Um lance inesperado no debate (entrevista é outra coisa, mesmo que outra coisa no caso de entrevista seja sempre importante e bem-vinda) mudou o resultado do jogo ontem à noite na TV Globo. De empate técnico aparentemente imutável, saiu um vencedor.
O presidente Jair Bolsonaro e os entrevistadores/debatedores da Globo, William Bonner e Renata Vasconcellos, proporcionaram um clássico da política nacional.
Não é por outra razão que decidi encaixar este texto na Editoria de “Política”. Poderia também ser na Editoria de “Imprensa”, mas o peso circunstancial do encontro me levou à primeira opção.
O embate entre Bolsonaro e a Globo, que vem de longe, foi estudadamente preparado por ambos os lados. Era o mata-mata tão esperado por todos.
MUITA PREPARAÇÃO
Desde que a disputa se configurou na programação da emissora, as duas equipes se prepararam intensamente. Tudo se apresentava como o capítulo final (final mesmo) de uma contenda de raízes que vão muito mais fundo do que discordâncias naturais entre um ramal importantíssimo da Imprensa e um presidente da República.
Um lance, um lance que virou contragolpe, mudou a história dessa, desta vez, diplomática disputa.
Até ali, quase na reta de chegada daqueles 40 minutos cronometrados, tudo indicava que um empate técnico seria o desfecho natural. Próprio de duas equipes que se estudaram mutualmente, em preparativos para dominar a cena. O empate técnico seria uma vitória para Bolsonaro.
DONOS DA CENA
Primeiro porque enfrentaria dois profissionais de mídia que dominam as câmeras. Principalmente William Bonner, mestre na engenhosidade de unir o talento de oratória e a expressividade facial.
Bonner é bom de imagem, bom de voz, bom de imposição de argumentos. Bom em quase tudo. É o Galvão Bueno dos apresentadores de televisão. Goste-se ou não tanto de um quanto de outro. Gosto dos dois, mas também tenho ressalvas aos dois porque sempre fizeram o jogo da casa, lealdade que em muitas situações infringe a ética profissional.
O passivo sanitário do presidente Jair Bolsonaro, exploradíssimo no debate, poderia ser seu cadafalso. Provavelmente a equipe presidencial já contabilizara essa desvantagem na disputa midiática que se apresentou em formato jornalístico.
PASSIVO FORTE
Por mais que tente argumentar e por mais dúvidas que eventualmente possam emergir, é negativo o saldo popular de Jair Bolsonaro no Coronavírus. Fez declarações intempestivas sim. E desrespeitosas também. Perdeu-se em meio à tempestade de complicações.
Mas o estrago no estoque de credibilidade e popularidade de Jair Bolsonaro no caso do Coronavírus expõe também uma fresta defensiva e recuperadora que o presidente não deixou inexplorada, embora contasse com menos tempo para isso. O adversário se programou para mitigar o que era potencialmente bom para Bolsonaro.
Bolsonaro contra-atacou com o lado econômico da desgraça que tomou conta do mundo. Aliás, desde o princípio, quando não se tinha a menor ideia do que seria o vírus egresso da China, Bolsonaro contrapôs-se às agressivas demandas críticas por segurança sanitária de governadores e prefeitos ruinosos ao equilíbrio econômico.
LADO ECONÔMICO
As mortes não são esquecidas, mas as medidas presidenciais saltam às vistas como reparadoras no ambiente de produção e emprego. Mesmo diante de borrascas paralelas, como a convulsão no fluxo de suprimentos industriais e a guerra na Ucrânia. E, claro, os referenciais macroeconômicos internacionais mais agudos.
Ou seja: o lado de emprego, de renda, de liberdade de mobilidade, tudo isso se colocou como contraponto aos cuidados com a propagação do vírus.
No geral, balanço feito, a opção econômica de Bolsonaro, conjugada com o desprezo ao combate ao vírus, o tornou deficitário numa pauta que os apresentadores da TV Globo privilegiaram na disputa pelo juízo de valor dos telespectadores.
NEHUMA NOVIDADE
Nada de surpreendente se colocou na mesa do debate televisivo. A agenda dos perguntadores/inquisidores e do presidente da República era praticamente a mesma.
Os questionamentos eram previsíveis, porque foram exaustivamente transformados em noticiário, análises e críticas ao longo de quase todo o mandato do presidente.
Tudo isso foi minuciosamente avaliado nos dias que precederam a disputa nos estúdios da emissora carioca. Vasculharam-se arquivos de jornais. Explorou-se a Internet. Construíram-se ataques e defesas que pudessem eliminar ou neutralizar o outro lado.
Quem sabe, num lance de sorte, se alcançaria o nocaute diante de 40 milhões de telespectadores?
BOLA DECISIVA
Aquela bola decisiva parecia improvável a cada minuto que passava na tela da Globo. Os dois times estavam muito bem articulados mesmo. Uma inconsistência aqui, outra ali, natural nesses casos, não alterava o ritmo do placar que caminhava para o empate técnico.
As torcidas organizadas costumam superestimar os lances de ataque e esquecem as fraquezas. Foi o que se viu no pós-encontro nas redes sociais. Nem poderia ser diferente. Nas páginas da Velha Imprensa a opção preferencial pela Globo prevaleceu. Mas também de forma menos dominadora porque, no fundo, se reconheceu, mesmo ao esconder o ponto fatal da disputa, que o barco não seguiu a rota preferida.
Na Folha de S. Paulo, plataforma antigoverno, um cronista admitiu o empate técnico. Nada mais emblemático de que o empate técnico virou uma ação defensiva diante dos estragos que aquele lance provocou. E que desequilibrou o jogo.
EMPATE IMINENTE
Como embarco de coração e alma nas questões políticas sem me envolver com o partidarismo das torcidas organizadas, as quais respeito e acho que dão dinamismo à democracia, fiquei imaginando antes do embate todas as perguntas e as respostas da disputa na Globo.
É claro que questionamentos e respostas eram previsíveis. Basta ler os jornais e acompanhar o noticiário e os comentários nas emissoras de televisão, à direita e à esquerda de preferencias forçadas ou espontâneas. Nada me pareceria novidade na disputa entre o presidente e a Globo.
Tanto é verdade que a disputa se encaminhava mesmo para um enquadramento praticamente impossível de definição favorável no placar a quem quer que fosse. Jogo retrancadíssimo.
JOGO AMARRADO
Um jogo tão bom que pareceu a terceiros menos adestrados na arte de antever os lances apenas uma disputa morna.
No futebol, geralmente quando os dois times se organizam para conter as virtudes do adversário e explorar as deficiências, o que temos como enredo é um jogo calculadíssimo, frio, metódico, organizadamente discreto. Até que um lance, um único lance, pode mudar tudo. E nem sempre o supostamente melhor, mais preparado, vence.
O Jair Bolsonaro que entrou no campo adversário para enfrentar a Globo era uma espécie de Palmeiras na decisão da Taça Libertadores contra o mais poderoso Flamengo.
PALMEIRAS VS FLAMENGO
O resumo da ópera é que um lance, logo no início da disputa, levou o Palmeiras ao título. Um lance de jogada de laboratório, utilizando-se da principal arma palmeirense tanto no passado quando no presente – as combinações pelas extremidades, com transposições e infiltrações sorrateiras centrais de jogadores nem sempre marcados pelos adversários.
O lance que decidiu o debate na TV Globo ontem à noite aparentemente seria o lance letal para Jair Bolsonaro, de sua aproximação com o Centrão.
Não vou repetir o que se passou porque todo mundo sabe, embora nem todos tenham se dado conta do quanto foi decisivo.
Não resisti a um comentário imediato, assim que Bolsonaro tirou do bolso do colete a palavra letal às pretensões da Globo: “Ditadura”.
CONTRAGOLPE LETAL
Para quem é acusado diuturnamente de violador de liberdades e apoiador de golpismo, refrão da Velha Imprensa para estigmatizar um presidente destrambelhado no uso improvisado do léxico político, a defesa da democracia com a contraposição da ideia de que qualquer outra coisa que o relacionasse ao combate ao Centrão se tornaria um suporte a regimes ditatoriais, para quem, repito, imaginava um desastre argumentativo de Bolsonaro, a resposta foi contundentemente desequilibradora.
A Globo perdeu a disputa para o presidente da República quando mais parecia determinada e preparada para o nocautear.
Não faço necessariamente juízo de valor sobre as perguntas e as respostas do debate de ontem à noite na TV Globo. Prefiro o reducionismo pragmático do campo eleitoral.
JOGO LÍCITO?
A “ditadura” de Bolsonaro teve e tem uma dimensão extraordinariamente forte. Só faltou mesmo uma tomada das câmeras da Globo, colhendo de imediato a reação dos dois entrevistadores, embora o silêncio subsequente sugerisse a sensação de que tenham sofrido um golpe inesperado e letal.
Ganhou o debate quem parecia pronto para deixar o estúdio da Globo mais que satisfeito com um empate programado.
Qualquer outro comentário sobre a suposta indelicadeza e desrespeito dos entrevistadores da Globo ao presidente da República só terá sentido crítico após o que se verá no confronto com Lula da Silva, principalmente, entre os demais presidenciáveis.
PASSADO DIFERENTE
Em relação ao passado de outros presidentes entrevistados no mesmo formato, sem dúvida Bolsonaro tem razões de sobra para reclamar de um ambiente hostil. Nada que fosse surpreendente, entretanto. Inclusive porque tem culpa no cartório. Também.
Eventual amistosidade da Globo sobretudo diante de Lula da Silva daria combustão aos bolsonaristas mais radicais que odeiam a emissora.
Se William Bonner e Renata Vasconcelos repetirem a dose de impetuosidade combinada com preparo técnico no confronto com Lula da Silva, todos terão a ganhar. Jornalismo e Relações Públicas são corpos distintos na arte da comunicação.
Resta saber se Lula da Silva está preparado para responder questões muito mais delicadas que o envolvem em relação às que enredaram e enredam Jair Bolsonaro.
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