Encerrado o primeiro jogo do mata-mata da série documental do Caso Celso Daniel exibido pela Globoplay, e muitas máscaras arriadas depois, somente um tiro de prata poderia alterar a realidade histórica dos fatos que culminaram na morte do prefeito de Santo André. As torcidas organizadas de Crime de Encomenda ficarão decepcionadas.
A versão de Crime de Encomenda, de fundo político, é uma casa que desaba a cada novo episódio. Contra fatos e documentos, não há escapatória. Só especulação.
As inverdades e as mentiras do Caso Celso Daniele estão sendo escrutinadas pela primeira vez ao grande público consumidor de informações. Como água morro abaixo, ninguém segura.
O “Crime Comum” prevalece em forma de palacete de verdades irretocáveis, território de onde jamais deveria ter sido retirado e manipulado. Mas a política e a ideologia provocam danos irreversíveis.
Sempre é bom ressaltar que tudo é possível, mesmo quando o impossível parece impetuosamente claro: uma reviravolta no placar parcial desse mata-mata que ensaia goleada não estaria fora do foco do fanatismo da turma do Crime de Encomenda.
Diante do que já foi exposto e do que possivelmente viria como nexo do que já veio e que terá desdobramentos, a turma do Crime de Encomenda precisa cair na real e começar a contar os estragos que cometeu.
Além da morte de Celso Daniel, também foi assassinado o primeiro-amigo do prefeito, Sérgio Gomes da Silva. Metido em desvios de dinheiros, Sérgio Gomes foi enredado como mandante de um crime do qual de fato também foi vítima, como motorista do prefeito naquela noite em que foram jantar na Capital.
Celso Daniel e Sérgio Gomes trataram de algumas providências aos rumos da campanha de Lula da Silva à presidência da República. Estávamos em janeiro de 2002. As eleições foram em outubro. Celso Daniel fora escolhido peça-chave na engrenagem estrutural da campanha.
Repetindo: Celso Daniel fora escolhido coordenador do programa presidencial do petista e seria, com a vitória, ministro do Planejamento.
Num dos trechos do documentário, José Dirceu, um dos cardeais do partido, revelou que Celso Daniel teria o futuro um cargo de senador ou de governador do Estado a disputar, juntamente com Toninho do PT, prefeito do PT assassinado quatro meses antes em Campinas.
Celso Daniel era um dos homens de ouro no PT. Inclusive na sistemática de arrecadação de recursos financeiros da campanha presidencial, como acabou de revelar Gilberto Carvalho à Globoplay, assunto sobre o qual nos debruçamos na última edição.
Antes disso, muito antes do crime, o então candidato presidencial Lula da Silva elogiara o sistema articulado em Santo André. Ele recomendou ao prefeito de Mauá, Oswaldo Dias, a mesma eficiência. Tratou-se de encontro reservado. Diferentemente, portanto, da revelação de agora de Gilberto Carvalho.
Aliás, não foi apenas Gilberto Carvalho, secretário-chefe da Administração de Celso Daniel, em 2002, que admitiu pela primeira vez o esquema de Caixa Dois na Prefeitura com finalidade eleitoral.
Também o então secretário de Serviços Urbanos, Klinger Luiz de Souza, fez revelação nesse sentido aos executivos do Estúdio Escarlate, do documentário da Globoplay. Klinger, acusado de envolvimento no esquema de recursos paralelos, admitiu que Sérgio Gomes flutuava entre os concessionários de transporte coletivo.
Como é impossível esclarecer todos os respectivos contraditórios do Caso Celso Daniel num mesmo episódio, ou mesmo em dois episódios conjugados, estratégia cronológica da Escarlate/Globoplay, ainda há pendências que recomendam cautela.
Recomendar cautela é uma forçada de barra. A casa do Crime de Encomenda está desabando. A fragilidade da viga de sustentação principal é notória: Celso Daniel participava senão ativamente mas deliberadamente do esquema de arrecadação paralela e, como tal, jamais seria estúpido a ponto de, arrependido, decidir romper tentáculos que o uniam à cúpula do PT. Tanto que foi nomeado a um cargo importantíssimo na campanha eleitoral antes que 2002 surgisse no calendário gregoriano.
Posto isso, vira pó todo o resto que se soma ao catálogo de acusações que levaram o Caso Celso Daniel ao compartimento de crime político-administrativo vira pó. Não adianta espernear.
As vísceras estão sendo gradualmente documentadas em forma de obra de arte produzida pela Escarlate. Não se trata, portanto, de suposto documentário, como muitos são de fato. É documentário para valer.
Os protagonistas e figurantes têm a oportunidade única de expor pertencimentos em forma de conhecimentos e provas. Alguns são autoincriminadores. Como os irmãos de Celso Daniel.
O que até agora a série documental dos diretores Marcos Jorge e Bernardo Rennó apresentou nas edições semanais é que há condimentos mais que suficientes para que se sirva um vatapá de provas testemunhais e documentais que colocam definitivamente o Caso Celso Daniel como um dos mais absurdos e abusivos desvios de narrativas na história da política nacional.
Tudo, claro, com a complacência quase generalizada da Grande Mídia, a partir da cobertura do crime em 2002. Não custa repetir à audiência rotativa e adicional de uma plataforma digital como CapitalSocial: o jornalismo brasileiro fracassou redondamente na cobertura do Caso Celso Daniel porque se provou preguiçoso, impreciso, partidário e perdulário em credibilidade.
A tática da narrativa supostamente isenta está escancarada. Quem recorrer ao noticiário desde o princípio do crime vai tomar conhecimento de edições erráticas. Mas isso não precisa ser repetido agora.
A segunda semana de dois episódios do Caso Celso Daniel foi constrangedora para o hoje vereador e então senador petista Eduardo Suplicy.
A introdução de um farsante no enredo do assassinado se comprovou patetice completa. O pastor evangélico que Suplicy transformou em personagem central de acusação a Sérgio Gomes da Silva não passava de estelionatário.
O pretenso e enganador pastor inventou que tinha disponível a gravação do arrebatamento do prefeito naquela noite de 18 de janeiro.
Mais que isso: que Sérgio Gomes foi flagrado colaborando com os sequestradores. Juntou-se a fome de aparecer na mídia com o apetite de fazer nova vítima, ou seja, a dupla senador-pastor confluiu a uma patacoada que divertiu as forças policiais que apuraram o Caso Celso Daniel.
A fome de holofotes de Suplicy permitiu que a mídia divulgasse durante várias semanas mais um pedaço da imensa colcha de retalhos de inverdades que incriminaram Sérgio Gomes.
Suplicy é espécie de Beijoqueiro do Caso Celso Daniel, entre tantos outros casos. Ele faz uso da mídia como Beijoqueiro, personagem folclórico que fazia de tudo para contemplar com um beijo na face estrelas de todos os espectros. Beijoqueiro furava o cerco de segurança e tascava o beijo consagrador. Sérgio Gomes da Silva foi vítima do entusiasmo midiático-beijoqueiro do então senador.
Também a força-tarefa do Ministério Público em Santo André ficou em situação desconfortável nos novos episódios da Globoplay.
O caso da Maria Louca foi levado ao público. A mulher que se apresentou à Polícia Civil como testemunha de conversa numa favela entre Sérgio Gomes da Silva e os sequestradores acabou desmascarada facilmente pelos policiais civis e nem prestou depoimento.
Maria Louca era especialista em aparecer como testemunha em todos os crimes policiais de repercussão midiática. O delegado Armando de Oliveira, da Delegacia de Homicídio, a dispensou assim que agentes a levaram à sua sala. Já a conhecia de sobras.
E o que aconteceu com Maria Louca é surreal: conduzida aos promotores criminais de Santo André, foi considerada testemunha-bomba, (os jornais divulgaram essa espécie de manchete), teve a identidade preservada, entrou no programa de proteção de testemunhas que o Estado oferece a quem correria risco de vida, e, mais tarde, descoberta a farsa, o MP a descartou. E a defesa de Sérgio Gomes a utilizou nos processos.
Maria Louca era, portanto, uma Maria Louca, nada mais que Maria Louca. Menos para o MP durante longo período – não um caso fortuito e ligeiro como declarou o promotor-criminal Roberto Wider Filho no documentário.
O que pode ter passado despercebido da maioria dos assinantes da Globoplay e que compromete profundamente o comportamento dos irmãos João Francisco e Bruno Daniel foi o diálogo que mantiveram com Gilberto Carvalho uma semana após o crime. Eles mesmos, os irmãos, contam o encontro.
Que encontro? Os irmãos dizem que Gilberto Carvalho teria confessado que levara R$ 1,2 milhão ao presidente nacional do PT, José Dirceu, como fruto de arrecadação paralela que, implicitamente, envolvia o prefeito Celso Daniel e seu primeiro-amigo Sérgio Gomes da Silva.
Esse é um ponto que choca quem acredita que os irmãos de Celso Daniel se juntaram ou contribuíram desde o início com a denúncia de Crime de Encomenda do Ministério Público, aliados que eram da família Gabrilli.
A família Gabrilli, da agora senadora Mara Gabrilli, era uma das concessionárias de transporte coletivo em Santo André que participavam do sistema de alimentação do Caixa Dois da gestão de Celso Daniel.
A percepção de quem acompanha o Caso Celso Daniel desde muito tempo é que, em princípio, os irmãos acreditavam piamente na inocência administrativa de Celso Daniel no caso das propinas.
Foi o que disseram publicamente durante muito tempo, até que mudaram de opinião e admitiram que o irmão famoso sabia do esquema, embora não concordasse, e mais, tarde, admitissem que Celso Daniel não só sabia como participava em nome da causa petista.
Declarações do passado recuperadas de entrevistas à mídia e declarações do presente, do documentário, mostram que os irmãos foram informados por Gilberto Carvalho de que Celso Daniel tinha pleno conhecimento do esquema de arrecadação paralela nas empresas de transporte.
O recado transmitido por Gilberto Carvalho à ocasião parecia sustentável: qualquer iniciativa que deslocasse o assassinato das investigações policiais, de Crime Comum, poderia impactar a imagem de Celso Daniel, porque se chegaria às propinas.
Bruno Daniel sugere no depoimento à Globoplay que Gilberto Carvalho pretendia esconder um suposto Crime de Encomenda do Caso Celso Daniel.
A realidade era completamente oposta: o homem de confiança de Lula da Silva na gestão de Celso Daniel sabia que ao se extrapolar o crime do âmbito exclusivamente criminal, de Crime Comum, as investigações do Ministério Público chegariam ao esquema de arrecadação paralela que desgastaria a imagem de Celso Daniel. Dito e feito.
Os irmãos preferiram se aliar ao MP ao juntarem uma coisa à outra, mesmo que a lógica indicasse que uma coisa (propina) e outra coisa (assassinato) não se cruzavam como peças da mesma equação.
Principalmente porque se atribuía a Celso Daniel um papel incoerente de queima de arquivo ou algo semelhante, como a jamais provada existência de dossiê denunciatório do esquema.
Celso Daniel denunciando a si próprio, eis uma estupidez alucinante que os irmãos do então prefeito de Santo André expuseram subliminarmente aos olhos da nação, mesmo que pretendessem o que era impossível esconder, ou seja, que havia uma sistematização de arrecadação paralela de dinheiros com a anuência de Celso Daniel.
Os assinantes da Globoplay que se enternecem com o desempenho cênico de Bruno Daniel (João Francisco Daniel desapareceu da praça, embora fosse muito mais combativo durante os 20 anos que o irmão mais novo e ponderado) precisam levar tudo isso em consideração.
Não se duvide dos sentimentos de Bruno Daniel, mas a psiquiatria decifra situações semelhantes.
Dedurar o próprio irmão, mesmo com o pressuposto frágil de livramento da denúncia de corrupção, foi uma ação intempestiva ou pensada?
Essas questões precisam ser colocadas porque têm raízes e fundamentações. Não se tratam de especulações. A história está aí. As declarações foram feitas ao longo dos tempos. Não existe interpretação maliciosa. Pior que isso: existem omissões escandalosas ao ignorarem os fatos.
O mundo inteiro de Santo André que conhecia as relações dos irmãos Daniel sabe que entre os três homens de uma família de cinco não existia compatibilidade ideológica e, portanto, nenhuma afinidade de irmandade no sentido mais profundo da expressão.
O direitista João Francisco, o centro-esquerda Celso Daniel (que chegou a ser de extrema-esquerda nos primeiros tempos de doutrinação ideológica) e o esquerdista Bruno Daniel (candidato do PSOL nas eleições para a Prefeitura de Santo André em 2018) mantinham-se afastados entre si. Só se encontravam formalmente no aniversário da mãe.
Sempre é indispensável recordar o passado familiar para entender o presente exposto pela Escarlate/Globoplay.
Quem teve atuação incisiva nos episódios da semana que passou na Globoplay foi o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que acompanhou o Caso Celso Daniel por designação do PT. Greenhalgh era deputado federal.
Nas gravações à Produtora Escarlate, o criminalista manteve desempenho abrasivo, contundente e recriminador à atuação dos promotores criminais, com os quais compartilhou sérios desentendimentos.
Greenhalgh disse que o MP se distanciou cada vez mais das investigações policiais na medida em que o assassinato do prefeito não se configurava como ferramenta política, ou seja, de Crime de Encomenda. E acusou o MP de politizar desde então o assassinato, ao tornar o PT alvo de indagações aos sequestradores.
O promotor criminal José Reinaldo Guimarães, também presente no documentário, fez pontos e contrapontos ao advogado petista. Um show de contraditório sempre negado durante anos pela Grande Mídia ou tratado de forma a privilegiar os defensores da versão de Crime de Encomenda.
Quem se deu mal no fim do quarto capítulo foi o parceiro de promotoria de José Reinaldo Guimarães, no caso Roberto Wider Filho que, naquele agosto de 2002, declarou enfaticamente que Celso Daniel fora assassinado porque descobrira esquema de corrupção na Prefeitura de Santo André.
Os irmãos de Celso Daniel já sabiam, segundo os próprios relatos, e também segundo Gilberto Carvalho e Klinger Souza, que a história era outra.
Roberto Wider Filho caiu em contradição praticamente indefensável para quem sempre se postou em defesa do Crime de Encomenda. Nos dois capítulos conjugados ele sai da posição gravada de agosto de 2002 que atribui a morte de Celso Daniel à descoberta do esquema de propina e se estatela na gravação recente da Globoplay ao afirmar que Sérgio Gomes da Silva era espécie de preposto do prefeito na operação junto às concessionárias de transporte coletivo. O VAR é implacável.
Os próximos episódios abrem o segundo jogo, o jogo de volta, do mata-mata de Crime de Encomenda versus Crime Comum. Uma goleada parece mais provável. Há questões viscerais ainda abertas, mas a casa está caindo de forma aparentemente implacável.
Crime Comum ganha com facilidade porque não tem o passivo de contradições que possam ser catalogados como danos. Como a intocável constatação de que Celso Daniel não só sabia como participava do projeto de arrecadação de recursos ilegais. Exatamente o reverso do núcleo discursivo do Crime de Encomenda.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP