Os dois primeiros episódios do Caso Celso Daniel que a Globoplay apresentou na semana passada (nesta quinta-feira serão mais dois) deixaram os defensores da versão de Crime de Encomenda em situação desvantajosa.
Geraldo Alckmin, um promotor criminal, a imprensa, o irmão Bruno Daniel, o então secretário de Segurança Pública, todos eles patrocinaram equívocos que enfraquecem a tese do time do Crime de Encomenda. Do outro lado, somente Sérgio Gomes da Silva cometeu erros.
Em pelo menos sete situações o Crime Comum se revelou consistentemente de acordo com a trajetória das investigações policiais, em contraponto à força-tarefa do Ministério Público.
VILÃO NACIONAL
Como se sabe, o MP realizou investigação paralela que culminou no pedido de prisão do primeiro-amigo do prefeito Celso Daniel. Sérgio Gomes da Silva, o motorista do veículo abalroado pelos sequestradores, tornou-se vilão nacional. Chamado de Sombra pelo Ministério Público, Sérgio Gomes da Silva foi colocado sob holofotes porque o imponderável apareceu em campo. Sombra nenhum sai das sombras exceto em situação incontrolável.
O que está em jogo desde o princípio do Caso Celso Daniel, como se sabe, é o confronto Crime Comum versus Crime de Encomenda.
Esse é o ponto-chave em que se dividiu o Caso Celso Daniel a partir dos primeiros momentos, antes mesmo que o corpo do prefeito de Santo André fosse encontrado.
A versão de Crime Comum coloca subliminarmente o destino de Celso Daniel sob responsabilidade do governo do Estado, então comandado por Geraldo Alckmin. O pano de fundo era o estado de calamidade da Segurança Pública. Os sequestros abundavam. Não há jornal do período que não tenha registros e reportagens sobre o caos.
RABO DE FOGUETE
A versão de Crime de Encomenda tira o rabo de foguete do governo do PSDB e o desloca em direção aos petistas que, naquele 2002, disputariam e venceriam as eleições presidenciais. Mas perderiam a disputa estadual com Geraldo Alckmin superando José Genoíno.
Crime de Encomenda abarca o assassinato do prefeito tendo como premissa a descoberta de dinheiros desviados num esquema de caixa paralelo na Prefeitura de Santo André. Caixa paralelo e caixa paralelo do paralelo, com o chamado Caixa Três complementar ao Caixa Dois.
Todo o resto que envolve o Caso Celso Daniel não foge da bitola dessa bifurcação interpretativa. Esse é o epicentro do Caso Celso Daniel. Quem fugir dessa demarcação de terra de criminalidade perderá o fio da meada.
Por conta disso, fizeram-se gatos e sapatos de verdades, proliferaram inverdades e se multiplicaram meias-verdades.
CRIME DE ENCOMENDA
O senso comum na sociedade é que o Crime de Encomenda prevalece. Entre outras razões porque se martelou tanto a versão do Ministério Público em contraponto a das investigações policiais. As forças policiais não deixaram pedra sobre pedra no aspecto técnico-operacional. Mas perderam feio o jogo da mídia.
A redução da distância do placar que favorece o Crime de Encomenda em detrimento do Crime Comum vai depender muito da ressonância da série da Globoplay e de reavaliações de toda a mídia nacional, além de redes sociais. O mundo tecnológico mudou e agora a Grande Mídia já não tem o controle da opinião pública.
CapitalSocial decidiu acompanhar atentamente o desenrolar da série documental da Globoplay produzida pela Escarlate entre outras razões porque, desta feita, tudo indica que a matéria-prima será praticamente irrepreensível.
Ou seja: os insumos à avaliação de cada ponto importante do Caso Celso Daniel estarão disponíveis a todos os consumidores de informação.
SÉRIE EXPOSITIVA
O documentário da Globoplay é de refinada acabamento investigativo. Sem contar que tudo passa por uma qualidade muito especial na área cinematográfica. A equipe do diretor Marcos Jorge fez do seriado um ponto fora da curva em produtos semelhantes, de crimes históricos, cada vez mais demandados nas plataformas de streaming.
Afinal, quais são os sete pontos inicialmente destacáveis como desequilibrantes em favor do Crime Comum que os dois primeiros episódios da série permitiram detectar?
A resposta só é detectável a quem acompanha o Caso Celso Daniel há exatamente 20 anos. Os telespectadores deslumbrados com o trabalho cinematográfico possivelmente não dominarão facilmente o que se apresenta.
O formato narrativo do Caso Celso Daniel é peça de cristal sob medida nestes tempos de intolerâncias e desconfianças. Tudo pode ser remetido a interesses políticos e ideológicos.
TIROTEIO GERAL
Nesse ponto, a equipe da Escarlate preparou arcabouço que se apresenta até agora irrepreensível. Afinal, com 32 testemunhos e um já notado equilíbrio quantitativo entre defensores de uma tese e de outra, caberá exclusivamente aos telespectadores construírem juízo de valor de que lado permanecerão ou se vincularão ao fim do documentário. Esse jogo de mata-mata é inexorável como conteúdo de torcida organizada.
Traduzindo a equação editorial adotada, todos os condimentos desse grande sarapatel de complexidades do Caso Celso Daniel são propriedades dos próprios telespectadores.
Nada é impositivo. Mas para que o tempero não desande e se chegue a conclusões definidoras de um dos lados, porque são dois lados, é preciso esforço adicional, ou substancial: a simples condição de espectador precisará ser desafiada. O quebra-cabeça é uma função que caberá a quem acompanhar a série.
PRIMEIRO GOL CONTRA
O primeiro gol contra dos defensores de Crime de Encomenda foi proporcionado pelo ex-secretário de Segurança Pública do Estado, Marco Vinicio Petrelluzzi.
O passado dele já é um apetrecho pesado no Caso Celso Daniel. Afinal, como titular da área, foi apeado formalmente da titularidade mesmo antes da morte do prefeito de Santo André. O Estado de São Paulo (e particularmente a Região Metropolitana de São Paulo) era um campo de guerra criminal com predomínio de sequestros. Petrelluzzi deixou de fato a secretaria no dia seguinte ao sepultamento do corpo de Celso Daniel.
Vinte anos depois, participante do documentário da Globoplay, Petrelluzzi procurou desviar a atenção do passivo da política de Segurança Pública que comandou e que seu sucessor, o também promotor criminal Saulo de Castro Abreu, reformulou integralmente ao assumir logo em seguida à morte de Celso Daniel.
SÓ PARA ILUDIR
A declaração de Petrelluzzi a respeito de um suposto fio desencampado do Caso Celso Daniel se converteu em tergiversação.
Para tirar o foco da seringa que o incomodava, e se referindo à cueca que Celso Daniel utilizava, declarou que a peça estava do lado do avesso e que isso traduzido pelo código de delinquentes significaria traição. Um encaminhamento sutil ao Crime de Encomenda. Vinculou-se muito que Celso Daniel fora assassinado porque teria um dossiê relatando irregularidades na Prefeitura. Nada mais conclusivamente patético, como se viu em seguida há 20 anos. E que reproduzido agora soa como galhofa.
O ex-secretário de Segurança Pública repetiu no documentário que o que um dos legistas disse durante a necropsia do corpo do prefeito petista.
Chega a impressionar a declaração de Petrelluzzi 20 anos depois quando se sabe que investigações da Polícia Federal constataram que Celso Daniel não tivera a cueca do avesso.
DELEGADO IRRITADO
O delegado Pinto de Luna, entrevistado por mim em 2006, desmentiu a versão. Esclareceu que o modelo utilizado por Celso Daniel era revestido de uma etiqueta externa, como tantos outras peças do mesmo modelo.
Um erro grosseiro do legista Carlos Delmonte. Provavelmente ele não usava cuecas modernas. E, alertado pelo delegado federal, concordou com a observação. Mas, tempos depois, foi ao Programa do Jô e retomou a afirmação inicial. O delegado federal não se conteve ao acompanhar a entrevista.
Outra declaração do ex-secretário de Segurança Pública que deve ser contabilizada desde já como gol contra é que Celso Daniel foi torturado. Marco Vinicio Petrelluzzi comprou a versão do mesmo legista, Carlos Delmonte. O desenrolar das investigações policiais desqualificaram a conclusão.
Embora não tenha sido atribuído diretamente a qualquer representante do time de Crime de Encomenda, a notícia de que Celso Daniel saira para o jantar vestindo uma calça bege e seu corpo vestia uma calça jeans azul também potencializa a versão de Crime Comum.
USP DESMENTE
A transcrição de uma reportagem da TV Globo dando conta da troca de calça, algo que corroboraria a ideia de que Celso Daniel foi previamente escolhido ao sequestro, e que entre a ação e a descoberta do corpo teria havido movimentos supostamente pré-determinados, também não se sustenta.
Exames especializados nos laboratórios da USP (Universidade de São Paulo) constaram que Celso Daniel vestia a mesma calça com que foi ao jantar num restaurante da Capital com Sérgio Gomes da Silva. Imagens de gravações no restaurante foram utilizadas à confirmação técnica do laudo.
Mais um ponto favorável ao Crime Comum: no esforço de criminalizar Sérgio Gomes da Silva, apontado como mandante do crime pela força-tarefa do Ministério Público instalada em Santo André, Bruno Daniel afirmou que não mantinha relações próximas com o então primeiro-amigo de Celso Daniel.
AMIZADE COM SÉRGIO
Bruno Daniel fugiu da verdade: ele e a mulher Marilena Nakano gozavam sim de amizade de Sérgio Gomes, a partir da disputa pela Prefeitura de Santo André em 1988. Sérgio Gomes era tão próximo ao casal que fez alguns favores envolvendo os filhos. Havia entre eles inclusive afinidade ideológica, de esquerda.
Os dois primeiros episódios também acabaram com a versão de que Sérgio Gomes da Silva estaria mentindo no caso do estancamento do veículo que dirigia.
Sergio Gomes afirmou, em depoimento atabalhoado à Polícia logo após o sequestro, que o câmbio automático da Pajero apresentou falha técnica que precipitou o arrebatamento de Celso Daniel.
CAMBIOS EM CONFLITO
A Globoplay reproduziu uma gravação de 2002 com especialista automotivo da Mitsubishi. Ele explicou tecnicamente a razão de a Pajero não obedecer ao câmbio automático e, consequentemente, não ganhar tração. Tudo ocorreu porque Sérgio Gomes, ante a pressão do tiroteio contra o veículo, acionou involuntariamente o câmbio menor, de redução, que neutraliza o câmbio maior.
Outro ponto que coloca em má situação qualquer argumento em contrário ao estágio de criminalidade pública em São Paulo: numa entrevista logo após o assassinato, o então governador do Estado, Geraldo Alckmin, negou a inação da Polícia Civil ao afirmar que (ele deu o número em detalhes) mais de 300 sequestradores já haviam sido presos nos últimos tempos.
Um Estado que prende tantos criminosos é um Estado que reconhece tacitamente a situação de gravidade dessa modalidade de delito. E as estatísticas mostraram fartamente o quadro de horrores que se vivia em São Paulo. As investigações policiais que direcionavam o resultado para Crime Comum, praticado por um bando de marginais despreparados, ganharam um reforço especial do próprio governador. Afinal, casa que tem muita goteira provavelmente conta com dono negligente ou descuidado.
DINHEIROS TRAIÇOEIROS
Para completar a goleada de erros de Crime de Encomenda dos dois primeiros episódios, o promotor criminal José Reinaldo Guimarães declarou nas entrelinhas, 20 anos depois, ao documentário, o mesmo que dissera nos primeiros tempos pós-sequestro: Celso Daniel foi abatido porque se teria revoltado com os desvios financeiros.
José Reinando Guimarães não se estendeu na resposta. Talvez o faça nos próximos episódios.
Qualquer complemento acabará ganhando o mesmo destino de incongruência comprovada: ao longo das investigações, Celso Daniel saiu da condição de vítima dos desvios de recursos públicos na área de transportes públicos para efetivo participante do esquema de arrecadação paralela.
Quando um promotor criminal envolvido até a medula nas investigações repete o que já foi soterrado como argumentação e prova, vinculando o crime à gestão pública, tudo indica que o estoque de eventuais novidades é um zero redondíssimo. E que o Crime de Encomenda será desmascarado de vez na série documental da Globoplay. Hoje tem o segundo tempo (dois episódios) do primeiro de dois jogos do mata-mata.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP