A senadora tucana Mara Gabrilli é herdeira político-eleitoral do petista Celso Daniel. Uma herdeira às avessas, mas herdeira. Eleita em 2018, a filha de um dos barões do transporte coletivo do Grande ABC, Luiz Alberto Gabrilli, soube explorar a condição de vilania e de criminalidade imputadas ao PT em Santo André. Mara Gabrilli capitalizou prestígio e votos, primeiro como deputada federal eleita duas vezes, depois como senadora.
Mara Gabrilli é herdeira transversa de Celso Daniel porque rompeu em 2018 de forma barulhenta o acordão que vigorou entre petistas e tucanos tempos em seguida ao assassinato do prefeito, em janeiro de 2002.
A ordem da cúpula dos dois partidos, que tornou o assunto proscrito dos programas eleitorais de rádio e televisão nas competições posteriores ao crime, foi revogada 16 anos depois de forma contundente.
NOVO PSDB EXPLOSIVO
Uma tomada de decisão redentora à integrante de um dos clãs do transporte público do Grande ABC, moça de família rica, portanto, estudante nas melhores escolas privadas, como o Colégio Bandeirantes, na Capital.
Apoiada pelo governador João Doria, que explodiu a costura de conveniências estratégicas entre as duas agremiações aparentemente inconciliáveis, Mara Gabrilli fez do Caso Celso Daniel porta-estandarte da campanha rumo ao Senado Federal. A operação foi tanto um sucesso eleitoral quanto reveladora dos novos e dos velhos tempos entre petistas e tucanos. Grupos antagônicos de antigos tucanos e novos tucanos demarcaram novo período da agremiação.
Jamais até então, ou seja, até que João Doria tomasse conta da cúpula tucana e determinasse caminhos a seguir, o assassinato de Celso Daniel foi levado com insistência, ou mesmo discretamente, às campanhas eleitorais no rádio e na televisão reservadas aos partidos políticos. Com Mara Gabrilli foi um estrondo. O carro-chefe da reta final da campanha televisiva. Mais, inclusive, que a condição de deficiência física que a marcou após acidente automobilístico.
PALANQUES ELETRÔNICOS
Os palanques eletrônicos dominaram no passado a cena eleitoral. Alteravam os rumos dos acontecimentos. As redes sociais estavam longe de contar com a densidade de audiência. Aparecer principalmente na TV em horário nobre era objeto de negociações interpartidárias vultosas.
Coligações partidárias se davam fortemente vinculadas à exposição televisiva, entre outras variáveis. Horário eleitoral era moeda de troca valiosíssima na busca por vitória. Ainda o será nesta nova temporada de votos, claro, mas sem a mesma intensidade.
A mídia eletrônica segue importante, mas está longe de influenciar como antes. Ter mais tempo de TV e de rádio já não é um caminhão de votos. Ajuda, mas não decide isoladamente. Está aí Jair Bolsonaro para comprovar. Tanto quantos muitos deputados federais e estaduais que recorreram a aplicativos tecnológicos.
Em contraposição, o ex-governador Geraldo Alckmin apanhou miseravelmente na campanha presidencial de 2018. Obteve apenas 4% dos votos. Nada condizente com o extensivo uso do horário eleitoral no rádio e na televisão. Tempo de exposição sem narrativa conectada às intempéries e oportunidades vale cada vez menos.
GANHANDO A DISPUTA
Mara Gabrilli distanciou-se dos demais competidores na disputa por uma das duas vagas ao Senado na medida em que o Caso Celso Daniel foi martelado na programação televisiva de 2018. Mara Gabrilli utilizou de versão dominante no imaginário dos eleitores. Instalou o crime no compartimento político-administrativo. Como o PSDB pós-assassinato. O PT foi ao Tribunal Regional Eleitoral para obstar a propaganda de Mara Gabrilli. Perdeu para a liberdade de expressão.
Mara Gabrilli venceu a disputa após firmar uma evolução fantástica na reta de chegada, quando o eleitorado dá mais atenção aos votos proporcionais. Mara Gabrilli foi eleita com 18,63% dos votos válidos. Ficou atrás apenas do major Olímpio, que teve 25,79%. O então senador petista Eduardo Suplicy ficou em terceiro com 13,32%. Dez dias antes, Suplicy liderava enquanto Major Olímpio e Mara Gabrilli pareciam fadados a disputar a outra vaga.
Suplicy liderava até que Celso Daniel foi intensamente levado à tela por Mara Gabrilli como mártir de traidores do PT. Justamente o Caso Celso Daniel, no qual Suplicy foi tão contraditório, uma mistura de ambiguidade política e estrelismo individualista. Agiu o tempo todo à procura da mídia. Rompeu todos os cuidados com que o PT tratou da situação.
PATETICE SUPLICIANA
Suplicy chegou a ser patético no caso do testemunho de suposto pastor evangélico, que teria assistido a tudo no chamado Três Tombos, na Capital, local em que o veículo dirigido por Sergio Gomes da Silva foi metralhado e abalroado pelos sequestradores de Celso Daniel. Suplicy deu ouvidos a um farsante.
A gravação em vídeo do sequestro alardeada por Suplicy não passava de golpe. Não havia prova alguma. Mas Suplicy, ansioso por manchetes, não resistiu à armadilha do falso pastor, a quem chegou a pagar passagens para depor na chamada CPI do Fim do Mundo. Logo se descobriu a farsa. Mas o estrago se acentuava para o PT e principalmente ao alvo central das acusações, Sérgio Gomes da Silva.
A ofensiva contra o PT arquitetada pelos tucanos agora sob o controle de João Doria deu resultado. O antigo PSDB de Geraldo Alckmin, de José Serra e de outras cabeças premiadas, que articularam um modus operandi de convivência mutuamente satisfatória com o PT, estava nocauteado pelo pragmatismo do governador e seu entorno. Os tucanos mudaram de mãos diretivas em sintonia com o desgaste nacional do PT na esteira de escândalos e do impeachment de Dilma Rousseff.
OUTRA HISTÓRIA
Fosse outro o governador, principalmente Geraldo Alckmin, a história seria diferente nas eleições para o Senado em 2018. Mara Gabrilli provavelmente nem seria candidata. Afinal, o arranjo pós-Celso Daniel virou ponto de honra entre as duas agremiações.
Em julho de 2018 publiquei na CapitalSocial um contraponto à entrevista que Mara Gabrilli dera em maio ao blog do jornalista do Estadão, José Nêumanne. A data é denunciadora do espírito com que Mara Gabrilli se lançava à candidatura a uma das duas vagas ao Senado Federal. Ainda era pré-candidata.
As questões foram todas direcionadas ao Caso Celso Daniel com viés incriminatório ao PT. Estava ali mais que plantada operação de campanha eleitoral que se confirmaria na televisão e no rádio.
Para quem ainda resiste a acreditar que PT e PSDB convergiram a um demorado mas produtivo acerto diplomático após tumultuado relacionamento nos tempos imediatos ao assassinato de Celso Daniel, uma resposta de Mara Gabrilli naquela entrevista é simbólica da ruptura.
REVELAÇÃO DO ACORDÃO
Acompanhem a pergunta do jornalista do Estadão, que repasso integralmente, da mesma forma que a resposta de Mara Gabrilli:
Pergunta -- Por que, ao longo destes anos todos, em que a senhora, que chegou a ocupar um lugar na Mesa da Câmara dos Deputados, lutou para exigir satisfações a esse respeito, seu partido, o PSDB, nunca tomou uma atitude para exigir das autoridades estaduais, da polícia e da Justiça a solução definitiva do assassinato?
Resposta – Eu sempre procurei justiça pela população de Santo André e pela honra do meu pai, mas nunca quis partidarizar esse tema, tornar um PSDB x PT. Até porque, quando tudo aconteceu, eu ainda não era filiada a nenhum partido político e nem sonhava em entrar para a política. Na época, o PSDB incumbiu a Polícia Civil do Estado de São Paulo de investigar o caso e a resposta que deram foi se tratar de um crime simples, de latrocínio. Para mim, não foi o que aconteceu. Mas, para o partido, o assunto parece ter se encerrado ali. Eu segui minha luta, por conta própria. Minhas denúncias ao Ministério Público, meus questionamentos aos envolvidos, quando foram participar em comissões na Câmara dos Deputados, enfim, todo o meu esforço para tentar desvendar esse caso foi por conta própria, nunca em nome do partido – disse Mara Gabrilli.
Não parece haver nesga de dúvida sobre a lógica eleitoral do governador João Doria ao interromper o circuito histórico de contemporizações do PSDB. Os tucanos mais alinhados a João Doria fizeram o partido saltar do muro no Caso Celso Daniel.
VITÓRIA DUPLA
E Mara Gabrilli, filha de uma das supostas vítimas do PT em Santo André, não teria sido uma saída melhor. Tanto que a politização televisiva da morte do prefeito rendeu salto ao Senado. Uma vitória dupla, como se sabe. Mara Gabrilli se elegeu na vaga aberta por um petista.
Na entrevista ao blog do jornalista do Estadão, Mara Gabrilli fala de inexperiência política quando da morte de Celso Daniel. Entretanto, três anos depois, dentro do macroplano de arrefecimento da atribuição do crime à gravidade do quadro criminal na Região Metropolitana de São Paulo naquele início do século, a filha de Luiz Alberto Gabrilli virou a primeira titular da Secretaria Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (SEPED) em São Paulo, numa determinação do prefeito tucano José Serra.
Dois anos depois a secretaria deixou de ser especial e passou a integral o rol das secretarias efetivas da Prefeitura. O exemplo paulistano proliferou Brasil afora. Mara Gabrilli iniciava uma carreira política que culminou na eleição para vereadora e em seguida a deputada federal.
CARREIRA METEÓRICA
Filiada ao PSDB desde 2004, Mara Gabrilli praticamente não participou do Caso Celso Daniel nos primeiros anos após o assassinato. Quem esteve na linha de frente foi a irmã mais velha, Rosângela Gabrilli. A representante de uma das oligarquias do transporte público no Grande ABC se juntou aos irmãos do prefeito assassinado -- João Francisco e Bruno Daniel -- e engrossou o coro de crime de encomenda preparado pela força-tarefa do Ministério Público Estadual incrustrado em Santo André a mando do gabinete estratégico do governo do Estado. Tudo muito bem-organizado sob o ponto de vista de combate ao adversário.
Em São Paulo, desbravando uma secretaria de alta visibilidade e popularidade, Mara Gabrilli recolocou como prioridade o processo de responsabilização do PT pela corrupção no setor de transportes de Santo André. Colocou o pai Luiz Alberto no rol de vítimas, embora a historiografia do setor recomende muita cautela na definição de heróis e vilões.
Foram muitas as vezes em que Mara Gabrilli debitou as complicações de saúde do empresário a suposta coação que teria sofrido dos integrantes do denunciado esquema de corrupção no setor.
Mara Gabrilli tem um calendário de fatos e versões próprio: para a filha do magnata Gabrilli, o esquema de financiamento eleitoral em Santo André durante o período do governo de Celso Daniel era uma inovação nas relações entre o Poder Público e a iniciativa privada.
PREFEITOS-SANTOS
Ou seja: os prefeitos antecedentes em Santo André não teriam jamais cedido à tentação do setor de transporte coletivo. Eram beneméritos numa atividade de compulsória aderência entre as partes, pública e privada.
Os Gabrilli e assemelhados, que durante muitos anos monopolizaram o transporte público em Santo André, seguiriam uma cartilha de cidadania invejável, segundo a ótica de Mara Gabrilli. Não faltaria muito à santificação. Talvez até fossem recebidos pelo Papa.
Os invasores no transporte coletivo em Santo André durante a gestão de Celso Daniel e denunciados ao Ministério Público seriam uma exceção à regra geral. Entretanto, a versão demonizadora de Mara Gabrilli não resiste à realidade histórica do setor de transporte.
SAÚDE CONTRADITÓRIA
Não bastasse tudo isso, a atribuição de efeitos de estresse à morte do pai deveria ser avaliada com ressalvas. Em nenhum momento nos 20 anos de assassinato de Celso Daniel a família Gabrilli teve a ideia, ou pelo menos levou a sério eventual ideia, de dar transparência ao prontuário médico do patriarca.
Como o Caso Celso Daniel aportou durante todo o tempo uma tempestade de informações contraditórias, a dúvida que persiste sobre o quadro de saúde de Luiz Alberto Gabrilli tem consistência para quem lida com fatos e provas.
As deficiências renais de Luiz Alberto Gabrilli não contemplariam correlação com os dissabores de ter que dividir o filão do transporte público com agentes de confiança da gestão de Celso Daniel, no caso Sérgio Gomes da Silva, Ronan Maria Pinto e Klinger de Souza Oliveira.
OLIGOPÓLIO ROMPIDO
O oligopólio da ala dos conservadores de postos do transporte público foi rompido a contragosto dos mandachuvas de então. A criminalização dos novos atores, inclusive pelo Judiciário, indica que o modus operandi tradicional sofreria sentenças semelhantes em caso de devassa. A politização do Caso Celso Daniel transformou o usual, condenado eticamente nas relações entre Poder Público e empresários, em específico.
Foi na base da especulação que se construiu a mentira de que o legista Carlos Delmonte teria sido assassinado por causa de declarações contraditórias sobre suposta tortura de Celso Daniel na madrugada de 20 de janeiro.
Fez-se estardalhaço na mídia, seguido de pouco espaço em seguida: Carlos Delmonte morreu de morte provocada por ele mesmo. Tanto que deixou carta de despedida à mulher, que o abandonara. O Estadão reproduziu o manuscrito desesperador de Delmonte. A Polícia Civil do governo do Estado apurou o caso sem deixar margem a dúvidas. Delmonte tomou três medicamentos contraproducentes ao cometer suicídio.
PASSADO SEM RUSGAS
Quem procurar na Internet possivelmente só encontrará a informação correta no site de CapitalSocial. Quem perguntar a qualquer consumidor de informação sobre o desfecho do médico legista, receberá como resposta o apontamento de crime de mando. Delmonte foi envenenado, acreditam os negacionistas.
A máquina que triturou reputações no Caso Celso Daniel possivelmente emperraria nestes tempos de redes sociais. Por mais que a premissa possa parecer contraditória, porque se vivem tempos de exacerbação de fake news, o grau de derretimento da verdade seria menos elevado exatamente porque o contraditório permitiria mais investigação, mais esclarecimentos, mais demolição da casa de mentiras e meias-verdades.
Afinal, as redes sociais têm o contraponto muitas vezes barulhento demais, mas nem por isso inútil, de nichos, de guetos. Essa cacofonia muitas vezes se torna prova provada de que só existe a comprovação de fake news exatamente porque há sempre o outro lado para intervir.
A premissa vale também para a Grande Mídia, muito mais apetrechada em tornar a mentira verdade e a verdade meia-verdade. O Caso Celso Daniel é prova disso.
FALTARAM REDES SOCIAIS
No Caso Celso Daniel, sem redes sociais, a Grande Mídia estabeleceu, definiu e determinou a regra do jogo ditado pelo MP: Sérgio Gomes da Silva, vítima, virou vilão. Tiraram o crime da bitola criminal e o levaram à bitola político-administrativa.
A Polícia Civil, que apurou os acontecimentos juntamente com a Polícia Federal, foi silenciada pelo governo do Estado durante quatro anos. Apenas o MP se manifestou. É impensável nestes dias de redes sociais abundantes algo parecido.
A senadora Mara Gabrilli, à parte outras competências para chegar ao posto federal, nadou de braçadas na campanha eleitoral televisiva de 2018 porque o histórico público do Caso Celso Daniel a favoreceu.
A percepção social é massacrante: o crime de mando de forças ligadas ao entorno do prefeito, que pretenderia acabar com o sistema de arrecadação paralelo.
O governador João Doria não só estendeu o tapete vermelho a Mara Gabrilli como a liberou à mensagem-eixo da campanha.
O petista Celso Daniel elegeu a tucana Mara Gabrilli. Uma cooperação metafísica cristalizada no rompimento de uma parceria entre agremiações que se permitiam hostilidades táticas, desde que não dilacerassem a estratégia em comum de sustentar os interesses de cada corporação eleitoral. Tudo sob o conceito de democracia com responsabilidade social.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP