Política

Doria salva a pele de prefeitos
com ação gataborralheiresca

DANIEL LIMA - 28/05/2020

O governador João Doria e sua equipe de trapalhões no combate ao Coronavírus salvaram a pele dos prefeitos do Grande ABC: ao discriminar a região, numa ação típica de quem trata gataborralheirescamente os sete municípios, Joao Doria deu um tiro no tímpano da sensatez ao mesmo tempo em que praticamente ressuscitou o Clube dos Prefeitos, além de dar impulso e tanto aos comandantes dos paços municipais rumo à reeleição em dezembro. Ou seja: Doria é capaz de milagres, mesmo que a custa do próprio prestígio em franca deterioração.

Portanto, quem observa a cena política da região e fincou pé na descrença de reação institucional dos prefeitos locais é obrigado a analisar a situação provocada por João Doria como algo a se comemorar. Também, não é para menos.

Afinal, Doria dispensou tratamento preferencial de relaxamento discreto de atividades econômicas à Capital. O restante da Região Metropolitana, ou seja, os 38 municípios, foi mantido no bico do corvo de restrições econômicas mais agudas.

Acúmulo de erros

Os alquimistas estratégicos do governador do Estado merecem o prêmio de burrice da temporada. Além da estultice que acertou a Região Metropolitana de São Paulo de 22 milhões de habitantes, demoraram um bocado para produzir a mais que óbvia discricionariedade territorial do Estado de São Paulo como um todo, tratando até então os 645 municípios com o mesmo formato de proibições.  Algo, por exemplo, que o Rio Grande do Sul do governador tucano descartou logo nos primeiros dias de combate ao vírus chinês.

A reação durante a reunião virtual do Clube dos Prefeitos ontem à tarde é redentora porque implicaria novo comportamento institucional: eles não ficariam mais na barra das calças de mandonismos do governador. Resta saber até quando a libertação será mantida ou mesmo se intensificará.

A relação de servilismo dos prefeitos da região ao governo do Estado é tão vergonhosa quanto improdutiva e histórica. Qualquer balanço razoavelmente sério e independente que correlacione impostos arrecadados pelo Estado na região e valores retornáveis fora do enquadramento constitucional escancarará procedimentos em desequilíbrio em detrimento de quase três milhões de habitantes. 

Inferioridade sociológica

Nesse ponto, ou seja, quando se cruzam dados financeiros, está mais que explicado por que o Grande ABC é visto externamente pelo Palácio dos Bandeirantes como Gata Borralheira. Não bastasse o sentimento interno de gataboralheirismo, que expliquei em livro lançado em 2002.

O escopo sociológico da relação interna entre os municípios e também com a vizinha pujante, Capital do Estado, é o resumo de uma ópera incontentável. Tomara que os prefeitos do Grande ABC agora em fim de primeiro mandato tenham coragem de estender a corda de reações além das incoerências do governador do Estado no tratamento ao Coronavírus.

Há semelhanças entre números básicos do placar de capacidade de combater o vírus chinês quando se colocam planilhas do Grande ABC como um todo e da cidade de São Paulo.

O prefeito Orlando Morando vai além. Numa live ontem à noite ele explicitou vantagens consolidadas de infraestrutura de saúde de São Bernardo frente a Capital. Em Santo André, o prefeito Paulinho Serra foi igualmente enfático. Quem o levar ao pé da letra diria que estaria rompendo relações com o Estado. Já José Auricchio, de São Caetano, embora contrariado, foi mais tolerante.

Por mais que se entenda que equalizar interesses entre saúde e economia é um desafio que não deve permitir simplificações, o fato é que o governador paulista pisou no tomate da incoerência ao privilegiar a cidade de São Paulo no jogo de cores do mapa do Estado.

O vermelho forte da metrópole (e também da Baixada Santista) contrasta com o laranja desbotado da Capital. A saída cientificamente mais lógica não estaria na uniformidade cromática tanto quanto não está na distinção favorável à cidade de São Paulo.

Conclusão: a Região Metropolitana de São Paulo é grandiosa demais para ser tratada de forma homogênea tanto quando é suficientemente extensa para ter apenas um ponto cromático de separação.

Diferenças metropolitanas

O modelo de regionalização do tratamento econômico à economia paulista, já retardatário, poderia ser aplicado com os protocolos indispensáveis também na Grande São Paulo. Há cidadezinhas interligadas ou distantes entre si que não frequentam o mesmo corte de integração econômica e de mobilidade urbana dos sete municípios do Grande ABC, a Capital, Barueri, Guarulhos, Osasco e outras localidades no entorno da Capital.

Mas esse aspecto é de menor importância quando se observa o todo da ação do governo do Estado. Separar o Grande ABC da Capital é absolutamente injustificável. A leve abertura a outras atividades econômicas deveria comportar a mesma cor da Capital.

O governo do Estado ignorou a ciência do dia a dia, que coloca 30% da População Economicamente Ativa do Grande ABC em deslocamentos rumo à Capital.

Sob qualquer ponto de vista independente, o governador João Doria cometeu sandice com efeitos institucionais e políticos. Além de dar vida ao Clube dos Prefeitos, algo impensável entre os mortais com a cabeça no lugar, João Doria fez o suficiente para os prefeitos soltarem um grito de liberdade eleitoral.

Excesso de peso

O peso negativo da imagem de João Doria como companheiro de jornada rumo à reeleição perdeu força após os pronunciamentos de ontem dos tucanos instalados nos paços municipais de Santo André, São Bernardo e São Caetano. Exorcizou-se um fantasma.

Resta saber se o distanciamento do governador será mantido nos próximos tempos. É possível que um pouco mais adiante o governador ceda à pressão e decida colocar a região e a Capital no mesmo patamar cromático e disciplinar no uso de atividades econômicas.

Não fosse o calendário eleitoral que deve ser praticado antes dos festejos de fim de ano, possivelmente as reações teriam decibéis a menos. Mas os prefeitos da região, notadamente das principais cidades, sabem que não podem tergiversar. Eles caminhavam celeremente para o rompimento de laços com o eleitorado mais afinado com preceitos que defendem.

A economia do Grande ABC vai viver tempos ainda mais dramáticos na medida em que o vírus for embora e a retomada das atividades não alcançar a tração esperada. Os efeitos colaterais dos danos epidêmicos vão se propagar ao longo de meses. 

Mortos dos outros

Quando dezembro chegar é possível que o ambiente regional seja convulsivo e, nesse ponto, os titulares dos paços municipais vão poder dimensionar com mais precisão o quanto foi relevante sair das amarras de um governador que, em posição antagônica a do governo federal, deu muito mais peso à saúde do que à economia.

João Doria esqueceu que os mortos das famílias e dos amigos dos outros não são mortos importantes para famílias que não sentiram e não sentirão a ausência de registro de mortos nas próprias famílias e amigos.

Essa reflexão politicamente incorreta é a expressão central do sentimento de solidariedade humana imediatista e de breve duração no caso especifico de quem não sente as dores entre os seus. Quando o estômago ronca de fome, os humanos são extremamente pragmáticos ao separarem perdas humanas de perdas econômicas. Cada uma das modalidades de infortúnio tem o momento apropriado de manifestação.  Só os mais próximos vão sentir a ausência da vovozinha de Paraisópolis que o vírus chinês levou. Tanto quanto os mais próximos do milionário do Morumbi.



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