A exumação do Caso Celso Daniel nestas eleições presidenciais é o requentamento de um prato mais que indigesto de fraudes informativas, interpretações dogmáticas e intolerância político-partidária. Tudo ao gosto do freguês de cadernetas ideológicas.
Quem imaginou que tudo estaria resolvido após o documentário da Globoplay, uma joia-preciosa de arte, contraditório e esclarecimentos, foi atropelado por uma motoniveladora de interesses eleitorais. Botaram o PCC na história. A sociedade adora consumir ilusões. Mas essa nova versão é uma bobagem que já começa a morrer na praia da inconsistência. Tudo tem limite. Até mesmo a idiotice.
TEMPORADA ELEITORAL
Até que as maquininhas diabólicas movidas a aplicativos como o WhatsApp não constavam de uso massificado, o Caso Celso Daniel flutuava nas eleições presidenciais sem maior importância. Havia um acordo entre petistas e tucanos paulistas para congelarem o crime.
Agora, paradoxalmente, quando o crime está mais que esclarecido, desmistificado e sacramentado, eis que surge com roupagem delitiva nova: as supostas relações entre o PT do ex-presidente Lula da Silva e o PCC (Primeiro Comando da Capital), a principal facção criminosa da América Latina.
LONGE DEMAIS
Até que surgisse agora com ímpeto já consagrado pelo calendário eleitoral, jamais José Valério ousou ir tão longe. Não se discute a veracidade ou não da participação do PCC. O que causa risos e associar uma coisa à outra.
Deixemos de lado o lado agora especulativamente explorador do Caso Celso Daniel (as relações com o PCC anunciadas pelo criminoso publicitário Marcos Valério) e fiquemos exclusivamente no original, de morte supostamente encomendada pelo PT antes das eleições de 2002 quando, vejam só, Celso Daniel já está atuando como coordenador geral da campanha do até então tetraderrotado Lula da Silva à presidência da República.
DOCUMENTÁRIO LETAL
Os oportunistas de ocasião que ressuscitam o Caso Celso Daniel original, ou seja, de crime de encomenda na versão do MP e de crime comum na versão de inúmeros investigações policiais, parecem não ter entendido ou dissimulam a situação.
O documentário da Globoplay encerrou de vez tudo que havia de dúvidas sobre o duplo e conflitivo enredo do assassinato. O enredo insustentável do MP e o enredo mais que comprovado de divisões da Polícia Civil de São Paulo e da Polícia Federal não dão liga.
Como me recuso a dar credibilidade à junção de uma história verdadeira (a morte de conotação estritamente urbana de Celso Daniel) e a especulação de participação do PCC (que colite frontalmente com as investigações originais do próprio Ministério Público instalado com força-tarefa em Santo André logo após o crime), reproduzo aos leitores o resumo da análise que fiz sobre a obra de arte dos cineastas Marcos Jorge e Bernardo Rennó, à frente do Estúdio Escarlate, na produção do documentário da Globoplay.
BALANÇO SELETIVO
Em fevereiro deste ano fiz um balanço geral ao retratar os depoimentos de 43 entrevistados pelos produtores cinematográficos. Desse total, escolhi um terço apenas, porque suficientes. Reproduzo abaixo o testemunho de cada um.
Não há espaço a novo estelionato informativo claramente presente na versão de Marcos Valério ao se referir ao Caso Celso Daniel. O publicitário é um boquirroto à procura de proteção.
GILBERTO CARVALHO
Surpreendeu ao admitir, mais que admitir, ao afirmar, com todas as letras e entonação de voz, um segredo que o PT guardava a sete chaves e que, mantido, foi a razão principal de um Crime Comum virar Crime de Encomenda na versão do MP: disse que Celso Daniel tinha pleno conhecimento do sistema de arrecadação paralela. Gilberto Carvalho afirmou que Celso Daniel sabia a que fim se destinavam as ações arrecadatórias de Sérgio Gomes da Silva. O ex-secretário de governo de Celso Daniel e chefe-de-gabinete do governo Lula da Silva assumiu publicamente que o PT de Santo André não era virginal num delito que antecessores de outros partidos jamais deixaram de empreender, embora tudo parecesse novidade nas declarações dos promotores criminais naquele início de 2002. Gilberto Carvalho só não disse o que para quem entende de política seria desnecessário: a confissão de arrecadação paralela do PT naquele começo de século atingiria em cheio os planos de Lula da Silva virar presidente do País naquela temporada. Tratava-se de um segredo então inviolável que gravações da Polícia Federal captaram nas entrelinhas. As mesmas entrelinhas retiradas do contexto político-administrativo inconfessável e transplantadas para dar vazão ao Crime de Encomenda, estruturado na versão paralela de rebeldia de Celso Daniel ao descobrir as irregularidades. Nada mais falso, portanto.
ROBERTO WIDER FILHO
O passado causou transtorno incontornável ao presente. Entre o promotor-criminal enfático de 2002 e dos anos subsequentes, defensor da versão de Crime de Encomenda que fez de Celso Daniel vítima que se rebelara contra o esquema de propina, e o promotor-criminal do documentário, que afirma que Sérgio Gomes da Silva era preposto do prefeito na operação de arrecadação paralela, esticou-se uma corda de contradição. Uma corda que enforcou de vez a teoria condenatória ao primeiro-amigo do prefeito petista, o homem de quem o MP pretendeu arrancar inutilmente uma delação premiada. Wider queria que Sérgio Gomes confirmasse os dinheiros impuros da gestão de Celso Daniel. Todo o resto da participação de Roberto Wider Filho ficou comprometido. E virou especulação.
BRUNO DANIEL
Chorou copiosamente no episódio final. Admitiu finalmente o rompimento de relações durante muito tempo, por causa de desavenças no primeiro mandato de Celso Daniel, em 1989. Bruno Daniel viu o mundo de fantasia desmoronar. O médico-legista que tanto acreditava ter sido vítima de assassinato, suicidou-se mesmo, inclusive em declarações do promotor-criminal Roberto Wider Filho. Bruno Daniel lutou bravamente por uma versão de assassinato de encomenda que se esboroou a cada nova episódio. Não sobrou nada além do choro de arrependimento por não ter partilhado o sucesso político-administrativo e por ter contribuído para afundar a imagem do irmão famoso.
JOÃO FRANCISCO DANIEL
Foi mais antagonista midiático de Crime Comum que o irmão Bruno Daniel nos primeiros tempos pós-assassinato. Criticado duramente pelos petistas, porque atuava como lobista da família Gabrilli, concessionária de linhas de transporte público rival do empresário Ronan Maria Pinto, João Francisco Daniel desapareceu nos últimos anos. Estaria na Bahia. A CPI dos Bingos, em 2005, que incluiu o Caso Celso Daniel com o propósito de criminalizar o PT e Sérgio Gomes da Silva, foi um dos palcos de João Francisco Daniel, em embates com Gilberto Carvalho. Extravagante nos gestos e palavras, irônico, desafiador, a recusa em participar do documentário talvez tenha sido uma decisão em que prevaleceria a serenidade. Se participasse, teria visto desqualificado no presente muito do que disse no passado em forma de acusações às forças policiais que apuraram Crime Comum.
MARCO VINICIO PETRELLUZZI
Então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o também promotor de Justiça foi afastado do cargo no dia seguinte ao sepultamento de Celso Daniel. A decisão havia sido tomada antes, por causa da acentuada deterioração do ambiente criminal paulista. Batiam-se recordes sobre recordes de sequestros. Petrelluzzi está presente em forma de passado e de presente no documentário. Não se arrisca a avaliações mais profundas. Conta uma das muitas lambanças do senador petista Eduardo Suplicy, fascinado por manchetes.
MARCIO SERGIO CHRISTINO
Esse Procurador do Ministério Público de São Paulo fez intervenções milimetricamente certeiras sobre o comportamento de presidiários. Autor de livro que trata da história do PCC, a facção mais poderosa do sistema criminal do País, Marcio Christino engrossou a argumentação técnica-social de operações policiais de que Dionísio de Aquino Severo jamais poderia ter participado do sequestro de Celso Daniel. Afinal, Dionísio jamais se juntaria à quadrilha de sequestradores chefiada por Itamar Monstro da Silva, ligada ao PCC. Dionísio de Aquino Severo era de facção rival, que disputava a representatividade dos criminosos em São Paulo. Um procurador da Justiça, do MP, que contesta a apuração dos promotores-criminais de Santo André, defensores da versão de Crime de Encomenda liderado por Dionísio de Aquino Severo, era tudo que faltava para enterrar de vez a debilidade das investigações paralelas.
EDISON DE SANTIS
Delegado-geral da Policia Civil de São Paulo, fundamentou o tempo todo a versão de Crime Comum. Participou ativamente da força-tarefa policial que capturou sequestradores. Esquadrinhou com clareza o território criminal dos bandidos que sequestraram Celso Daniel e a infiltração de um personagem sem ligação efetiva com a operação, Dionísio de Aquino Severo. Hostilidades trocadas com os promotores-criminais, que trataram de apuração paralela, foram subliminares. O delegado De Santis transpira experiência.
MARCOS CARNEIRO LIMA
Delegado-geral e ex-delegado corregedor, definiu o Caso Celso Daniel em várias intervenções com objetividade. Disse com ênfase que Crime de Encomenda, no caso crime de mando, não é compatível com tantos sequestradores. Só faltou dizer que a versão de Crime de Mando com tantos participantes é tão absurdamente inverossímil quanto chamar a polícia para assistir a um assalto a banco. Também jogou no lixo da improbabilidade descomunal a introdução de Dionísio de Aquino Severo no enredo, saído um dia antes do presidio de Guarulhos a bordo de um helicóptero. Não só por conta de integrar facção criminosa rival aos sequestradores comandados por Itamar Monstro da Silva, do PCC, mas também ou principalmente porque o tempo era exíguo à empreitada subsequente.
MARCO ANTONIO DESGUALDO
Outro delegado de Polícia de alta patente da força-tarefa que se lançou a fundo nas investigações. Tanto como os demais, fez declarações que excluíram o assassinato de Celso Daniel de qualquer ação que não tenha sido de Crime Comum. Disse também que provavelmente o prefeito de Santo André não teria sido morto caso a mídia, especialmente a TV Globo, não desse a notícia sobre o sequestro. A informação levada ao público naquela noite de 18 de janeiro de 2002 causou impacto nos sequestradores ao descobrirem – sempre nas declarações do delegado – que estavam com um “peixe grande” em mãos. A recomendação para que Celso Daniel fosse libertado não foi obedecida. Na dramatização de momentos antecedentes ao crime, o sequestrador incumbido de dispensar o prefeito teria decidido pelo assassinato. Celso Daniel teria visto seu rosto.
ROMEU TUMINHA
O delegado de pai famoso, inclusive senador da República, apareceu apenas em gravações. Não consta dos ativos do documentário, ou seja, de quem tenha passado pelo processo de gravação. Era fiel informante da força-tarefa dos promotores criminais de Santo André. Os mesmos promotores-criminais que sempre fizeram segredo sobre a identidade das fontes de informação, foram entregues de bandeja num livro em que Romeu Tuminha faz relato inconsistente sobre o Caso Celso Daniel. E entrega os promotores-criminais como desaguadouro de investigações. Dionísio de Aquino Severo, o homem que fugiu do Presidio de Guarulhos de helicóptero e foi plantado na história do assassinato do prefeito, é obra de Romeu Tuminha. Uma obra que encantou os promotores-criminais. E que determinou o deslocamento do Crime Comum para Crime de Encomenda.
ELISABETE SATO
A delegada chamada pelos familiares de Celso Daniel e pelo Ministério Público de Santo André para efetuar uma terceira investigação policial do Caso Celso Daniel não gravou entrevista ao documentário e aparece no passado de reportagens sem voz. Apenas a decisão que tomou após um ano de investigações está objetivamente apresentada: Elisabete Sato seguiu o resultado das investigações anteriores. Não observou relação alguma entre a morte do prefeito de Santo André e o esquema de propina. Os irmãos Daniel e os promotores criminais a execraram. Queriam que queriam qualquer coisa diferente, desde que qualquer coisa diferente fosse exatamente o que sempre defenderam que seria, ou seja, Celso Daniel foi vítima de Crime de Encomenda. A única diferença entre as investigações anteriores e a comandada por Elisabete Sato se concentrou no autor dos tiros contra Celso Daniel: se um menor de idade ou um dos sequestradores já em idade criminal.
MARCELO DE GODOY
Jornalista do Estadão, teve atuação mais brilhante, isenta, corajosa, decidida e esclarecedora do que o próprio jornal. Enquanto o Estadão ofereceu desempenho editorial errático ao longo da cobertura do assassinato do prefeito de Santo André, Marcelo de Godoy fez do documentário arrazoado de competência analítica e interpretativa. Com conhecimento no que é um dos vetores principais do assassinato, os bastidores das investigações policiais, Marcelo de Godoy explorou com competência o acumulado da experiência vivida. Sem temor e partidarismo.
MARA GABRILLI
Pegou carona no Caso Celso Daniel bem depois da efervescência do crime em si. Alinhou-se aos tucanos de São Paulo em contraposições petistas que responsabilizaram o Palácio dos Bandeirantes pelo estado de calamidade pública do ambiente criminal na Grande São Paulo, com sequestros fluviais. Graças à propaganda eleitoral na TV e no radio, elegeu-se senadora da República numa campanha, em 2018, de maciça doutrinação de Crime de Encomenda, do qual seu pai, Ângelo Gabrilli, teria sido também uma vítima econômico-financeira.
MARCOS VALÉRIO
O publicitário preso na Operação Lava Jato tentou uma jogada protetiva comum a quem se vê atrás das grades: como estava em Minas Gerais: meteu-se mato adentro do Caso Celso Daniel. Fez do empresário Ronan Maria Pinto, dono do Diário do Grande ABC, a porta de entrada. Declarou que o dinheiro que Ronan recebeu do PT para comprar parte das ações do jornal era dinheiro de chantagem, de quem ameaçara colocar a cúpula do PT na cadeia por causa da morte de Celso Daniel. Valério ganhou notoriedade. Passou a ser tratado como presidiário especial. A conta da segurança pessoal do publicitário foi para o PT. Ronan Maria Pinto mantinha relações muito próximas ao PT. Participava ativamente dos interesses petistas. Tanto que o MP o envolveu no caso de arrecadações paralelas na Prefeitura de Santo André, juntamente com Sérgio Gomes da Silva e Klinger Luiz de Oliveira. Parceria e chantagem são coisas diferentes. Menos para Valério. O golpe deu certo. O caso Celso Daniel ganhou mais uma ramificação.
DIONISIO DE AQUINO SEVERO
O bandido ligado a uma facção rival do PCC foi executado com mais de 60 facadas no parlatório de um presídio dominado pela facção contrária. Não teve participação alguma no sequestro de Celso Daniel, segundo diferentes e aprofundadas investigações policiais – inclusive a comandada pela delegada Elisabete Sato a pedido do MP e dos familiares do prefeito assassinado. Dionísio foi colocado na história pelo delegado Romeu Tuminha em parceria com o MP de Santo André. Um cruzamento impossível. Criminosos de agremiações diferentes não se bicam. Mais que isso: se matam. Palavra de especialistas ouvidos no documentário. Dionísio de Aquino Severo foi um blefe que causou a prisão de Sérgio Gomes da Silva e deu tônus à versão de Crime de Encomenda.
JOSÉ PINTO DE LUNA
Delegado de Polícia Federal destacado para atuar nas investigações a pedido do PT. Tem participação breve, mas esclarecedora no documentário. Foi sob o comando dele que se gravou em áudio e vídeo a ação de sequestradores presos na Bahia. Um dos quais, no julgamento em que foi duramente condenado, afirmou que teria sido torturado. O vídeo revela confissão sem anormalidade. Luna também desmentiu o médico-legista Carlos Delmonte, irritado com a afirmação de que Celso Daniel teria sido assassinado vestindo cueca do lado do avesso. Foi o delegado Luna quem disse a Delmonte que a cueca utilizada por Celso Daniel continha uma etiqueta externa, ou seja, não estava do lado do avesso. Uma correção do próprio delegado ao constatar, em casa, que também usava aquele modelo. Luna lamentou também que Delmonte tenha afirmado no programa de Jô Soares que Celso Daniel foi torturado. O delegado federal assegurou que o legista disse exatamente o oposto no dia da necropsia. Delmonte estava acompanhado dos irmãos de Celso Daniel na entrevista.
JOSÉ REINALDO GUIMARÃES
Promotor-criminal que atuou na força-tarefa do Caso Celso Daniel desde 2002. Foi flagrado em contradição quando se compara uma das entrevistas do passado às declarações do presente. José Reinaldo disse que Celso Daniel foi vítima de queima de arquivo, imputando a terceiros a responsabilidade pela morte do prefeito, que teria descoberto irregularidades na Prefeitura. Tudo que os irmãos sabiam não ser verdade desde o princípio, informados por Gilberto Carvalho de que Celso Daniel conhecia todo o sistema de arrecadação paralela. Vinte anos depois o promotor-criminal repetiu o equívoco.
Total de 193 matérias | Página 1
11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP