Os donos da bola do Festival de Cinema de Paulínia jamais deixariam passar pelos sensores de responsabilidade social uma produção que explicitasse os desastres sociais decorrentes da distribuição de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) no Estado de São Paulo. A lógica é simples: graças às aberrações proporcionadas pela legislação, Paulínia deita e rola com a promoção de um festival cinematográfico tupiniquim que chega a embasbacar experientes críticos que se deslocaram àquela cidade da Grande Campinas no final de semana.
Paulínia já chamou a atenção do Ministério Público que não se conforma com suposto desvio de recursos do social para o artístico. O MP está enganado: Paulínia recebe tanto dinheiro de repasse do ICMS que pode se dar ao luxo de, mesmo torrando milhões, ainda lhe sobra muito para mitigar as desigualdades sociais locais para seus dirigentes políticos se perpetuarem na Administração Municipal. Paulínia é um principado paulista e brasileiro nutrido pelo parque petroquímico seletivamente arrecadador de impostos porque é altamente gerador de Valor Adicionado, base da redistribuição de recursos estaduais.
Para encurtar a história e chegar ao ponto nevrálgico, preste o leitor muita atenção para a seguinte comparação:
No ano passado, a Prefeitura de Diadema, Município do Grande ABC com 357 mil habitantes, recebeu de repasse de ICMS o total de R$ 177,8 milhões. No mesmo ano, a Prefeitura de Paulínia, com 51 mil habitantes, recebeu R$ 519,9 milhões. Não existe erro de digitação. São R$ 519,9 milhões mesmo, contra apenas R$ 177,8 milhões. A receita com ICMS de Diadema é praticamente três vezes menor que a de Paulínia.
Se os valores díspares já ferem a sensibilidade de quem não consegue se habituar às lambanças verde-amarelas, a conta fica ainda mais escandalosa quando traduzidas por habitante. Em Diadema, a Prefeitura dispôs no ano passado de recursos do ICMS equivalentes a R$ 498 por morador. Em Paulínia, foram R$ 10,176 mil per capita. Paulínia contou, portanto, com 20 vezes mais recursos monetários por habitante do que Diadema em forma de repasse de ICMS.
É claro que por essas e outras Diadema — apesar de todas as iniciativas públicas — continua a produzir pixotes, muitos pixotes. Também por isso, Diadema se classifica entre os principais fornecedores de insumos familiarmente desestruturados da Fundação Casa, como foi rebatizada a estigmatizada Febem. Com isso, Paulínia se dá ao deleite de reunir a nata da classe artística brasileira numa festa feita apenas para eles. Sim, apenas para eles porque, conforme registram os jornais, a população reconheceu-se fora daquele espetáculo de glamour. Pena que a opinião pública não se choque com tanto desperdício porque, diferentemente do castelo medieval do deputado mineiro, Paulínia é uma farra de entretenimento sustentada pela esquizofrenia tributária.
O contraste entre Paulínia e Diadema é proposital. Reflete a situação quase generalizada de confronto entre municípios de médio e grande porte e aquele centro de produção petroquímica altamente gerador de Valor Adicionado, medida padrão de repasse do ICMS. Explico: de cada R$ 100 resultantes do ICMS paulista, 25% são distribuídos aos municípios e R$ 75 vão para o tesouro estadual. Nessa contabilidade, o Valor Adicionado condiciona 76% do repasse relativo do ICMS a cada município.
Valor Adicionado é o valor das mercadorias saídas acrescido do valor das prestações dos serviços no território de cada Município, deduzido o valor das mercadorias entradas.
Na grade de repasse do ICMS aos municípios, além dos 76% prevalecentes do Valor Adicionado, são levados em conta outros vetores, como a carga de Receitas Próprias, População, Área Cultivada e Área Preservada.
Escrevi muito e muito sobre este assunto e faz muito tempo. Contestei sempre o descompasso métrico entre Valor Adicionado e População, principalmente. É desproporcional demais a distância entre esses dois quesitos. A População tem peso de apenas 13% na distribuição do ICMS. Municípios populosos que passaram por desindustrialização, como são os endereços do Grande ABC, entre outros, comem o pão que o diabo amassou com perda de recursos financeiros repassados e acúmulo de desventuras sociais. Por isso, as prefeituras mais que avançam em direção aos bolsos dos contribuintes com a recarga de impostos locais.
Mas o que se pode fazer quando cidadania é abstração e os legisladores estaduais que torram fortunas mensais para a manutenção de sinecuras na Assembléia Legislativa não querem nem saber de entrar em bola dividida? Quando um deputado teve a iniciativa de buscar especialistas em finanças públicas para elaborar projeto de lei que acabe de vez com essa geringonça de repasses distorcidos?
Outros municípios paulistas estão em situação semelhante à de Paulínia e de Diadema. Já propusemos mudanças para a constituição de espécie de Fundo Especial retirado dos excessos canalizados para determinados municípios. O dinheiro amenizaria a caótica situação social das regiões metropolitanas paulistas, casos da Grande São Paulo e da Grande Campinas, principalmente. Ninguém moveu uma palha porque há um intrincadíssimo jogo de interesses políticos e eleitorais que confunde as análises.
Teme-se, entre outros pontos, que ao elevar o peso do critério populacional na distribuição do ICMS, em detrimento do peso do Valor Adicionado, pequenos municípios venham a ser prejudicados. São desculpas esfarrapadas porque basta colocar numa mesa de debates especialistas em finanças públicas para reestruturar essa bagunça distributiva de forma gradual mas consistente, permitindo-se, portanto, que até a nababesca Paulínia se adaptasse aos novos tempos.
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15/10/2024 SÃO BERNARDO DÁ UMA SURRA EM SANTO ANDRÉ