ameaça de o prefeito assassinado botar a boca no trombone.

Uma barbaridade de bobagem. O prefeito que supostamente botaria a boca no trombone integrava o grupo estratégico regional e nacional de suporte de recursos financeiros para sustentar a campanha presidencial de Lula da Silva.

Quebrar a virgindade

O que os promotores criminais pretendiam mesmo de Sérgio Gomes da Silva para aliviar a barra nos tribunais, porque estavam certos de que o destino do primeiro-amigo de Celso Daniel seria a cadeia, se resumia à confissão tácita de que o PT até então praticamente virginal em ética e moralidade públicas, tornara Santo André centro arrecadador de dinheiro sujo para a campanha presidencial de Lula da Silva. Queriam transformar a Prefeitura de Santo André no Petrolão. E o conseguiriam se Sérgio Gomes da Silva contasse tudo o que sabia.

Sérgio Gomes da Silva, a quem o MP introduziu o estigmatizador “Sombra” como identidade marginal adotada pela mídia, resistiu durante todo o tempo. A pressão aumentava a cada dia. O Mensalão petista, que veio em 2005, e a Operação Lava Jato, em 2014, seriam antecipados. Os estragos políticos e eleitorais seriam dantescos. O PT seria exposto por Sérgio Gomes da Silva como mundana travestida de dama.  

O PT arrecadava fundos financeiros não só em Santo André, mas principalmente em Santo André, contando com o grupo denunciado mais tarde ao Judiciário local pelo Ministério Público. O PT reproduzia uma prática comum em Santo André e nos demais municípios locais e brasileiros.

A diferença é que não era uma associação grupal de individualidades decididas a fazer qualquer negócio, estivesse quem estivesse na chefia de governo municipal. Era uma organização político-partidária com fundamentos doutrinários voltados a uma revolução no País.

Resistência à delação

Não é preciso esticar a corda de explicações para distinguir o PT dos demais partidos. O laboratório de Santo André demarcaria o terreno petista no País. Sérgio Gomes da Silva não se dispôs a dar as informações que o MP pretendia. Preferiu a odisseia causada por uma mentira investigativa aos desdobramentos de uma delação.

Dessa forma, revelar o esquema que lastreava os recursos financeiros ao PT seria um grande golpe que o Ministério Público Estadual aplicaria naquela temporada de eleições. Praticamente eliminaria as possibilidades de Lula da Silva virar presidente. Sobretudo porque o estrondo envolveria o entorno e principalmente o que seria rotulado pela mídia como o chefe da organização criminosa local, o prefeito Celso Daniel, preposto de Lula da Silva e de José Dirceu.

Foi por conta da promessa inicial de que a atuação de Celso Daniel seria preservada no escândalo que os familiares do prefeito assassinado abasteceram o Ministério Público Estadual com informações dos bastidores que movimentavam a roda de dinheiro. O foco era o setor de transporte municipal. Ali estava o centro dos ataques. O PT mexera num vespeiro conservador. Algumas famílias tradicionais comandavam o transporte local. A chegada de Ronan Maria Pinto, empresário sem partido, mudou tudo. Passou-se a dividir o bolo.  Não necessariamente em partes iguais. O estresse foi inevitável.

Recusa prevalece

Bastava Sérgio Gomes da Silva contar tudo o que sabia (e de que participava) sobre o esquema de propinas em Santo André e nas demais prefeituras locais dirigidas pelo PT que o caso criminal que o constrangia seria posto de lado. Ele ganharia um fôlego especial para enfrentar denúncias por crimes na esfera administrativa.  

A versão de crime de mando político manipulado pela força-tarefa do Ministério Público Estadual não se sustentava diante das investigações policiais. Mas um testemunho de Sérgio Gomes da Silva que entregasse de bandeja o PT à sanha investigatória do MP, tendo com prêmio a retirada da cena do crime, seria fatal à candidatura de Lula da Silva e ao futuro petista.

Sérgio Gomes deixaria de ser o mandante do assassinato, na versão do MP, e passaria a ser uma testemunha especialíssima do modus-operandi de o Partido dos Trabalhadores funcionar.

Como aproveitar a Veja

A reportagem da revista Veja pode ser entendida em parte e ganhar algum grau de credibilidade se os leitores fizerem a seguinte interpretação: nos pontos em que se atribui o crime à queima de arquivo porque supostamente o prefeito Celso Daniel ameaçava contar tudo sobre o esquema de propina, experimente colocar o temor petista de que, mesmo diante de todos os cuidados, se descobrisse o esquema de caixa-dois que tanto aterrorizava a campanha já deflagrada de Lula da Silva rumo ao Palácio do Planalto. Sérgio Gomes da Silva tinha a chave do cofre do tesouro que os tucanos fizeram de tudo, com o MP, para desvendar. Sérgio Gomes da Silva resistiu sempre.

Quebro o sigilo da fonte porque já estava na hora de revelar o óbvio que àquela altura do campeonato seria fatal. Sérgio Gomes da Silva jamais mataria o primeiro-amigo e jamais trairia o PT. Não tinha vocação de antecipar-se ao ex-ministro Antônio Palocci, então prefeito de Ribeirão Preto que assumiu o lugar de Celso Daniel. 



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